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Texto de Ricardo Gonçalves Dias
Ilustrações de Marina Mota
Digital de Inês Roque
Esta obra literária venceu a Mostra Nacional Jovens Criadores 2024 na área artística de Literatura. A Mostra Nacional Jovens Criadores é uma iniciativa do IPDJ organizada, desde 2022, pelo Gerador. Recorda a última edição aqui.
Helena era o nome dela. Casou-se com um primo e as pessoas diziam que os Gonzaga só sabiam gerar malucos. Ou que a natureza pune os maus, o que ia dar no mesmo.
Quando ficou viúva não se ressentiu da malícia de receber os pêsames pela morte do primo porque amava-o mais do que outros amam os cônjuges. Às vezes acusavam-na de mascarar a raiva. Talvez assim não fosse. Ele chamava-se Silvestre e achava que Helena tinha condições para diminuir alguns dos seus desgostos: não a conhecera em criança, o que era bom para os prazeres da carne, e reagiu como um filósofo bem- humorado quando o confrontaram com a hipótese de ter filhos loucos: a genética sabe o que faz.
Os filhos pareciam um resumo criativo da providência, mas distinguiam-se nos defeitos – principalmente os de orgulho, que dizem ser os piores. Manuel era conhecido por Perico. Em criança tinha um instinto anormal e Helena insinuava nele a reencarnação de um bisavô. Ela gostava deste filho, mesmo que trouxesse problemas, e quando se queixavam dele comovia-se mais depressa com os sinais de esperteza do que com a vergonha da decepção. No velório do pai viram-no a soluçar a um canto, mas como o achavam pouco dotado de coração só pressentiram naquele exagero a ameaça de um novo golpe. Helena sentia-se controlada por ele. Sabia os passos que dava porque, dizia, não tinha cortado o cordão da barriga. E assim ia-lhe dominando os presságios para conseguir encobrir, por ofício maternal e medo de evidência, uma especial preferência em relação aos outros filhos. Eram dois, Isaac e Jeremias, irmãos em primeiro grau e primos em segundo.
Apesar de malucos os Gonzaga impressionavam pelo talento que conseguiam para tudo. Não importava por que caminho se metiam, apareceriam mais tarde com alguns frutos da incursão. O pai de Helena chamava-se Jerónimo e o desaparecimento da mulher aumentou a dependência do afecto pela filha. À noite fazia teatros de fantoches – para os quais tinha talento vocal – com histórias que ensinavam a moralidade a Helena. Os vizinhos do bairro chamavam-no maluco porque pertencia aos Gonzaga, mas deixavam que os filhos se aproximassem dele na rua pedindo que imitasse vozes de animais. Estavam a contribuir para a felicidade de alguém condenado a morrer louco. Deus tomava atenção a estes gestos num tempo em que o bairro ainda tinha muita gente que gostava de o agradar.
O espírito jovem e envelhecido de Helena fazia com que cuidasse do pai desejando um dia ter tratamento igual. A ausência da mãe, os fantoches e a herança dos Gonzaga foram situações favoráveis à cedência ao primeiro contacto masculino, e supôs-se que Jerónimo tivesse morrido de desgosto com os fantoches a contar-lhe o futuro da família. Ele tivera uma relação dispensável com o seu único irmão: pegavam-se à tareia e cobravam favores em público, tanto que se suspeitava de que tudo não passasse de ficção. Os menos cépticos sabiam que aquela incompatibilidade seria resolvida noutra geração e que a inconsequência era lei dos enredos mais cúmplices: com os Gonzaga tudo acabava bem. Nem que fosse com casamentos entre primos.
Helena crescera com as fantasias destas histórias e usava-as para impedir divisões à mesa: os Gonzaga vinham todos do mesmo sítio. E pior do que a proximidade na origem era a repetição das coisas de carácter, o que a levava a pensar que o nascimento dos dois primeiros filhos tinha a mão de Deus, e que seria ele o responsável por dar mais uma oportunidade para que a família provasse estar à altura de uma irmandade entre rapazes. Jeremias nasceu tão pouco tempo depois de Isaac que quase não tiveram intervalo para ser diferentes. Dizia-se que um tinha sido gerado com os restos do outro, e que à velocidade que Helena paria seria desta que os Gonzaga se voltariam a multiplicar até tomarem conta do bairro todo.
Havia um traço comum em todos os rostos – uma marca que não deixava que um Gonzaga se despercebesse. Ser desta família era um adjectivo. Ao contrário de Isaac e Jeremias, que tinham um lado cómico da fisionomia dos Gonzaga, o Perico tinha uma harmonia que se afirmou com o tempo submetendo as almas a uma raiva controlável, e que só acalmou porque ele começou cedo a dar problemas. Ainda assim houve quem pensasse que não se importava de ter um filho desonesto desde que fosse tão agradável de cara. A inveja também se cansava de andar escondida.
Mas o distanciamento que se fazia em relação ao Perico aumentava o risco de se criar um monstro. Outras crianças sabiam que era proibido emprestar-lhe o que quer que fosse e que era preciso evitar brincadeiras que podiam ter fundamentos estranhos. Tudo porque ele acreditava que se convencia melhor os turistas que visitavam o bairro actuando em grupo: a pobreza era mais sincera no colectivo. Faziam coisas simples, como pequenas acrobacias ou levar os turistas aos sítios onde só chegavam com alguém do bairro. No final o Perico recebia o pagamento que era mais feito por pena do que recompensa. Não costumava ser justo nas divisões que fazia com os outros, que acabavam por sofrer os castigos dos pais tanto por participarem nas brincadeiras como por aceitarem mal os lucros. Todos tinham de se afastar do Perico.
Mas não lhe custava empreender sozinho junto dos turistas, preferindo assim do que contar com os dois irmãos. Impressionava-se mal porque os via a andar sempre juntos para todo o lado. Às vezes tinha pensamentos em que os humilhava, e que geralmente andavam em volta do seu sucesso enquanto eles continuavam a assoar o seu nariz de Gonzaga, mas arrependia-se com rapidez. Também era comum vê-los confrontados com os seus próprios limites, que eram curtos por causa da consanguinidade a mais: tinham uma necessidade para se meterem em confusões, e nisto não fugiam ao historial da família, mas faltava-lhes a robustez para sustentar as mentiras.
Uma vez Perico viu de longe um acerto de contas com os irmãos. A forma ridícula como os dois sofriam pontapés quase levou o seu instinto a intervir. Mas ficou parado a ver como despistavam as marcas da pancada e a pensar que até para ser surrados andavam juntos. Perico, nesse momento, tendo aguentado sem os ajudar, percebeu que se tinha desprendido de preocupações futuras. No dia seguinte disseram-lhe que tinham caído atrás de um cão. Era nestas alturas que continha os pensamentos para não ir além de os imaginar pedindo esmola na rua.
Como Perico se tornara nessa figura temerária é assunto que foge às circunstâncias recentes. Daí que conste que aquela personalidade tenha tanto da reacção aos tratamentos da infância como da influência de apelos familiares. Nele concentravam-se todas as frustrações anteriores dos Gonzaga e o peso de um gozo de que eram vítimas até onde a última memória chegava. Então comparavam pequenas atitudes suas às sinopses de confusões antigas em que algum Gonzaga tinha ficado a perder. Ele vinha vingar o nome da família e trazia o aspecto de anjo bíblico para ajustar as contas com o destino ou com bairro – que cada vez mais pareciam o mesmo.
Os indícios da sua naturalidade para convencer o outro começaram cedo. Talvez neles estivesse já a previsão do negócio com o turista, que acabaria por ter características lendárias. Perico apontou-lhe para uma casa velha e convenceu o pai a fazer-se passar pelo dono. Silvestre reduzia-se a participar sem resistência nos pedidos de Perico e a postura que levava para os planos era de uma pavidez que lhe atribuía dotes muito extraordinários. Às vezes, com uma certa ironia, Perico dizia-lhe que ele é que parecia o filho. Mas a prudência de Silvestre tinha causas mais fundas. Tinha nascido longe e só conheceu o bairro depois da infância – o que é critério que promove a indiferença. Tudo porque o pai dele tinha fugido para tentar enriquecer – coisa que os Gonzaga faziam regularmente – para depois voltar para contar as histórias das aventuras e distribuir notas na taberna aos pobres, concluindo que ele era outra espécie de Gonzaga. Quando o dinheiro acabou voltou a fugir sem se despedir, embora o tenham visto nessa noite a urinar contra a casa do irmão Jerónimo.
Também não é agora que se vai saber o que levará um homem aos aparecimentos repentinos nas origens, ainda que se saiba que as experiências da juventude são um convite durável para estes regressos. As mentes mais simples fazem de qualquer incógnita uma aposta: e alguém apostou com uma das notas de César em como ele não tinha fugido para ir buscar o resto da fortuna. Se ver o irmão endoidecer o que faltava no meio dos fantoches era um estímulo de difícil censura, ver o filho envolver-se com Helena era um desgosto suportável à distância. Ele queria outra coisa para Silvestre. Mas no bairro concluiu-se de modo mais fatídico: veio para entregar o filho à própria prima dando futuro à horda dos Gonzaga, e com a contaminação do sangue procriar mais uma geração de malucos para o bairro.
Alguém nos antepassados da família torceu tanto o nariz que os organismos tomaram a necessidade por defeito. Havia duas formas para saber se alguém pertencia aos Gonzaga: pelo nome ou pelo nariz. Em Helena o desvio da parte mais pontiaguda era tão agressivo que lhe entortava o septo, dando-lhe uma capacidade anormal para as vozes agudas e um descontrolo de roncos no riso. Quando adormecia com os diálogos de fantoches do pai retinha as partes mais fortes, mas logo o ensinamento moral a encaminhava o sono para a memória dos traumas. As outras raparigas escondiam-se dela nos becos e imitavam o som de roncos. Como não entendia a intenção punha-se a rir e a roncar, rodando a cabeça de um lado para o outro – como uma porquinha perdida. A longevidade de certas imagens faz com que pareçam sempre imediatas.
Helena tinha uma memória gigante, o que era diferente dos talentos empresariais. Seria capaz de passar horas com a sua própria cabeça sempre com a sensação de que tinha produzido muito, o que a impossibilitava de ver o presente sem desprender-se das instruções da memória. Conseguia explicar, até uma geração bem atrasada, toda a genologia dos Gonzaga e era perita na partilha das histórias do bairro que deram à família estatuto de clã sem tribos. A sua juventude teve uma intensidade de critérios que a deixaram permeável a vários tipos de meiguice: quando conheceu o primo Silvestre estava ainda na ressaca dos fantoches e o interesse que ele provocou conseguiu superar vários desconhecimentos. Os diagnósticos apontavam para a carência da figura feminina na vida de Helena, o que deixara o campo aberto para o exercício da influência do pai – a quem tinha de fazer provas de vida com uma regularidade militar. Mais tarde perceberia as condições de se envolver com um primo, mas a dependência teve um crescimento sem recuo, e este, a ter existido, seria tomado mais por medo do que por falta de sentimento. Sentia-se segura em dizer que amava Silvestre e os receios da mistura do parentesco iam sendo ultrapassados com muita imaginação.
Tinha-se habituado a lidar com a insistência sobre os perigos do encontro do mesmo sangue, que podia gerar mais um estropiado com apetência para a maldade. Mas eram avisos de quem tinha a ansiedade de ver de perto um problema que não é seu. Enquanto lhe perseguiam a barriga durante o dia, Helena pensava à noite num filho com duas cabeças e chegava a ter saudades do tempo dos fantoches. Quando Isaac nasceu pediu para que lhe contassem logo os membros. Tinha braços e pernas de um humano. E nariz de um Gonzaga.
Uma alcunha pode ser herança de família ou rasto de defeito. Pode, sobretudo, perpetuar-se na biografia de um homem. Manuel não se recordava desse baptismo marginal por ter sido tão precoce, e vivia ao ponto de esquecer-se de que tinha nome próprio. Se me arranjaram outro nome é porque o meu não estava certo, dizia.
A verdade é que o nome do Perico já era conhecido longe do bairro: aquela alcunha andava mais depressa do que ele próprio, como se voasse com as histórias e com a efabulação de certos acontecimentos. Conhecer primeiro o nome do que o homem era um pretexto para adivinhar-lhe a figura. Um Perico não podia ser um homem alto. Sendo sabido que pertencia aos Gonzaga também lhe associavam reflexos maníacos nos gestos e um nariz torto. Mas a primeira aparição era arrebatadora. Não havia uma eloquência definível em nenhum traço concreto do rosto, mas ele era um dos casos em que o conjunto se organizava de uma maneira sortuda. Perico era um rapaz bonito e parecia sujeito à evolução da agradabilidade que acompanha a linha de tempo de alguns homens, o que faz com que a beleza atinja máximos num certo período da idade, limitando o resultado das paixões nas almas menos audazes.
Depois de conhecer o Perico pensava-se que os Gonzaga tinham evoluído. Ou que aquele filho não lhes pertencia. Além do aspecto suspeito percebia-se nas primeiras impressões estar-se perante alguém que mostrava o que sabia em proporções desonestas. O que significava isto? Se nem sempre uma ciência para garantir um bom negócio, pelo menos uma defesa que respondia a princípios hormonais. Como as coisas funcionam já se sabe: existem pequenos acontecimentos de infância que são capazes de criar a história de um homem. No caso de Perico as intenções desmediram-se: parte daquela fama era fruto de angústias em que ele não participara. A melhor forma que encontrou para lidar com a injustiça foi aceitar a alcunha e propor-se a acabar com a fama dos Gonzaga fazendo dinheiro e, correndo bem, desaparecendo. O caso do negócio com o turista era uma solução nesse sentido. Nas vezes em que o via a passear pelo bairro interpretou um desejo de fixação fácil de explorar. Foi então que lhe falou na casa velha que precisava de um comprador urgente. O dono tinha-lhe pedido ajuda e, quando o conhecesse, perceberia que há compaixões isentas de qualquer negação. O talento de Silvestre era ouvir tudo à primeira, tanto que não precisou que Perico repetisse o guião. Mas no final dessa conversa de preparação viu no pai uma figura desoladora, como se ele precisasse mesmo de vender alguma coisa com urgência. Isto, de certo modo, aliviou-o, como se a história passasse a ser meia verdade.
O acordo foi feito com tanta rapidez que Perico desconfiou. O turista acabaria por lhe dizer de costas para a casa que o dono não provocava indiferença a ninguém, e que se o negócio avançava era tanto por vantagem material como por apelo da misericórdia. Quem não acredita no destino terá de encontrar outra forma de explicar a morte de Silvestre no dia seguinte ao de receber o dinheiro. Parecia um excerto da bíblica.
Sabendo-se do fio de todo o plano poder-se-ia pensar que o choro do Perico no funeral do pai tinha origem num remorso imponderado. Talvez também o fosse. Mas Silvestre tinha mesmo ar de desolação e era seu pai. Gostava dele.
À medida que o tempo passava nada de trágico acontecia aos Gonzaga e isso enervava os outros. A forma modestamente feliz como Helena vivia era um desses fenómenos que exaltava; tinha dois filhos tontos e outro desonesto, mas continuava a recusar-se a assumir angústias ou outras doenças dos nervos. Os Gonzaga reproduziram-se em décadas. A sua grande árvore tinha sido plantada desde que o bairro se civilizou, e aquilo que eles eram em número dava-lhes um estatuto de imortais, que conjugado a algumas histórias dava-lhes um estatuto de malucos. A tendência para os desaparecimentos acompanhava-os desde sempre. Faziam-no à noite, por escândalo ou patologia, e regressavam anos depois para dar nota da excursão, cumprimentando a primeira pessoa que vissem como a indiferença de quem a viu ontem. Nunca se sabia a intenção com que um Gonzaga partia, mas caso regressasse encontrava o bairro diferente à custa das mortes e outros factores de deslocação.
Helena conhecia todas estas epopeias da família e chegara a pensar que era tanto prima de Silvestre como do mundo inteiro. Os sonhos com o regresso da mãe apareciam da forma mais inesperada e aconteceram durante muito tempo, levando-a a crescer com o hábito de aplicar a si própria as responsabilidades porque achava o pai demasiado bom para ter culpas. Então redimia-se pondo os fantoches virados para a janela para vigiarem o regresso e jurava a si própria aceitar qualquer condição da vida para que mais ninguém fugisse.
No bairro comentava-se que a morte de Silvestre foi um desaparecimento ideal porque não permitia o seu regresso. Com os Gonzaga nunca se sabia o que podia acontecer, mas faziam-se contas àqueles que faltavam para que desaparecessem para sempre com a sua maluquice. Já tinham sido muitos, mas agora limitavam-se à Helena e aos filhos. Por vezes sentia medo de que um deles fugisse e embora se empenhasse no disfarce, tinha preferências. Sendo igual nos tratamentos, havia momentos em que não conseguia conter um certo orgulho pessoal por ter gerado o Perico, como se naquela gestação tivesse contribuído com mais do que paciência, dores e pão. Ele tinha sido o último homem dos Gonzaga a nascer no bairro e Helena depositava-lhe expectativas que não partilhava. Admirava-lhe as diligências com os negócios e, deitada com os braços atrás da cabeça, questionava se ele não seria mesmo a reencarnação de um bisavô cuja história diz ter feito dinheiro que chegasse para vender o bairro todo como se faz com as almas ao diabo. As pessoas tinham medo destas replicações. Já nem se importavam com as finalidades dos negócios: o Perico que fizesse dinheiro e fugisse.
A memória de Helena era absurda ao ponto de a lembrar com frequência que não queria morrer sozinha. A forma da morte proceder aos seus repentismos, como fez com Silvestre, era uma preocupação que dirigia para os filhos: Perico era o único que lhe poderia dar o cuidado dos últimos dias num bairro cada vez mais só. No meio dos seus percursos por dentro da própria memória acontecia desejar bastante o momento que faria coincidir o abrandamento dos negócios do filho e a sua queda numa cama – onde viveria os últimos dias entretida com a própria cabeça, e com Perico a encenar um compromisso de compra e venda com um fantoche em cada mão. Então ela iria rir-se muito e, num último suspiro, morreria com um ronco. Chegava a pensar tanto na hipótese disto tudo que se esquecia de que tinha outros dois filhos.
Os Gonzaga só geravam malucos. Por isso o estranho caso do Perico não ilibava suposições de traição de Helena ou uma interferência divina que justificasse um pai diferente. Ele não possuía a puridade dos Gonzaga, aquele nariz tinha rectidão em exagero – tudo ao contrário de Isaac e Jeremias. O apego entre os dois irmãos tinha-os envolvido numa sujeição de siameses de alma. Agiam em conjunto nas asneiras e practicavam uma solidariedade na aflição que amenizava todos os castigos. Choravam se fosse preciso, sendo incapazes de lidar com dois processos: o segredo e a mentira. O irmão Perico sabia da maioria das situações em que se metiam, mas agia como se os tivesse em casa por obrigação. Renegava-os até ao início da piedade, usando a mãe como inspiração para não fazer coisas graves e os pensamentos como descarga para os maus impulsos.
Isaac e Jeremias tinham o mesmo ar da infância, e aquilo que o tempo não alterou no rosto deu-lhes em altura para compensar. Ficaram altos e iguais, e os turistas achavam que eles eram pagos por alguém para os receber e carregar as malas pelas ruas íngremes. Forçavam voltas maiores e mostravam-se demasiado cansados para falar qualquer língua, mas esmeravam-se na gesticulação universal de abrir a mão para pedir moedas. Viviam, no fundo, a fazer uma coisa parecida àquilo que fazia o Perico quando era uma criança e lhe detectavam os sinais de má índole. Os irmãos eram a prova de que há crescimentos que evoluem mal. Mas alguma coisa de bom as invasões de turistas com panamás tinham: davam ocupação aos malucos. Para além de carregar as malas, Isaac e Jeremias cediam-se às figuras mais tristes quando pousavam para as fotografias para cumprir os pedidos dos turistas. Subiam para cima de telhados se preciso fosse, ou pegavam em cães ao colo debaixo de um chafariz com a água a correr. Depois ficavam a sorrir de uma maneira preocupante enquanto lhes era prometido que as fotografias seriam enviadas por correio para casa.
Antigamente eles vinham para cá de passagem, num tempo em que encontravam numa varanda com roupa estendida motivações para desenvolver teses e olhavam para dentro das casas pelos postigos como se estivessem num zoo. Mas o negócio do Perico mudou tudo. Se algum Gonzaga desaparecido visse o resultado final da casa velha pensaria que ela tinha vindo do estrangeiro por encomenda, e que depois tinha sido colocada ali aos empurrões como se fazia com os frigoríficos que raspavam o tecto.
Sobre ela discutia-se a serventia no futuro e o nome da cor da fachada, que quando recebia a luz do céu ganhava tonalidades que enfureciam os daltónicos.
Perico olhava com satisfação pessoal para o resultado das obras como certos homens olhavam para os primeiros dias de um carro novo. Ao ver os janelões de vidro e a porta blindada não conseguia deixar de pensar nos tempos em que convencia os turistas a dar-lhe moedas. Durante décadas a casa velha servira como esconderijo para as partilhas de roubo e momentos de erotismo. Alguns primeiros beijos haviam sido dados sob o testemunho das telhas partidas e do cheiro da humidade clássica. Esteve abandonada tanto tempo que Helena era uma das pessoas do bairro que poderiam explicar a quem tinha pertencido. Agora preparava-se para receber turistas por marcação e, por sugestão de Perico, ter uma placa em vinil ao lado do botão da campainha onde se lia “The old house”. A frase que tinha tanto de conceito de marketing como epitáfio.
As pessoas que restavam no bairro eram poucas, mas todas diziam que a culpa da invasão turística era dos Gonzaga. Tal como as profecias que estão na base dos ditados mais pedagógicos, a do fim do bairro tinha chegado e era provocada por uma família de malucos.
Entretanto o Perico continuava a chegar ao bairro acompanhado de homens maus, aos quais apresentava os mais pobres de espírito e de carteira – conceitos que nem sempre viviam juntos. Ninguém se admirava quando um novo negócio terminava bem porque era mais fácil fazer-se aceitar uma boa proposta do que vender uma casa sem dono. Cada vez mais rico, Perico fazia contas às comissões que ganhava e a sensação de cada escritura era parecia àquela que sentia em criança quando acabava uma visita guiada com um grupo de turistas. A sensação chegava a ser tão parecida que, por vezes, pensava até que tinha começado a trabalhar na área em criança e que apenas tinha mudado de departamento. Os últimos velhos que passaram a vida a agoirá-lo eram agora os mesmos que receavam que ele chegasse com alguém poderoso, ou até com os seus próprios filhos, para os expulsar de casa. Então punham-se na cama e faziam força para morrer porque achavam que era uma solução melhor do que sair do bairro depois de ver uma placa junto à porta.
O orgulho que Helena tinha pelo Perico equilibrava a violência das ofensas que recebia. Os Gonzaga eram malucos há décadas, mas nunca ninguém tinha suposto que um casamento entre primos fosse resultar numa tragédia tão grande. Afinal o verdadeiro talento dos Gonzaga era correr até cansarem o azar, que nunca os conseguia apanhar. Essa corrida, que durava desde do começo do bairro e da história da família, parecia agora abrandar porque restavam poucas casas para vender e vizinhos para expulsar. Mas ainda havia uma porta para bater. Depois de saberem de mais um negócio que o Perico conseguia finalizar, alguém lesado ia até à casa dos Gonzaga para ofender Helena. Davam murros nas paredes, chamavam-na de porca e vaticinavam de que mais tarde ou mais cedo o filho acabaria por vender a casa com ela lá dentro. Um murro mais intenso fizera até cair um dos fantoches que estava com a cara encostada ao vidro da janela.
Manuel Gonzaga era bonito no meio de uma família com tradição do contrário, e sendo ele o último rapaz da linhagem isso acrescentava ironia em contornos de desconfiança. Como na sua infância foi alvo de preocupações mais ligadas ao seu instinto do que à sua proveniência paterna, a única coisa que se apurou com veracidade foi que a sua alcunha derivou de um episódio em que tentara roubar um pote de gorjetas. Tinha só seis anos, mas ligou-se menos a astúcia à irresponsabilidade da idade do que aos distúrbios de um Gonzaga.
As pessoas diziam que eles só sabiam gerar malucos, mas acabaram os últimos dias a dizer que sempre era melhor isso do que gerar o fim. A casa onde os Gonzaga sempre viveram era a única no bairro que ainda não tinha uma placa na fachada com um número de alvará de alojamento provisório. Era lá que os turistas iam quando queriam ver uma coisa com alguma tipicidade, porque ao segundo dia de estadia no bairro já se sentiam fartos de só se verem uns aos outros – como se tivessem mudado de país, mas não de pessoas.
As últimas notícias da família davam conta de que o Perico, tal como era vício ou destino nos Gonzaga, tinha desaparecido com o dinheiro dos negócios depois de cortar o cordão que o ligava à mãe, que Helena adoecera como previa, vivendo no quarto, de janela aberta, a roncar para assustar os turistas que se aproximavam para a fotografar, e que Isaac e Jeremias passavam o tempo sentados no chão a abrir os envelopes que todos os dias chegavam com fotografias suas. Foi ao ver uma dessas imagens que os dois irmãos tontos começaram a rir de uma maneira asburda. Já não se lembravam de como era o seu próprio nariz.