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Na sua Viagem a Itália, entre 1786 e 1788, Goethe registou o que foi vendo nas caminhadas, os encontros que foi tendo, as sensações que as relações, humanas e não humanas, que ia fazendo lhe traziam. À época, uma viagem de lazer da Alemanha para a Itália não era feita por alguém que não tivesse disponibilidade para lá ficar uns tempos. Os cerca de dois anos que por lá permaneceu trouxeram-lhe a possibilidade de ver tudo a microscópio e, mais tarde, de reunir os registos do seu olhar num livro. Foi no desenrolar da viagem que Goethe se apercebeu do potencial deste livro-quase-enciclopédico; o impulso de sair e registar serviu de tapete a uma das suas maiores obras literárias. Imaginar Goethe a caminhar e a conversar com o pintor Johann Wilhelm Tischbein, que acabou por pintar o seu retrato em Itália, pode remeter-nos em paralelo para as caminhadas dos filósofos gregos, que pensavam em conjunto, ou para os passeios solitários de Virginia Woolf, que se sentava junto ao rio para escrever. Grande parte dos registos que nos chegam hoje, mais ou menos distantes no tempo, são sobretudo de intelectuais burgueses, mas sair para ir dar uma volta é, na verdade, uma atividade que não se cinge a uma determinada classe social.
«Andar a pé», «ir caminhar», «sair para espairecer» são algumas das expressões utilizadas para descrever o ato de sair de casa sem ter necessariamente um propósito. Durante a pandemia, sair para dar uma volta tornou-se quase uma necessidade. Sair para ver, sair para conhecer, sair para respirar. Para quem estava em teletrabalho, sair, muitas das vezes, significava a imposição de uma rotina pelo bem da saúde mental. Maria Sousa, de 26 anos, foi um desses casos. Esta ideia de sair para dar uma volta, para passear, para andar ou correr, para mim representa escape, mas, ao mesmo tempo, também uma forma de conexão comigo própria. Uma forma de sentir que tenho esta rotina que sei que vai acontecer esteja onde estiver», explica. Nestes passeios, Maria desliga as redes sociais, liga-se às suas playlists ou a um podcast, e permite-se a ficar «num sítio completamente diferente» daquele em que esteve durante o dia, «que normalmente é trabalho».
Quando pensa nestas caminhadas diárias, Maria sente «paz mental». «É uma sensação de claridade mental.» Ainda antes da pandemia, em 2016, Alexandre Ribeiro, na altura com 23 anos, hoje com 28, começou a trabalhar em casa a full-time e sair a certa altura do dia foi «uma solução quase inconsciente» de se obrigar a sair do ambiente a que estava preso durante horas. «Mais tarde apercebi-me de que isso era o escape certo para me permitir trabalhar em casa sem que ficasse completamente mergulhado numa vida em que não existe separação entre o sítio onde dormimos e o local onde trabalhamos. Só mais tarde me apercebi de que era uma maneira prática de resolver esse desequilíbrio que tinha surgido na minha vida», conta ao Gerador. Encontra o equilíbrio nas caminhadas que faz sozinho ou acompanhado. Por um lado, sente que pode ser uma boa forma de «manter a conversa em dia» com alguém, por outro, sozinho tem «a oportunidade» de se perder nos seus pensamentos. «Grande parte das vezes, é daí que surgem algumas ideias de ângulos para peças, que se vão formando na minha cabeça até terminar a caminhada – chegando a casa, passo aquilo que ficou retido para o computador», explica Alexandre, que é jornalista.
A ideia que tem de estar lá fora é a de estar num lugar onde parecem não existir «limitações físicas para a livre circulação de ideias». As ideias que circulam podem, no mesmo espaço, acabar por se organizar. É o que acontece com Maribel Sobreira, cujo trabalho é sobretudo intelectual. «A ideia de caminhar é importante para mim porque me ajuda a organizar as ideias. O [ato de] caminhar faz com que eu pense e consiga organizar as coisas que tenho para fazer ou os problemas que tenho para resolver. Gosto tanto de o fazer sozinha como acompanhada, também gosto de fazer grandes caminhadas a conversar sobre várias coisas: aquilo que se vê, problemas políticos, existenciais», partilha. A memória mais longínqua das suas caminhadas transporta-a novamente para o Dafundo, na zona de Algés, onde se vê a caminhar com a sua mãe até Belém. Quando ficava cansada, a mãe dizia-lhe «é já ali». E Maribel seguia o caminho, lado a lado, com a mãe.
Comemora-se a 22 de novembro o Dia de Ir Dar uma Volta. O seu propósito é precisamente apelar à mobilidade e à ideia de abrir a porta e sair, mas, acima de tudo, estimular um sentimento de liberdade. Como se vê pelo exemplo de Alexandre e Maria, a pandemia ressignificou estas saídas e mostrou que dar uma volta não pode ser um evento único no ano. Filipa Jardim Silva, psicóloga clínica, coach, e autora e fundadora da Academia Transformar, diz que, para si, este apelo à liberdade representa, em primeiro lugar, «liberdade para sentir, legitimidade para experienciar todo o tipo de emoções e sensações físicas sem as rotular imediatamente de sintomas perigosos ou de fraqueza, sem as catalogar como emoções certas ou erradas, adequadas ou desadequadas». «Liberdade para aprender a nomear o que se sente e para aprender a dar uma resposta adaptativa», completa.
A psicóloga clínica lembra que «quando falamos de saúde mental, o sentimento de liberdade também reporta para a possibilidade de construirmos um dia a dia que nos respeite enquanto seres humanos, com tempo e espaço para respondermos às nossas necessidades físicas e psicológicas, sem culpas por tal». Numa altura em que a linha que separa o tempo para o trabalho do tempo para o lazer parece estar cada vez mais esbatida, é preciso reivindicar o espaço para que cada pessoa perceba que o que sente dentro de casa, e que muitas das vezes também a faz ter vontade de sair, é legítimo.
Há que lutar por esta liberdade que a nossa sociedade atual se molde às nossas necessidades e características humanas e não o contrário, em que sacrificamos a nossa saúde física e mental em prol de mais produção, de mais aparente riqueza, de mais horas de trabalho», diz.
Beatriz, natural do Porto, com 25 anos, sempre gostou de estar sozinha – estar consigo, no fundo. Dar uma volta dá-lhe esse tempo para estar consigo, para refletir. «Acaba por ser um momento em que consigo ganhar perspetiva e relativizar muita coisa. É uma das minhas formas de manutenção de saúde mental», diz um pouco na linha do comentário de Filipa Jardim Silva. Beatriz conta que sempre gostou de caminhar, mas que «a verdadeira necessidade de o fazer» surgiu quando começou a sofrer de ansiedade: «Felizmente percebi algo depressa que caminhar me ajudava a acalmar e a aguentar melhor as pressões com que tinha de lidar, sobretudo durante o dia de trabalho.» «Chegou a uma altura em que se não fizesse uma caminhada na hora de almoço, dificilmente conseguia concentrar-me e ser produtiva», recorda. Há uma certa clareza que Beatriz encontra nas suas saídas diárias, e que são também a motivação de Sofia de Sousa, do Marco de Canaveses, que costuma percorrer as ruas nas redondezas de sua casa logo pela manhã, antes de começar o seu dia de trabalho, com a sua cadela. «Ver o Sol nascer e a brisa da manhã dá-me a calma e a energia que preciso para enfrentar os imprevistos do dia a dia», diz. É como se quando as coisas não correm como previsto, conseguisse lembrar-se daquele nascer do Sol que vai registando com a sua câmara fotográfica.
Pelo caminho, Sofia conversa consigo. Sai para estar em contacto com a natureza, para se reconectar. «Às vezes é mesmo uma necessidade física, de descarregar o stress acumulado no corpo», explica. Nos seus 27 anos de existência, Sofia sentiu que se desmotivou vezes demais com coisas que começou a fazer. Sem que conseguisse controlar, uma sensação de falha tornou-se recorrente. A rotina de ir dar uma volta surgiu para provar a si mesma que conseguia ter uma rotina que contribuísse para o seu bem-estar. E conseguiu. «Percebi a importância que tinha para mim, quando estar alguns dias seguidos sem o fazer, me faz sentir mal. Eu gosto de rotinas e quando encontro algo que me ajuda a estar mais equilibrada mentalmente nos dias que correm, em que muitas vezes mal temos tempo para respirar, devemos aproveitar. E na caminhada encontrei isso. Encontrei o silêncio através da brisa das folhas e do som dos ramos a estalarem quando os calco. De ver uma luz maravilhosa a incidir no meio das árvores. Todas essas pequenas coisas me dão energia e transportam-me para um lugar melhor.»
De acordo com o 3.º STADA Health Repor, um estudo a nível europeu organizado pela STADA Arzneimittel AG sobre os impactos da pandemia da covid-19 na saúde mental dos europeus, um em cada três europeus sofre mais com ansiedade devido à pandemia. As consequências são várias, mas o burnout surge com um grande peso. Filipa Jardim Silva acredita que «quando nos permitimos escutar o nosso corpo, observando com curiosidade e sem desvalorização ou julgamento o que sentimos a cada momento, denotamos certamente que a presença de falta de energia, as pernas pesadas, as dores de cabeça, uma neblina mental, dificuldades de concentração, digestão lenta ou indisposição frequente e um humor irritável traduzem certamente necessidades em falta».
«Quando não nos resignamos a estar mal, quando não nos abandonamos ao sentimento de “um dia a seguir ao outro” em piloto automático, quando não desistimos por nos sentir bem, respeitados, equilibrados, então surge a ação. Uma pequena ou grande ação, mas sobretudo uma ação de autocuidado e de mudança. A força nem sempre estará lá, nem a energia ou a motivação. O que precisamos, diria, é de respeito por nós e de nos recordarmos que só temos uma vida e que o tempo e a atenção disponíveis na nossa vida são dois preciosos mas limitados recursos, pelo que vale a pena cuidarmos muito bem deles. Ninguém nos vai salvar a não sermos nós próprios de uma vida sedentária e desligada, a promover doença e não saúde. Quando não priorizamos tempo nas nossas rotinas diárias para cuidarmos do nosso bem-estar, estamos certamente a agendar tempo para adoecermos e nos tornarmos menos autónomos», advoga a psicóloga clínica e coach.
Quando Maribel Sobreira pensa na sua relação com a prática de ir dar uma volta, menciona o privilégio de ter crescido num país onde a natureza abunda. Para Sofia, esse contacto com a brisa que sente, o som ao calcar as folhas no outono, o ar que respira, fazem parte da experiência imersiva de que já não abdica nos seus dias. Já em 2019, o International Journal of Environmental Health Research publicava um estudo que indicava que estar em espaços verdes com frequência reduz o desenvolvimento de doenças psiquiátricas. Sem ter, necessariamente, de fazer exercício; apenas estando lá, sozinhas ou acompanhadas. Dois anos depois, Filipa Jardim Silva reforça que, de facto, «estar em contacto com a natureza e em exposição solar cerca de 20 minutos por dia é uma autêntica medicação para a nossa saúde mental». «Não é milagrosa, mas é impactante. Os nossos sentidos ficam mais despertos quando ativamos sons, cheiros, imagens e sensações físicas estimulantes como acontece na natureza. Esse despertar dos sentidos fomenta uma conexão entre o que o nosso cérebro e o nosso corpo, sendo que nesse momento nos sentimos mais enraizados no aqui e no agora e não no passado ou no futuro, tempos pelos quais a nossa atenção tende a deambular.»
Num artigo da revista GQ, publicado em janeiro deste ano, Julian Stanford, um homem reformado a viver em Inglaterra, contou na primeira pessoa como é que andar a pé durante o confinamento ajudou três homens com a sua saúde mental – Julian era um deles. Com dois amigos e, por vezes, um cão, caminhava junto ao rio Tamisa. Começou a sentir-se melhor fisicamente, mas também percebeu que era um pretexto para conversar sobre os mais diversos temas e continuar a debatê-los passeio após passeio. Quando o contexto pandémico lhes pedia para se afastarem, decidiram juntar-se ao ar livre.
Combater a solidão tem sido um dos grandes desafios ao longo dos últimos dois anos, não só pelos confinamentos a que o mundo foi obrigado, mas também pela aceleração que nos faz caminhar para uma certa individualidade. A verdade é que apesar de podermos parecer cada vez menos ligados ao mundo real, «precisamos de criar ligações íntimas e de partilhar com outros, tanto como precisamos de comer e beber água» – quem o diz é Filipa Jardim Silva. «É fundamental para a nossa saúde mental.
Diversas investigações têm evidenciado que a socialização de qualidade é um protetor para inúmeras problemáticas como doenças degenerativas e cardíacas, diabetes e a depressão. Pelo contrário, também já se evidenciou que quando nos isolamos ou estamos rodeados de pessoas, mas sem estabelecimento de ligações seguras e íntimas tendemos a fragilizar o sistema imunitário, a diminuir a esperança média de vida, a deteriorar a flexibilidade mental e a comprometer severamente a nossa saúde psicológica.»
«O desafio é o isolamento crescente e a solidão acompanhada que a era atual tem promovido. Não foi um problema criado pela pandemia, apenas foi exacerbado com a mensagem proliferada de que estar com um outro era perigoso, que era importante evitar estar-se com outros. O corre-corre do dia a dia e a predominância do modo fazer deixam pouco espaço a uma socialização de qualidade, com tempo e disponibilidade, física e emocional, para se estar com quem nos faz bem, para conhecermos novas pessoas, para nos deixarmos tocar por um outro e tocarmos também», acrescenta.
Foi a pensar na importância destes encontros que Sheyla Ventura e Catarina Cabral decidiram organizar a Fancy Women Bike Ride (FWBR), um evento que reúne mulheres para juntas pedalarem pela cidade. Originalmente criado na Turquia em 2013, é mais do que um encontro que reúne mulheres que pedalam na cidade: é uma oportunidade de se conhecerem, de trocarem ideias, de expandirem os seus conhecimentos juntas. Sheyla e Catarina conheceram-se no Twitter e, por serem bastante vocais no que toca à mobilidade urbana, decidiram passar as conversas online para a vida real. Começaram a dar passeios de bicicleta e, em 2020, Catarina encontrou uma notícia sobre a FWBR que enviou para Sheyla – «olha que giro, um evento de bicicletas para mulheres, e que não está a acontecer cá», disse-lhe.
«A Sheyla rapidamente organizou uma versão não-oficial com um pequeno grupo de amigas na mesma data (eu não estava em Lisboa, infelizmente não me pude juntar) e enviou para a Pinar Pinzuti, organizadora global da FWBR. Este ano, a Pinar contactou a Shey com um convite para organizar uma versão oficial, a primeira em Lisboa. A Shey aceitou e convidou-me para me juntar a ela. Eu não hesitei em dizer sim. Achámos que, dadas as circunstâncias, este era o momento certo para termos algo do género em Lisboa», conta Catarina. Lisboa é uma cidade onde cada vez mais pessoas decidem deslocar-se de bicicleta, como é também o caso de Maribel Sobreira, que sente o pensamento a viajar à velocidade da bicicleta. Catarina e Sheyla sabiam dessa adesão cada vez maior às bicicletas, mas não esperavam que muitas das mulheres que se deslocam diariamente neste meio de transporte – e também outras que não o usavam há anos – decidissem juntar-se na FWBR.
“Tive oportunidade de conversar com várias: umas com muita experiência, que já têm os seus próprios grupos e que fazem viagens em bicicleta, outras com as filhas e filhos pequeninos e que gostam de passear em família, algumas que não pedalavam há anos e decidiram que aquele seria o dia, outras que se querem começar a aventurar a pedalar pela cidade mas têm receios”, partilha Catarina.
Para Catarina, o efeito empoderador deste encontro está na troca de experiências e contactos. Depois daquele dia, onde mais de 100 mulheres se juntaram, certamente muitos passeios foram marcados, e muitas mensagens trocadas. Catarina e Sheyla acreditam que «quanto mais mulheres pedalarem, mais mulheres vão pedalar». Durante anos, a bicicleta era associada ao mundo do ciclismo, dominantemente masculino. Catarina sente que a ideia generalizada que existia era que «para pedalar por aí, precisávamos usar equipamento de lycra e ter os acessórios todos dos atletas de ciclismo que víamos na televisão e na Volta a Portugal» ou «que só se podia andar de bicicleta ao domingo num local plano e longe da estrada». E por muito que já não seja apenas assim, «o meio urbano era, e ainda é, bastante agressivo no que toca à convivência entre automóveis e bicicletas, pelo que, no início, quem se aventurou mais nas deslocações em bicicleta também foram os homens». «A verdade é que alguns estudos indicam que, quanto mais seguras as cidades se tornam para os ciclistas, mais mulheres começam a usar a bicicleta como meio de transporte. Portanto, se vemos cada vez mais mulheres, é porque a nossa cidade evoluiu em termos de mobilidade.»
Saber a importância de sair para ir dar uma volta, a solo ou com companhia, pode ser transformador. Filipa Jardim Silva diz mesmo que «sem nos revisitarmos, sem caminharmos, sem passearmos de comboio ou bicicleta talvez, sem nos permitirmos ir à descoberta de um novo jardim na cidade ou de uma pequena praia escondida, limitamo-nos a sobreviver, resignados a um dia a seguir ao outro.» Por vezes, basta ir dar uma volta ao quarteirão. Quem sabe, pelo caminho, se encontram as respostas que há muito se procuravam.