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Um sistema esclavagista e colonial que se envergonha dos seus crimes e se reforma pressionado pela evolução das ideias não desiste tão facilmente da força de trabalho que o alimenta. A liberdade concedida ao escravo e ao servo traz escondidas novas sub-rotinas que mantém as coisas mais ou menos na mesma. Se ao escravo era dada casa e comida em troca do trabalho, ao trabalhador, é dado um salário que pouco mais dá do que para casa e comida. É assim com a esmagadora maioria da população. Mas se a cor da pele for negra, esse salário pode não chegar. Se a cor da pele for negra, as liberdades e oportunidades podem não ser as mesmas. As suas casas serão mais longe dos trabalhos, estes serão mais precários e menos bem pagos. Talvez tenham de ter dois empregos porque um não chega para alimentar a família. Na escola, ninguém lhes prevê uma carreira de cientista, médico ou advogado. Na rua, a polícia desconfia mais cedo. Nos tribunais, o juiz dá penas mais pesadas. A única herança que poderão deixar a filhos e netos é a consciência da história de como aqui chegaram para que, um dia, se reúnam insurretos suficientes para acabar com o sistema.

«A maioria das pessoas que vive nos bairros tem trabalhos que a restante população não quer: construção civil e limpezas. E, como somos pobres, aproveitam-se dessa fraqueza para explorar a mão de obra barata. Porque uma pessoa que receba 1000 euros não precisa de ir limpar um prédio por um salário mínimo. Mas uma pessoa que não tem outra alternativa, vai.

» É para isso que funciona a segregação: para, em termos estruturais, diminuir uma comunidade – também, mas não só – em termos económicos, para depois se aproveitar essa mão de obra barata e continuar a fornecer o sistema, nas limpezas, nas obras, na manutenção das coisas.

» E quando uma família na qual o pai e a mãe trabalham nesses empregos, os filhos, muitas vezes, vão pelo mesmo caminho. Como têm poucos recursos financeiros, o filho também não vai ver as suas necessidades satisfeitas, seja na alimentação, seja no material escolar. Mas isso acontece porque são criadas condições para que isso aconteça.

» É um jogo que está viciado e eu até diria que estas pessoas nem são jogadores nesse jogo. São coisas, nem são pessoas. Os jogadores estão lá em cima. Nós somos as coisas que alimentam o jogo, porque, sem nós, o jogo não continua.

» É isso que temos de perceber. Se nós tivéssemos consciência disso, teríamos comunidades muito mais poderosas. Se soubéssemos que somos nós que sustentamos toda uma sociedade as coisas seriam diferentes.»

Excerto de conversa com Ruben Sanches
Casal da Boba – Amadora, março de 2022

Ouve aqui a conversa completa com Ruben:

«O que todo o discurso xenófobo ou racista estimula é justamente isso: “Nós podemos ter perdido tudo, mas não podemos perder aquilo que é a nossa superioridade, na relação do passado com esse mesmo presente.”

» Num país como Portugal, os portugueses sentem ter direito ao insulto, por esse insulto ter sido naturalizado. É o contar anedotas sobre Samora Machel, é o contar anedotas sobre o Eusébio. Essas anedotas foram sendo contadas ao longo dos anos porque socialmente se permitiu que essas minorias andassem de cabeça baixa à procura da sua própria aceitação e inclusão social. O que já não sucede com as gerações mais novas, que até querem um debate público sobre essas questões.

» Para mim, essa é a questão estrutural, porque a produção política, no fundo, permite o funcionamento de todas as outras instituições, seja a instituição familiar, seja a instituição escola, seja a instituição trabalho. Essa questão tem uma atitude que não é nem de esquerda nem de direita em relação a isso. E ninguém quer falar criticamente, porque isso é considerado um ataque à história do país. Nisso, existe uma unanimidade impressionante e assustadora.

» Quando, na verdade, o que está em debate não é nada disso. O que está em debate é, claramente, aquilo que a própria história de Portugal produziu ao longo desses séculos na relação com esses chamados outros povos que, em Portugal, nem sequer veio de outros sítios. São, de facto, pessoas que serviram o Estado português, que nasceram em território português, mas que essa diferença faz com que, institucionalmente, sejam olhados sempre como de segunda geração ou como emigrantes.

» Tudo aquilo que eu ouvi ao longo desse período e ainda vejo, leio e oiço quando falam da Joacine Katar Moreira, é um comportamento que muitos homens têm e muitos brancos têm. Mas como era uma mulher, que já é um atrevimento terrível, e depois ser negra, dizer isso… “Mas quem é essa arrogante? Ela acha-se muito importante!” Nós vemos, todos os dias, gente que se acha importante a destruir o país, a tomar posições que pioram a qualidade de vida, destroem os instrumentos que garantem uma maior solidariedade social. E ninguém se incomoda com isso. Mas toda gente, de todos os quadrantes, a todos os níveis sociais, se agarrou à questão da Joacine como se fosse a última pedra da calçada portuguesa que ia ser arrancada. Isso diz muito sobre o país.

Para mim, o que sucedeu com a Joacine mostrou claramente a radiografia de Portugal. Um Portugal que continua colonial, um Portugal que se reconhece no direito daqueles que são considerados minorias serem tratados como subalternos e, se elevados a um lugar onde não deveriam estar, comportarem-se devidamente, que, no caso, comportar-se devidamente significa ficar calado.»

Excerto de conversa com Manuel Santos
Restelo – Lisboa, fevereiro de 2022

Ouve aqui a conversa completa com Manuel:

«O meu problema é o mundo. A forma como o mundo é. É claro que o racismo não vai acabar com a questão económica, porque ainda vai ficar na cabeça, mas é o primeiro passo para conseguir fazer as outras coisas.

» Eu odeio esse sistema. Eu não tenho problemas em dizer: eu odeio esse sistema! Eu acho que o pobre que não odeia esse sistema ou tem síndrome de Estocolmo, ou… Um africano que ache que este mundo é maravilhoso ou é lunático ou é alienado, porque esse mundo, na forma como está organizado, diz que nós não temos direito de cá estar a não ser como servos. O problema é o sistema. Agora, a tarefa é: nós, os oprimidos, que só podemos contar connosco, organizarmo-nos e fazermos o trabalho de educação.

» Acho, até, que é uma forma de resistência nomear esse sistema como capitalista, predador, racista, colonialista e machista. Ele deve desaparecer porque é retrógrado, é muito atrasado. E tem um potencial, nesta fase em que estamos agora: ou acabamos com esse sistema, ou esse sistema faz a nossa extinção. Não há outra forma. E qualquer um que venha dizer que vamos harmonizar aqui, envernizar isso para ficar mais bonito, ele deve ser tratado como um traidor.

» Há uma volta que tem de se dar. Isso implica muito trabalho. Não é nada fácil, nada fácil. Mas é possível. Porque se foi o ser humano a fazer esse sistema, também o ser humano pode acabar com isso. A luta antirracista é, naturalmente, uma luta anticapitalista.»

Excerto de conversa com Flávio Almada
Cova da Moura – Amadora, fevereiro de 2022

Ouve aqui a conversa completa com Flávio:

Esta obra fotográfica foi inicialmente publicada na Revista Gerador 38 que podes comprar aqui.

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