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Em Beja, há quem tenha perdido a fé nos políticos. Dizem que as ruas estão mais vazias e lamentam o cenário de abandono a que o território foi votado. Uma pequena ronda pelas lojas e cafés do centro da cidade confirma o descontentamento de vários moradores. Muitos dizem que provavelmente não vão votar. Não querem falar sobre eleições, pois “não adiantam de nada”. Estão cansados de ser um local de passagem em tempo de campanhas eleitorais. “Fomos esquecidos! Fomos abandonados! Já não acreditamos em ninguém!”, são frases repetidas pelos balcões. A falta de transportes públicos, o mau estado dos poucos acessos que existem, a escassez de médicos, de serviços, de empresas, de gente. Uma amálgama de fatores sentidos em grande parte dos territórios do interior do país, afastados dos centros de decisão onde se discute um novo TGV para ligar Lisboa e Porto.
Encostado ao vão da porta, Fernando Mestre lamenta o vazio dentro do seu estabelecimento. A sua tabacaria, na rua Capitão Francisco de Sousa – uma área repleta de lojas mesmo no centro da cidade alentejana –, precisava de pelo menos três empregados para dar vazão aos clientes. Agora até o gerente está parado. “Não há dinamismo, ninguém faz nada”, diz, criticando responsáveis políticos nacionais e locais que deixaram o Alentejo cair no esquecimento. Perdeu a fé em todos.
À porta da loja de Fernando passam vários imigrantes, sobretudo asiáticos, que vão circulando pela área. Algumas destas ruas são pontos de encontro habituais. Além da corrupção e da interioridade, o comerciante culpa a imigração pela decadência da sua cidade. “Você já olhou à sua volta?”, questiona. “Isto tem prejudicado e continua a prejudicar [a região]. As pessoas não vêm aqui porque têm medo.”
Para o gerente de loja, que há 38 anos vende revistas e lotarias na capital de distrito, Beja deixou de ser dos alentejanos. Fernando Mestre diz-se irritado e frustrado por ter de assistir à decadência do comércio local outrora pujante. Atribui grande parte da culpa ao aumento da criminalidade e da sensação de insegurança. Aponta o dedo à falta de soluções para quem chega ao país. Critica o facto de ver pessoas a dormir nas ruas. Relembra uma Beja que já não existe, por culpa do despovoamento. Diz-se injustiçado com uma realidade onde após décadas de trabalho o negócio só piorou e, ao mesmo tempo, a cidade foi ficando descaracterizada. Afirma convictamente que “já não acredita em ninguém”, mas, caso decida ir votar no dia 10 de março, irá colocar a cruz no partido de extrema-direita que mais cresce em Portugal. E os proprietários das lojas vizinhas acenam em sinal de concordância.
Nas legislativas de 2019, a eleição de um deputado de extrema-direita surpreendeu. Para um partido com pouco mais de um ano de vida, não era previsível que conseguisse eleger tão rapidamente. Mais surpreendente ainda foi o elevado número de votos que o Chega conseguiu no Alentejo, região com uma tradição vincada de votação à esquerda.
Alvito, em Beja, foi o concelho onde, em 2019, o partido conseguiu a percentagem mais alta, recolhendo 4,76 % dos votos. Já nas legislativas de 2022 a taxa ascendeu a 13,4 % dos votos daquele concelho.
Dentro dos municípios onde este partido obteve melhor votação em 2019, há três onde a percentagem de 18 % foi ultrapassada nas eleições legislativas seguintes, em 2022: Elvas, chegou aos 18,73 % (em 2019 teve 4,52 %), Moura reuniu 18,22 % (4,68 % nas eleições anteriores) e em Monforte conseguiu 18,07 % (4,6 % em 2019).
“O que é que aqui fizeram os comunistas durante tantos anos?”, questiona Jorge Ramalho, florista com um estabelecimento tão vazio quanto a tabacaria de Fernando, mesmo em dia de São Valentim. “Eu não voto Chega, porque não me identifico, mas [o partido] vai crescer. “E a culpa é deles [governantes e deputados]. Deram-lhes a faca e o queijo e eles cortam à sua medida”, afirma.
O descontentamento e a revolta da população foi um rastilho que ardeu quando o populismo de direita nacionalista acendeu o fósforo. Isto mesmo foi analisado no artigo A geografia da direita nacionalista em Portugal: contornos de um processo emergente, elaborado por três investigadores do Instituto de Ciências Sociais e Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. Neste trabalho, Paulo Madeira, Katielle Silva e Jorge Malheiros analisaram a percentagem de votos válidos no partido Chega em cada concelho de Portugal continental, nas legislativas de 2019. Cruzaram os números com dados estatísticos diversos e verificaram a existência de uma correlação positiva com fatores como a percentagem de população empregada no setor secundário, o índice de envelhecimento, percentagem de população de etnia cigana, de população estrangeira, entre outros. Também encontraram correspondência com anteriores votações noutros partidos de extrema-direita, como o PNR.
“Geografia do ressentimento” foi a expressão usada pelos académicos para descrever como a frustração de uma população esquecida motivou o voto de protesto. “Os partidos populistas que foram surgindo, ou que a partir de dado momento cresceram rapidamente, fizeram-no por vezes com base em políticos empreendedores que se mobilizaram expressamente para atrair o voto do descontentamento popular que sentiam existir na sociedade e a que os partidos tradicionais do sistema não davam resposta”, lê-se no artigo. “As razões desse descontentamento popular têm sido frequentemente atribuídas ao desinteresse das classes dirigentes pelo que acontece ao povo. Por vezes, parece existir uma abordagem de tipo empresarial, em que um conjunto de políticos decide dar corpo ao descontentamento popular, como se de uma oportunidade de mercado se tratasse”, diz a mesma fonte.
A adesão às ideias de populismo de direita nacionalista – termo usado pelos investigadores – explicam-se, dizem, por duas ordens de razões, patentes no discurso eleitoral deste tipo de partidos: “Por um lado, dificuldades económicas crescentes, com perda de rendimentos e até de emprego, têm vindo a afetar parte substancial da população, sem perspetivas de que a situação seja revertida no atual contexto”. Por outro lado, “muitas pessoas sentem-se esquecidas ou mesmo marginalizadas e ameaçadas do ponto de vista político, cultural e até identitário, sobretudo quando as dificuldades económicas coexistem com fortes correntes migratórias, quer de saída de população local em busca de oportunidades de trabalho, quer de entrada de população estrangeira, que por vezes ocorrem em simultâneo”. O cenário serve que nem uma luva à realidade que se vive no Alentejo.
O jornalista Miguel Carvalho acompanha o partido Chega desde que este conseguiu representação parlamentar e corrobora esta teoria com a sua experiência prática. Habituado a “sentar-se à mesa” com simpatizantes, militantes e dirigentes do partido, defende ser errada e contraproducente a ideia de que o mesmo é composto e votado apenas por fascistas, racistas ou saudosistas de Salazar. “Eles existem, mas não são a maioria”, diz em entrevista ao Gerador. O “grosso” do eleitorado – que não confunde com o núcleo dirigente – são as pessoas que sentem que não foram ouvidas por ninguém. “Antes de tudo, antes de as pessoas assumirem a sua filiação, a sua decisão eleitoral ao Chega, vêm queixas, em alguns casos, de muitos anos”, explica o jornalista.
“A verdade é que as pessoas sentem que foram negligenciadas, perderam o centro de saúde, perderam a escola, perderam a agência bancária, perderam o posto de correios e tudo isto foi gerando ressentimento” diz, referindo-se ao exemplo de Beja.
“[Este] é um ressentimento que é também alimentado pelo facto de as pessoas acharem que não contam para as decisões políticas, ou seja, que estão demasiado longe do poder político onde tudo se decide e normalmente não se decide a favor delas. E um partido como o Chega oferece a narrativa mais eficaz para alguém que já está frustrado, desencantado e revoltado com aquilo que foi a negligência e o esquecimento ao longo dos anos por parte do Estado.”
O jornalista veterano salienta que o líder deste mesmo partido “fez uma coisa que muitos políticos já não faziam há muito tempo”, que foi deslocar-se a territórios do interior e organizar atividades, jantares, caminhadas, etc. “A verdade é que – e isso era notório – as pessoas valorizavam bastante o facto de haver um líder partidário que ia ter com elas e tentar minimamente perceber [os seus problemas]. Podemos agora discutir se a intenção [desse líder] é genuína ou se não é, mas as pessoas valorizavam, de facto, aquela presença, porque isso lhes permitia desabafar, fazer queixas, etc.” Daí que, segundo diz, este partido tenha conseguido captar eleitorado em diferentes espetros políticos, ou até na abstenção. “A verdade é que o nível de ressentimento era tal, que se o partido fizesse uma narrativa simples e eficaz, ainda que não fizesse grandes propostas para resolver os problemas das pessoas, isso poderia ter algum sucesso”, acrescenta.
O círculo eleitoral de Beja elege, atualmente, três deputados. Apesar de significativa, a votação no partido Chega ainda não chegou para eleger qualquer candidato à Assembleia da República. Em 2022, em Beja, foram eleitos dois deputados do Partido Socialista e um da Coligação Democrática Unitária (PCP-PEV), mas os atuais candidatos do Chega por este círculo acreditam numa mudança de cenário em 2024, até porque já “começa a ter um histórico”, nomeadamente ao nível das autarquias, segundo António Carneiro, militante e candidato na lista por Beja.
Questionado sobre o descrédito que a população de Beja diz ter na política, o também diretor de campanha – que é inspetor da Autoridade para as Condições no Trabalho de profissão –, considera que isso acontece “porque os outros partidos, muitas vezes dizem o politicamente correto”, coisa que o seu não faz. O candidato – e antigo filiado no CDS – , crê, por isso, que o Chega vai ao encontro das exigências das pessoas.
“Há um problema com a comunidade cigana em Loures”. A frase é de André Ventura e foi proferida em 2017, quando este era candidato à Câmara Municipal de Loures pelo PSD e teve grande destaque na imprensa nacional. Levou mesmo o candidato a tribunal, na sequência de uma queixa-crime interposta pelo Bloco de Esquerda, mas este manteve a sua posição e repetiu-a por diversas vezes.
De acordo com o livro Na cabeça de Ventura (2023, Zigurate), do jornalista Vítor Matos, o deputado “usou uma etnia e uma comunidade cultural – e os preconceitos subjacentes na maioria – como golpe de marketing para catapultar a sua notoriedade”. O líder do partido de extrema-direita “inventou um estudo, ou manipulou dados de um estudo, para convencer terceiros de que a sensação de insegurança da população estava relacionada com os ciganos”.
Segundo o jornalista, este plano de instrumentalização da comunidade foi decidido num almoço com o seu amigo João Gomes de Almeida, publicitário e consultor de comunicação. O mesmo facto é descrito na obra A Nova Direita Antissistema – O Caso do Chega (2020, Almedina), assinada pelo investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Riccardo Marchi. “No testemunho de Gomes de Almeida, a utilização deste tema como rastilho da campanha foi ponderado entre os dois, pois sabiam que “ia criar celeuma”, lê-se.
“Para potenciar a mensagem, João Gomes de Almeida pede ao amigo Sebastião Bugalho para entrevistar André Ventura com certo destaque no Jornal I. No testemunho de Bugalho [atual comentador da SIC Notícias], esta disponibilidade não se deveu a nenhum plano político concertado, mas apenas à consciência de potencialidade, em termos de vendas, de uma primeira página com declarações de campanha relacionadas com a comunidade cigana”, é referido no livro.
A repercussão mediática da atitude discriminatória, caracterizada pelo próprio como “politicamente incorreta”, fê-lo ter o melhor resultado de sempre do PSD naquele concelho, levando-o a manifestar ambições maiores dentro do partido de centro-direita. “Ele percebeu que havia uma faixa de eleitorado interessada naquela forma de comunicação”, explica o investigador Riccardo Marchi em entrevista ao Gerador. A questão, segundo diz o especialista em direitas radicais portuguesas, não era tanto a xenofobia demonstrada, mas antes a ousadia de destacar um assunto com este nível de sensibilidade. “Estou convencido de que ele percebeu que o soundbite sobre a questão cigana tem efeito, porque as pessoas consideram este político contra o politicamente correto. Tem efeito neste sentido: todos os jornais vão contra ele, todos os políticos vão contra ele, e ele não pede desculpa. Vai à frente com um caterpílar.”
“Aqui há uma fatia importante do eleitorado que quer um discurso politicamente incorreto, mas não quer muito o discurso étnico”, acrescenta o académico.
De facto, vários analistas concluem isto mesmo: o discurso xenófobo foi um instrumento usado por Ventura para obter atenção mediática. Quando esse objetivo ficou cumprido, o tema deixou de ser tão prevalente.
Note-se que a referência aos subsídios e a sua associação à comunidade cigana não é nova. Nem sequer a associação entre imigração e criminalidade, ou o apelo às forças de segurança. Todas estas bandeiras já foram levantadas por Paulo Portas. Durante a campanha eleitoral de 2009, o então líder do CDS prometia que, se governasse, iria cortar o orçamento destinado aos “ciganos do rendimento mínimo”. Já nessa altura o discurso xenófobo causou polémica. Apesar disso, esta retórica não tinha um promotor carismático há muito.
“Nisso [o André Ventura] foi inteligente”, diz Fernanda Marques Lopes, fundadora e militante número 3 do partido Chega. “Ele, para começar alguma coisa, tem de ser disruptivo. Para ser disruptivo, tem de agarrar em três ou quatro bandeiras e tem de pegar em temas que são polémicos”, afirma a dirigente, que foi candidata pelo Chega à Assembleia Municipal da freguesia da Lourinhã nas últimas eleições autárquicas, mas se tem assumido como uma voz crítica dentro do partido.
Assim, após o sucesso da sua “ideia vencedora”, André Ventura tentou, dentro do PSD, promover um movimento contra a liderança de Rui Rio, mas o mesmo não teve o resultado esperado. Isto mesmo é descrito no já referido livro A Nova Direita Antissistema – O caso do Chega, e foi também confirmado pelos fundadores do partido que deram o seu contributo para esta reportagem.
“O André estava com uma sede de poder tão grande que começou a atacar e a tentar juntar apoios dentro do próprio PSD, entre figuras importantes” de forma a conseguir marcar um congresso extraordinário e provocar novas eleições, conta Nuno Afonso, fundador e ex-militante do Chega, que, na altura, também fazia parte do Partido Social-Democrata. “Houve pessoas importantes dentro do PSD que disseram que o apoiavam, que depois, na altura de se chegarem mesmo à frente, lhe tiraram o tapete.”
“Ele não tinha qualquer tipo de base de sustentação naquela direção do Rui Rio e começou a querer reivindicar algum protagonismo que eu acho que não lhe deram”, afirma Fernanda Marques Lopes, amiga de longa data de André Ventura.
Descontente com a falta de apoio, Ventura começa a fazer contactos para formar um novo partido. O arquiteto Nuno Afonso e a advogada Fernanda Marques Lopes foram duas das pessoas que se juntaram ao trabalho de construção do novo projeto. Fernanda relata, em entrevista ao Gerador, que trabalhou com afinco na recolha de assinaturas. Chegou a recolher algumas junto da comunidade cigana. “Eu andei aqui no meio dos ciganos de Torres Vedras a recolher assinaturas, e eles diziam, ‘mas ele não gosta de nós’. ‘Não’, respondia eu, ele não gosta dos ciganos que não trabalham. Como não gosta de nenhuma pessoa que não trabalha.”
A questão da comunidade cigana e da “subsidiodependência” foi algo criado apenas para “fazer barulho”, segundo Nuno Afonso, que diz não concordar com a abordagem. “Sobretudo não me revejo em que se digam coisas só para fazer barulho e só para aparecer.”
“O André passa essa imagem de ser racista e xenófobo e homofóbico e, na realidade, eu não acho que ele seja nada disso”, alega o antigo chefe de gabinete e braço-direito de Ventura no Parlamento. “Acho que as coisas devem ser ditas de forma séria”, diz o atual vereador independente da Câmara Municipal de Sintra e cabeça de lista por Lisboa pela coligação Alternativa 21, que junta o partido Aliança e o Partido da Terra (MPT). “A ‘subsidiodependência’ ou o RSI, não é uma questão dos ciganos. Aliás, os ciganos são uma percentagem muito pequena das pessoas que recebem RSI. E eu, por exemplo, acho que o RSI é importante, porque havia muita gente a passar muito mal se não houver RSI. O que eu acho que as coisas deviam ser mais bem controladas… é uma visão diferente.”
Apesar de se identificar com muitas das ideias do Chega, Nuno Afonso começou a afastar-se em resultado da discordância com a forma como o partido estava a ser gerido. Tal gerou crispação com o líder ao ponto de o fazer manifestar o seu desagrado publicamente, numa convenção nacional. Foi o princípio do seu afastamento. Acabaria por não integrar as listas para as eleições legislativas de 2022. Assumiu a intenção de concorrer à presidência do partido e acabaria, mais tarde, por ser exonerado do seu cargo de chefe de gabinete. “O André não permite que alguém discorde dele, muito menos publicamente.”
À medida que o partido cresceu, o discurso populista e radical do líder sobrepôs-se à definição de linhas ideológicas concretas. Muitos fundadores saíram em resultado dessa deriva, que se tem acentuado. Mesmo com poucos membros, o Chega – ainda antes de ser oficialmente um partido – já tinha visões contraditórias, em questões elementares como a Europa, a identidade, a soberania, a igualdade de género, entre outras. Havia pessoas da extrema-direita, vindos de partidos neonazis, e pessoas oriundas da direita moderada ou da direita tradicional, o que tornava difícil o consenso.
Recentemente, o partido tem apostado na narrativa islamofóbica e anti-imigração. O discurso segue a tendência da extrema-direita europeia, e da teoria da “Grande Substituição”, que tem conquistado cada vez mais votos nos parlamentos nacionais dos 27, dando origem à aprovação de legislação restritiva da entrada de estrangeiros em solo europeu. Um exemplo recente foi a aprovação de uma lei em França que limita os direitos de imigrantes e que tornou possível a deportação de pessoas residentes no país há 20 anos, se forem condenadas e consideradas “uma ameaça à ordem pública”.
Miguel Cabral acredita que Portugal precisa desesperadamente de mudar. O jovem de 20 anos, natural do concelho da Covilhã e emigrante na Suíça diz estar cansado da “má gestão do Governo”. “Os jovens não têm as oportunidades que deviam ter. A má gestão leva a que eles tenham de ir para fora. Muitos têm de emigrar, tal como eu fiz”.
O jovem estagiário numa fábrica de embalagens de cartão, que concilia o trabalho com os estudos, diz querer, acima de tudo, “mudança”. “Temos visto [governos alternados] PS, PSD, PS, PSD… E basicamente as coisas não andam para a frente. Quer dizer, estamos cada vez pior!”.
Miguel sente que não há oportunidades no seu país. Preocupam-no sobretudo a degradação dos serviços públicos, a imigração “descontrolada“ e a corrupção.
De início, tomou conhecimento das propostas do Chega através da televisão. Teve curiosidade e começou a acompanhar o partido através das redes sociais. “Vi que eles eram um bocado atacados e, de certa maneira, chamados fascistas, xenófobos, tudo e mais alguma coisa, e eu acho que isso também não é correto”, diz. “Quando se ouve falar de extrema-direita, pensa-se que é fascista, é xenófobo… Mas, na realidade, não é isso. Isso são palavras baratas que as pessoas usam numa situação de ódio. Elas nem sabem o que fascista quer dizer”, acredita o jovem emigrante.
Miguel Cabral não considera o Chega um partido extremista. “Eles têm boas ideias. Eu não estou 100 % de acordo com o que eles dizem, mas têm ideias que me agradam.” E quais as ideias com as quais não concordas? “No início, uma coisa que não concordei foi… pode-se dizer que foi discriminação… para com as pessoas de etnia cigana.” Embora considere que as pessoas desta comunidade “são um bocado aproveitadoras”, a forma como Ventura propôs o confinamento seletivo, durante a pandemia, fê-lo recordar as intenções de Adolf Hitler, no início do século XX.
E isso não é algo que te faça mudar a intenção de voto? “Eu considero que isso era secundário e que já não são as ideias atuais do partido Chega”, até porque “já não têm falado tanto no assunto”.
No seu círculo de família e amigos diz conhecer várias pessoas que também pretendem votar no partido de extrema-direita, em particular as pertencentes à sua faixa etária. “Falamos uns com os outros e estamos todos de acordo”, diz.
“Não sei o que eles poderiam fazer para mudar logo [a situação do país], mas acho que, em quatro anos, conseguiam mudar os serviços de saúde… os serviços públicos que é a coisa mais importante. De base, são as três coisas fundamentais na sociedade: os serviços públicos, a guarda nacional e a educação”, que acredita que sairão melhorados com os populistas de direita nacionalista no poder. O combate à corrupção também é um aspeto decisivo para o seu sentido de voto. “Eu não vejo um dia em que, nas notícias, não haja mais corrupção. Ou é o Galamba, ou o Costa ou é problemas com a TAP… O que eu penso para mim é: eles estão lá, será que eles se preocupam mesmo connosco ou só querem ‘meter para o bolso’?”
“Atenção, se calhar o Chega vai lá chegar e também vai fazer o mesmo, mas eu não me permito a votar num partido com tantos escândalos, nem o PS, nem o PSD. E eu olho para eles [Chega] e espero que funcione, espero que haja mesmo uma mudança.”
Nuno Afonso foi o militante número dois do Chega. Foi o braço-direito de André Ventura e chefe de gabinete deste na Assembleia da República. Conforme referido anteriormente, várias divergências relativamente à postura do líder, à falta de organização interna e “à forma de fazer política” levaram a que se desvinculasse do partido, em 2023. Tal sucedeu após ser exonerado do cargo de Chefe de Gabinete e lhe ser retirada a confiança política em Sintra. Eleito pelo Chega, Nuno Afonso ainda desempenha o cargo de vereador naquele concelho, mas como independente.
Em entrevista ao Gerador, Nuno Afonso relatou o seu percurso no partido que fundou e teceu duras críticas ao líder. “As divergências começaram relativamente cedo dentro do partido, sobretudo pela forma discursiva do André”, relata. O vereador diz nunca ter apreciado a estratégia de “fazer barulho só para aparecer”, nem a forma pouco séria como os temas eram tratados.
“Eu compreendia que, na primeira legislatura [em que o Chega esteve representado no parlamento], um partido que tinha só cinco assessores, e nem todos trabalhavam da mesma maneira, tivesse de apresentar propostas menos densas intelectualmente, por assim dizer, portanto coisas mais feitas mais rapidamente”, diz o dissidente e atual cabeça de lista por Lisboa da coligação Alternativa 21.
Apesar disso, critica o facto de muitas das propostas apresentadas derivarem diretamente de assuntos em discussão na comunicação social, a ponto de ser dito publicamente que o partido ia apresentar uma proposta antes de ela estar escrita e antes de a equipa do gabinete sequer saber dessa intenção. “Depois da hora de almoço dizia -me [que] até às cinco horas, tínhamos de apresentar uma proposta sobre não sei o quê. Acontecia. E eu tinha duas horas para fazer uma proposta, ou três. Eu e o resto do gabinete.”
De acordo com Nuno Afonso, “as propostas eram a espuma do dia. As coisas eram feitas para sair na comunicação social”, daí que a redação dos textos fosse pouco cuidada. “Há coisas muito básicas, e coisas que se repetem”, acrescenta.
Na XIV legislatura – altura em que pela primeira vez o Chega elegeu um deputado e entrou para Assembleia da República –, o partido conseguiu aprovar um único projeto-lei que “aumenta os dias de luto previstos no Código do Trabalho e reconhece o direito ao luto em caso de perda gestacional”. A proposta teve origem numa petição que, aliás, motivou projetos-lei submetidos pelos outros partidos.
Na mesma legislatura, o partido apresentou cinco propostas de revisão constitucional. A primeira era intitulada “Pela defesa da população em cenários epidémicos” e a segunda pretendia reduzir o número de deputados constitucionalmente previsto. Ambas acabaram por ser retiradas. Mais tarde viriam duas propostas de revisão constitucional mais abrangentes (a proposta 6/XIV acabaria também por ser retirada a favor da proposta 3/XIV), além de uma “pela consagração constitucional da compatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e a criminalização do enriquecimento ilícito”.
A revisão mais abrangente que ficaria submetida, a 3/XIV, previa, por exemplo, o voto obrigatório ou a alteração de presunção de inocência para titulares de cargos políticos. Também reservava o desempenho de cargos ministeriais a “titulares de nacionalidade portuguesa originária”.
Na XV legislatura o Chega cresceu exponencialmente e conseguiu 12 assentos parlamentares. Por conseguinte a atividade parlamentar aumentou bastante, a ponto de ser o partido com o maior número de propostas apresentadas, ainda que seja o pior em termos de rácio de aprovação.
No total, foram apresentadas pelo Chega 386 iniciativas, entre comissões de inquérito, projetos de resolução, projetos de regimento, projetos-lei, etc. Estes últimos totalizam 195, dos quais apenas dois foram aprovados. Um destes projetos-lei foi submetido de forma coletiva, com os restantes partidos e diz respeito à alteração do estatuto dos deputados. O outro é relativo à polémica lei dos metadados e limita a conservação de dados dos consumidores por parte de empresas de telecomunicações, um tema sobre o qual vários partidos apresentaram projetos-lei.
Nesta legislatura, todos os partidos representados na Assembleia da República apresentaram propostas de revisão constitucional. Esta foi a oitava vez que se abriu um processo de revisão, mas o mesmo ficou pelo caminho com a dissolução do parlamento.
Nesta legislatura, todos os partidos representados na Assembleia da República apresentaram propostas de revisão constitucional. Esta foi a oitava vez que se abriu um processo de revisão, mas o mesmo ficou pelo caminho com a dissolução do parlamento.
No caso do Chega, o projeto de revisão apresentado, 1/XV/1 – muito mais extenso e elaborado que os anteriores – propunha várias reformulações (que podem ser consultadas aqui).
No que respeita ao conteúdo, vários projetos-lei são relativos a alterações ao Código Penal, propondo o agravamento de penas ou a criação de novos crimes. Um exemplo é o crime de abuso sexual de menores, cuja referência se repete nomeadamente através da proposta da aplicação da pena de castração química, uma das medidas mais polémicas do partido e que surge como proposta nas duas legislaturas. As propostas de alteração ao Código Penal abrangem a introdução de prisão perpétua para crimes de “homicídios de especial perversidade, nomeadamente contra crianças” assim como agravamento de penas para crimes por incêndio florestal, corrupção ou auxílio à imigração ilegal, por exemplo. Foi proposto o crime por infração de maus tratos a animais de companhia e ainda uma alteração ao artigo 240º, relativo ao incitamento ao ódio e à violência, de forma a incluir a adenda "sem prejuízo da liberdade de expressão".
O Chega também propôs uma alteração ao Código de Processo Penal, com vista a assegurar o direito a intérprete de língua gestual portuguesa aos cidadãos surdos ou intérprete de língua estrangeira aos cidadãos estrangeiros, em questões de justiça.
Medidas para isenções ou alívios fiscais são também comuns, embora coexistam com medidas que aumentariam a despesa pública. A referenciação de utentes do SNS para serviços privados ou sociais, a proteção animal, e a valorização das carreiras de professores, forças de segurança e enfermeiros são disso exemplo. Há ainda propostas apresentadas no âmbito da pandemia e medidas que pretendem restringir a imigração, como a revogação de vistos para procura de trabalho, ou outras que pretendem limitar a existência de observatórios científicos.
O insucesso das propostas está diretamente relacionado com a maneira de fazer política de André Ventura, de acordo com o dissidente Nuno Afonso. “A forma dele fazer política é ofender toda a gente, impor-se contra toda a gente e fazer as pateadas e bater com as mãos na mesa. São coisas absurdas.”
“Eu não posso esperar estar na Assembleia da República a chamar idiotas e corruptos a todos e depois, no dia seguinte, aparecer com uma proposta e querer que eles votem todos a favor.”
“Se eu quero ajudar uma classe, eu tenho de fazer política de uma forma séria porque se não ninguém me vai ajudar ou ninguém vai tentar sequer ouvir-me para perceber o problema que eu quero apresentar”, diz o ex-vice presidente do Chega, referindo que o partido está mais interessado no espetáculo parlamentar do que na aprovação de propostas. “Para ele só interessa isso, sim. O André [Ventura] só tem um interesse, que é chegar ao poder. E só chega ao poder tendo visibilidade, e é fácil [tê-la]. Isto é daquelas coisas que se aprendem em marketing político.”
Especialistas, dissidentes do partido e o jornalista ouvidos nesta reportagem concordam que a apresentação de um grande volume de propostas é “estratégica” e tem o duplo objetivo de, por um lado, mostrar serviço e, por outro, reforçar a narrativa de vitimização, alegando que as mesmas não são aprovadas por culpa dos restantes partidos. A aprovação efetiva das propostas – e com elas o cumprimento de promessas feitas na comunicação social – acaba por ser secundária.
“Ninguém foi ao fundo da qualidade dessas propostas, ninguém foi ao fundo do que aquilo significa de facto”, nem avaliou a constitucionalidade do conteúdo, diz Miguel Carvalho. “Eu não creio que o eleitorado ou sequer a sua base militante esteja muito por dentro de algumas das propostas mais complexas que foram apresentadas”, acrescenta o jornalista. Até porque, segundo diz, o eleitor deste partido não precisa de se identificar com tudo o que ele defende. “As pessoas aderem porque gostam de três ou quatro [bandeiras] e esquecem todas as outras”, assegura.
Para o historiador Fernando Rosas, há um “voto de protesto vazio” captado por este tipo de partidos. O também fundador do Bloco de Esquerda, explica, em entrevista ao Gerador, que a essência deste voto “é a emoção e a irracionalidade” pois “destitui-se da capacidade crítica de analisar as contradições e as mentiras do próprio discurso populista, do Chega e do seu líder”. Este voto insere-se numa categorização mais ampla que o historiador faz do eleitorado da extrema-direita. Inclui também o “voto dos oligarcas” ou “o voto do grande interesse” dos financiadores do partido – constituído por “banqueiros, fundos imobiliários e setores do turismo” – e o voto “dos nostálgicos do antigo regime”, que consideram que o país só piorou desde que vive em democracia.
O investigador Riccardo Marchi refere que embora este tipo de partidos se apresentem como “salvadores da pátria”, não o são, claramente. “Em lado nenhum [onde foram eleitos], chegaram ao poder e vimos uma mudança estratosférica da economia, uma queda brutal da corrupção, da evasão fiscal, etc.”
Apesar disso, a narrativa populista, criada em torno do “bem contra o mal”, “do povo contra as elites” é suficientemente simples para cativar as pessoas, conforme explica o professor de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Christian Lynch. “Você tende a crer nessas representações que são binárias, e é muito fácil explicar, porque já estão encostados no inconsciente de alguma maneira”, diz o especialista, durante uma entrevista concedida ao Gerador à margem do evento de tertúlia Cícero Talks. A falta de compreensão das causas económicas, sociais religiosas e culturais dos problemas é, para Christian Lynch, uma das principais explicações, pois ajuda a que os eleitores se deixem iludir por propostas sem qualquer sustentação do ponto de vista económico.
Um exemplo recente é a promessa de aumento das pensões para o valor do salário mínimo nacional, patente no programa eleitoral do partido Chega. Inicialmente foi referido que essa medida teria um custo estimado de entre 7,5 a 9 mil milhões de euros. Depois André Ventura disse que seria implementada de forma faseada, custando 1,6 mil milhões numa primeira fase e 5 a 6 mil milhões numa segunda fase. Posteriormente, numa resposta dada ao Jornal de Negócios, a medida já passava a custar 10,6 mil milhões de euros. Perante todos os cenários, também a forma de pagar este enorme aumento de custos para a Segurança Social não foi referida de forma coerente, sendo apontadas como possibilidades o recurso a fundos europeus – que não servem para despesa corrente de qualquer país – ou, depois, o dinheiro arrecadado através do combate à corrupção.
Para Fernanda Marques Lopes, neste momento, o partido não tem sequer uma orientação ideológica clara, porque se tornou um “catch-all party”. A militante e ex-presidente do conselho de jurisdição critica a atitude de “prometer tudo a todos”, sobretudo quando se trata de propostas que são claramente impossíveis de concretizar. “A grande vantagem do Chega e do André é que ainda não governaram. E portanto ninguém lhes pode apontar nada, porque ninguém na verdade sabe como é que eles vão ser se governarem. Agora, o Chega, da forma como o André o construiu, para mim vai começar a cair no dia que governar e não conseguir executar aquilo que promete executar”.
“Neste momento histórico, não tentem encontrar uma lógica financeira nas coisas que o André Ventura propõe. Neste momento ela não existe porque não é esse o objetivo do Chega. O objetivo do Chega não é resolver as contas públicas no imediato. O objetivo do Chega é conquistar votos”, remata o investigador Riccardo Marchi.