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Em Portugal, a prisão perpétua e a pena de morte são consideradas inconstitucionais. Segundo os dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a maioria das penas aplicadas não excederam, em 2020, os nove anos de prisão. Deste modo, a vasta maioria das pessoas que estão reclusas recupera, em algum momento, a sua liberdade.

Nesse caso, para que servem as prisões? Cumprem os seus propósitos? E sempre existiram?

Índice:

Introdução

Perspetiva Histórica

Sistema Prisional Português no Séc. XXI

Outros Sistemas Prisionais

Alternativas à prisão

Podcast

No ponto de interseção entre a Travessa de São Pedro e a Rua da Rosa no Bairro Alto, em Lisboa, avista-se um portão verde-escuro que concede passagem a um largo corredor com o teto côncavo. Sentado numa cadeira junto ao portão aberto, do lado esquerdo do corredor, um homem segura nas mãos um telemóvel, inclinando-se para a frente com os cotovelos cravados nos joelhos. Em oposição direta, no lado direito do corredor, uma segurança regista as informações pessoais das pessoas que trespassam a entrada do número oito.

Trata-se da Casa do Impacto, situada no antigo Convento de São Pedro de Alcântara, que é hoje a residência de projetos de empreendedorismo e iniciativas sociais. O indivíduo que nos esperava sentado junto ao portão chama-se Paulo* e é beneficiário de uma delas, a Reshape, uma organização sem fins lucrativos que tem como principal missão “garantir a reinserção digna de todas as pessoas que estão ou estiveram presas”, como se lê no site.

O relógio marca as 14h04 e a Responsável de Apoio Social da Reshape, Catarina Medeiros, recebe-nos e encaminha-nos para uma sala no 1.º piso. Para os desconhecedores, caminhar pelos pisos da Casa do Impacto é como desbravar um labirinto de corredores. Os artistas, startups, empreendedores e ativistas que partilham o espaço fazem com que o silêncio nunca habite as paredes do antigo convento.

A sala em que nos sentamos assemelha-se a um largo elevador com uma janela na parede frontal. É a segunda vez que conversamos com o Paulo e o seu tom de voz, mais alto e confiante do que quando nos conhecemos, transmite a ideia de que se sente mais confortável. No fim de semana anterior à nossa conversa, em julho, Paulo tinha acabado de fazer 44 anos, possuindo um currículo que dá conta da sua multiplicidade de experiências.

Aos 16 anos começou a trabalhar como ajudante de eletricista, mas decidiu inscrever-se num curso de serralharia e nos cerca de seis anos seguintes foi empregado numa empresa em que se dedicava à construção da armação de alumínio de tendas e toldes para parques de campismo. Quando desistiu, alistou-se no Exército porque o seu tio era militar e incentivou-o a candidatar-se. Entrou para os Rangers, onde desempenhava funções de atirador-explorador, mas recusou executar a segunda missão que lhe atribuíram, em Kosovo, e foi forçado a abandonar.

Depois da tropa, regressou às fardas, desta vez como segurança, mas a empresa para a qual trabalhava abriu insolvência e, por isso, decidiu mudar de rumo. “Tentei hotelaria”, conta, “comecei na copa, depois como empregado de mesa, de balcão, e como barman”, no entanto, acabou por desistir. Regressou à área da construção, mas o trabalho era pesado e optou por desempenhar trabalhos de produção no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Atualmente, encontra-se desempregado.

Em outubro de 2018, Paulo foi condenado a uma pena de prisão de quatro anos e durante dois meses aguardou a colocação num Estabelecimento Prisional (EP) na Polícia Judiciária de Lisboa. Acabou por ser colocado no EP de Caxias, onde passou pelo “Vietname”, nome que os reclusos atribuem às celas do rés-do-chão, onde os entrados aguardam a subida para os pisos superiores. Após a condenação, “Paulo” foi substituído por “137”. “Quando fui condenado, trataram-me logo pelo número, antes ainda diziam o nome”, confessa.

Após a passagem pelo “Vietname”, Paulo subiu para o 3.º piso, para as “celas de quatro”, onde “é mais calminho” e “já não é tão sujo porque quatro pessoas limpam bem a cela”, explica. Não ficou neste piso durante mais de dois meses, porque foi um dos escolhidos para trabalhar na distribuição de refeições e nas limpezas, pelo que foi transferido para o 2.º Direito. “Partilhava a cela com sete pessoas, mas era muito grande, era a cela dos trabalhadores”, conta. Jardineiros, eletricistas, responsáveis pela manutenção, distribuição de comida e limpezas, eram algumas das ocupações dos residentes daquele piso.

Por volta das 8h30, levantava-se e procedia à distribuição dos pequenos-almoços dos reclusos do 3.º piso. Quando terminava, regressava à cela e comia a sua refeição. Às 11h30 era hora de ir buscar e distribuir os almoços e a rotina era a mesma. Pelas 17h30, o procedimento repetia-se para os jantares. As 19 horas marcavam o fecho de todas as celas até à manhã do dia seguinte, mas Paulo varria e lavava o chão do piso, por isso era fechado mais tarde, entre as 19h30 e as 20 horas.

Esta rotina, conjugada com visitas ao ginásio e à biblioteca do EP, marcou o quotidiano de Paulo durante cerca de quatro anos, até ser libertado, em 2022. Em retrospetiva, pensa a prisão como um castigo e recorda-se de ter de se “agarrar às coisas boas” enquanto esteve afastado da sociedade. Mas é esse o objetivo da reclusão? E será que sempre existiram prisões?

História das Prisões

A privação da liberdade como solução humana e progressista

Na introdução da obra Are Prisons Obsolete?, publicada em 2003, Angela Davis sustenta que, para a maioria da população a nível mundial, a prisão é considerada como uma instituição inevitável e permanente. A autora defende que chega a ser tomada como tão natural que se torna difícil imaginar-se uma realidade sem ela. No entanto, a privação da liberdade nem sempre foi o modo predominante de punição das pessoas que cometiam crimes.

A prisão enquanto forma penal como é hoje concebida é relativamente recente, e, no caso português, remonta ao século XIX. Porém, os espaços de reclusão sempre existiram. Alexandra Esteves, Professora Auxiliar com Agregação no Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, explica que, para os Gregos na Antiguidade Clássica, a prisão já existia e desempenhava uma função coerciva.

A docente assevera que os “Gregos já tendiam a colocar em prisões aqueles que tinham dívidas” e, no caso dos romanos, a prisão tinha, sobretudo, uma finalidade de custódia. “[Os romanos] tinham o hábito de encerrar as pessoas durante o período em que a Justiça estava a atuar, era o local onde as pessoas aguardavam pela aplicação da pena”, reitera. Esta finalidade da prisão enquanto espaço de espera e de custódia vai manter-se até ao século XVIII.

Na Idade Média e Moderna, as penas mais aplicadas (para as classes populares) consistiam no degredo, nos trabalhos públicos, no trabalho nas galés, na morte e nos castigos corporais. Esteves menciona que, nos séculos XVI e XVII, eram comuns os “espetáculos públicos baseados no sofrimento físico e na aplicação de martírios” e que as “execuções públicas eram os verdadeiros momentos da Justiça” em que se visava, sobretudo, o castigo através do corpo, com “uma finalidade pedagógica e um efeito dissuasor: procurava-se fazer do criminoso um exemplo”.

Segundo o autor e filósofo francês, Michel Foucault, é a partir dos finais do século XVIII e inícios do século XIX que os castigos e torturas corporais começam a ser infligidos cada vez menos e a reclusão começa a surgir como o método preferencial de punição. Na obra Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão (1975), o autor reforça que, neste período, o corpo deixa de ser o principal alvo da repressão penal e o castigo dos condenados enquanto “espetáculo” ou entretenimento começa a desaparecer.

A investigadora da Universidade do Minho fundamenta esta alteração com base no desenvolvimento de uma “maior sensibilidade para com o corpo e o outro”, o que fez com que a tortura e os espetáculos públicos começassem a “ser encarados como algo pouco humano”. O debate em torno do uso da privação da liberdade como forma de punição surge, então, quando se começa a pensar o crime de forma diferente.

“[O crime] deixa de ser perspetivado como um atentado contra o monarca ou Deus e começa a ser pensado como um atentado contra a sociedade”, clarifica Esteves, e, nessa perspetiva, cabe à “sociedade punir os indivíduos com o que se considerava que tinham de mais importante: a sua liberdade”.

Deste modo, em comparação com a aplicação da morte e de castigos corporais, a privação da liberdade surgia, a partir dos finais do século XVIII, como uma forma mais humana e progressista de punir os indivíduos que cometiam crimes.

A privação da liberdade: o caso português

Em Portugal, o uso da privação da liberdade como modo predominante de punição começou a verificar-se com a implantação do liberalismo. Porém, Maria João Vaz, docente e diretora do Departamento de História do ISCTE, dá conta da existência de dois períodos distintos: a defesa teórica da ideia e a respetiva aplicação prática.

A historiadora explica que, mesmo no período final do Absolutismo, durante o reinado de D. Maria I, no final do século XVIII, e depois com a regência de D. João VI, o debate sobre a aplicação da privação da liberdade já circulava no país. Contudo, apenas com a Revolução Liberal de 1820 e com a vitória definitiva do liberalismo, em 1834, é que “a ideia de que é preciso terminar com as penas a que chamavam de infamantes, degradantes e cruéis” e substituí-las por um “outro regime penal que tenha como objetivo a regeneração” se verifica, elucida Vaz.

É também com o liberalismo que a igualdade de todos perante a lei se começa a instituir. Alexandra Esteves explica que, antes da vitória liberal, a justiça era aplicada de forma diferente consoante a condição social do indivíduo. O mesmo crime, cometido por pessoas de condição social diferente, levaria a uma pena distinta e, noutros casos, a mesma pena era aplicada de forma diferente. “As pessoas que pertenciam ao Terceiro Estado [o povo] tinham uma justiça mais dura e pública”, afirma a docente.

Em 1852, é publicado o primeiro Código Penal português e, a partir da segunda metade do século XIX, verifica-se uma maior tentativa de reformar e adequar as prisões àquilo que eram os pressupostos que deveriam cumprir, nomeadamente, a regeneração do delinquente. “A ideia não era arranjar um espaço onde a pessoa ficava detida e não se fazia nada”, mas antes a pessoa era detida para “se poder trabalhar, juntamente com ela, a sua recuperação para o convívio em sociedade”, esclarece Maria João Vaz.

Segundo Foucault, as penas atribuídas seriam menos motivadas pelo desejo de punir e castigar os condenados e começariam a centrar-se mais na correção e na “expiação dos males” dos delinquentes. Em Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, o autor argumenta que na justiça moderna se começa a verificar o crescimento de um sentimento de vergonha associado à tarefa de castigar. O filósofo escreve que a crueldade dos castigos aplicados começara a ser equiparada aos próprios crimes cometidos pelos condenados, quando não excediam a crueldade dos mesmos.

Apesar do seu caráter progressista, Alexandra Esteves sustenta que a ideia de que é possível regenerar os indivíduos que haviam cometido um crime surge associada à valorização do trabalho. A ideia, que começa a vigorar na Europa a partir do século XVI, de que se poderiam enclausurar os “indivíduos indesejáveis da sociedade” e depois “submetê-los a uma determinada disciplina e hábitos de trabalho para os recuperar e retirar os respetivos proveitos económicos”, serviu de exemplo para o que poderia ser o modo de operação das cadeias, explica a docente.

No dia 28 de fevereiro de 1860, o então ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Martens, apresentou à Câmara dos Deputados uma Proposta de Lei de Organização Judicial. No relatório que antecedeu a apresentação da proposta, o ministro escreveu, sobre a regeneração, que “a emenda dos culpados apresenta um espetáculo mais próprio da civilização de que gozamos, do que esses velhos exemplos em que se fazia descer a humanidade à última escala da degradação. A pena, desligada da ideia de reabilitação degrada o homem que a sofre, e a sociedade que a impõe”.

Este processo e hipótese de regeneração do delinquente estava associada à introspeção, ao trabalho, ao ensino e à prática religiosa. Segundo Vaz, considerava-se que o trabalho permitia à pessoa libertar-se dos seus vícios e o fomentar da disciplina. A educação era também central, visto que se achava que um espírito esclarecido, em princípio, não enveredaria por caminhos errados. Já a religião, apesar do espírito laico dos liberais, permitia fomentar valores que possibilitariam a recuperação para a vida em sociedade.

A delinquência e o papel do género

No século XIX, homens e mulheres não tinham o mesmo estatuto social ou legal, pelo que a forma através da qual os dois géneros eram pensados em relação ao trabalho, família e educação era diferente. O mesmo se aplicava à atividade criminosa.

Desde logo, considerava-se que homens e mulheres tinham uma inclinação para formas criminais diferentes. Maria João Vaz indica que as mulheres eram mais associadas à prostituição, embora a atividade não tenha sido sempre criminalizada, a abortos, infanticídios e a envenenamentos, não sendo tão implicadas em agressões físicas ou crimes violentos. “É uma construção estereotipada da forma como é encarada a mulher, o seu caráter e o papel que lhe é atribuído” porque implica que “quando a mulher mata, fá-lo de forma dissimulada”.

De acordo com Alexandra Esteves, o facto da condição da mulher estar mais associada a valores como a honradez, virtude e castidade, fazia com que “uma mulher que ingressava no universo da criminalidade era uma mulher manchada, que carregava mais o estigma do crime”. Desta forma, a mulher era considerada “um ser simultaneamente frágil e perigoso” associado à “imagem da mulher tentadora e responsável por algum ato imoral”, explica a investigadora.

Por outro lado, o estatuto subalterno da mulher também contribuía para a sua desresponsabilização. “Desculpabilizava-se mais as mulheres pelo facto de serem consideradas menos eruditas e menos capazes”, atesta Vaz, pelo que as suas atividades criminais eram com frequência atribuídas ao facto de serem menos cultas. No entanto, a capacidade de regeneração era igualmente válida para homens e mulheres.

A abolição da pena de morte

De acordo com os dados que constam no site da Assembleia da República, a última execução de uma mulher deu-se no ano de 1772 e, na cidade de Lagos, em 1846, deu-se a última execução de um homem. No entanto, só a 1 de julho de 1867 é abolida a pena de morte para crimes civis, em Portugal. Para crimes políticos, a pena de morte havia sido abolida em 1852 e, em 1911, seria abolida para crimes militares.

Já em fevereiro de 1867, Barjona de Freitas, então Ministro dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, apresentou, na Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, uma proposta de lei sobre a reforma penal das prisões que contemplava a abolição da pena de morte para os crimes civis. O ministro afirmou que a pena de morte “paga o sangue com o sangue, mata, mas não corrige, vinga, mas não melhora, e, usurpando a Deus as prerrogativas da vida e fechando a porta ao arrependimento, apaga no coração do condenado toda a esperança de redenção e opõe à falibilidade da justiça humana as trevas de uma punição irreparável”.

Apesar de constituir um marco histórico, verificam-se discórdias em relação ao impacto da abolição da pena de morte para o sistema prisional português. Para Alexandra Esteves, este não foi significativo, visto que “desde a Idade Moderna que os nossos monarcas gostavam de ser encarados como benevolentes e misericordiosos”, pelo que apesar de existirem muitas condenações à pena capital, era frequente o monarca comutar a pena. Nestes casos, o degredo era muito utilizado, sobretudo devido ao interesse de o instrumentalizar para colonizar os territórios do império português.

Por sua vez, para Maria João Vaz, a abolição da pena de morte constituiu um marco pioneiro muito diferenciado de outros países europeus. “Na altura, Portugal não tinha os elementos que, regra geral, ocorrem nos países que fizeram a abolição da pena de morte: desenvolvimento económico, no caso português era de subdesenvolvimento crónico; e a democratização, porque o liberalismo não é democracia”, afirma.

Ao contrário de Estados como a Itália, Portugal nunca recuou nesta decisão. “Mesmo em períodos complicados, como o regicídio e a ditadura, [a pena capital] nunca foi reintroduzida”, explica Vaz.

O falhanço dos objetivos de regeneração

Não obstante as intenções regeneradoras, as cadeias do século XIX continuavam a ter as mesmas características que possuíam nos séculos anteriores. De acordo com Esteves, eram “masmorras fétidas, sem as mínimas condições de habitabilidade, pelo que não havia espaço para a reabilitação dos indivíduos”.

A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) escreve no seu site que os resultados práticos da ideia de apoio social dos reclusos se revelaram incipientes até ao fim da Segunda Guerra Mundial. A DGRSP salienta ainda o facto de o sistema penal ter acolhido o princípio da ressocialização através da reforma prisional de 1936, o qual veio depois constar do Código Penal, ordenando finalidades de execução da pena de prisão, em 1954.

Um dos conceitos introduzidos pela reforma prisional de 1936 foi o da “reeducação” dos presos políticos e sociais. Porém, também se considerava que existiam delinquentes que não eram “reeducáveis”. Durante a ditadura salazarista, as prisões eram cada vez mais utilizadas para prender os opositores políticos do regime. A prisão de Caxias, na qual Paulo esteve preso, foi uma das cadeias utilizadas para esse efeito.

Nos dias de hoje, a distância entre as intenções de reabilitação e a respetiva prática continua a afigurar-se significativa. Historiadores, investigadores, sociólogos, ativistas, técnicos de reinserção social e guardas prisionais têm algo em comum: a crença de que o sistema prisional vigente não consegue e não está a cumprir os objetivos e finalidades que lhes são atribuídas por lei.

O sistema prisional português: o séc. XXI

A privação da liberdade e o ideário ressocializador na lei portuguesa

O Artigo 27.º da Constituição da República estabelece o direito à liberdade e à segurança. Porém, a alínea três do mesmo artigo define em que situações se prevê que o direito à liberdade, ainda que fundamental, pode ser restrito.

A associação entre liberdade e segurança surgia já na Constituição de 1822, com a tríade “Liberdade, Segurança e Propriedade”. Cláudia Santos, doutorada em Ciências Jurídico-Criminais e deputada pelo Partido Socialista na Assembleia da República, explica que “toda a justiça penal procura conciliar liberdade com segurança” com o objetivo de “encontrar um ponto em que nenhuma das finalidades conflituantes sejam completamente aniquiladas”.

Apesar da possibilidade de privação da liberdade, a Constituição institui, no seu Artigo 24.º, que “em caso algum haverá pena de morte” e no seu Artigo 30.º é estabelecido que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”.

Por sua vez, o Código Penal português estabelece, no seu Artigo 40.º, as finalidades das penas e das medidas de segurança. A alínea um estipula que a “aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Cláudia Santos atesta que este ideário ressocializador é uma tradição no direito penitenciário português.

A professora de Direito Penal na Universidade de Coimbra, atualmente com o contrato suspenso pelo desempenho de funções enquanto deputada, explica que até ao Código Penal de 1982, a lei portuguesa não indicava de forma específica qual era a finalidade das penas. Alguns autores defendiam a finalidade do castigo e da retribuição e outros favoreciam a ressocialização. “O legislador, em 1982, resolveu deixar expresso que, no Direito português, as finalidades são exclusivamente preventivas”, explica.

O artigo 40.º do Código Penal foi depois transposto para o Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado em outubro de 2009, que estabelece no seu Artigo 2.º do capítulo relativo aos “Princípios gerais” que as finalidades da execução de penas visam “a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (…)”.

No entanto, a deputada considera que muitos cidadãos não compreendem ainda o interesse público da ressocialização das pessoas que estão reclusas. “O interesse é de toda a comunidade, porque quando o recluso termina o cumprimento da sua pena, volta à vida em sociedade”, defende, e é do “interesse de todos que a pessoa regresse à vida em liberdade o mais ressocializada possível”. Santos argumenta assim que a reinserção não é defendida tendo apenas em conta os direitos dos reclusos, mas porque é “útil a toda a sociedade”.

Além das finalidades da execução de penas, o CEPMPL estipula também os direitos e deveres das pessoas que estão reclusas. Santos explica que a este nível também se tem verificado uma evolução legislativa no sentido da ressocialização. “O cumprimento de uma pena de prisão deveria significar apenas a restrição da liberdade ambulatória e o recluso deveria poder manter os seus outros direitos”, aufere a deputada, mas, “na verdade, há um conjunto de direitos que acabam por ser restringidos”.

Cláudia Santos é membro suplente da Subcomissão para a Reinserção Social e Assuntos Prisionais e reconhece que, em relação ao direito ao trabalho, “o número de reclusos que quer trabalhar é superior ao número de vagas existentes nas oficinas prisionais”.

O sistema prisional português em números

O punitivismo do sistema prisional português

Portugal é o segundo país da Europa em que as pessoas que estão reclusas passam, em média, mais tempo na prisão. Os dados constam do Relatório das Estatísticas Anuais Penais para o Conselho da Europa de 2021, que indicam que apenas o Azerbaijão, com uma média de 34.6 meses, supera os valores portugueses, de 31.4 meses. O mesmo relatório revela que as taxas de encarceramento portuguesas, cerca de 110.8 reclusos por cem mil habitantes, são ainda superiores à mediana europeia, situada nos 101,8 reclusos por cem mil habitantes.

No ponto nove da Introdução do Código Penal português é possível ler-se que: “no momento actual, não pode o Código deixar de utilizar a prisão. Mas fá-lo com a clara consciência de que ela é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário e que haverá que harmonizar o mais possível a sua estrutura e regime com a recuperação dos delinquentes a quem venha ser aplicada”.

Cláudia Santos explica que o Código Penal de 1982 criou um catálogo de penas de substituição ou alternativas que existem para substituir a pena de prisão. “O legislador penal, no Artigo 70.º, manifesta uma preferência pelas penas não privativas da liberdade”, afirma a deputada, mas acrescenta que é “verdade que precisamos de fazer progressos no que respeita à utilização dessas penas de substituição”.

Marco Ribeiro Henriques, jurista e investigador no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Universidade NOVA de Lisboa, crê que, atualmente, existe uma ideia de severidade entre a população portuguesa que contribui para o maior punitivismo do sistema. “Em Portugal, temos uma resistência muito grande à flexibilização” porque “embora existam instrumentos jurídicos para o fazer, a liberdade condicional é raramente atribuída na primeira fase em que é possível”, exemplifica o investigador. Acrescentando que “há ainda uma narrativa, um discurso institucional e uma prática que é desfasada do corpo jurídico que hoje existe e regula a questão prisional”.

Apesar das taxas de encarceramento portuguesas serem superiores à mediana europeia, Portugal integra, em simultâneo, a lista de 50 países com baixa criminalidade e elevada resiliência ao crime organizado, entre os 193 estados-membros das Nações Unidas. Os dados constam do relatório Global Organized Crime Index 2021, publicado pela Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional.

O sociólogo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Carlos Nolasco, argumenta que existe um desajuste entre a baixa criminalidade existente em Portugal e as respetivas taxas de encarceramento que é, em parte, provocado por uma “falta de sensibilidade por parte de quem condena”. Para o investigador, a pena de prisão é utilizada com uma frequência injustificada e por grandes períodos de tempo.

Já para Cláudia Santos, não se trata de uma questão de sensibilidade, alertando antes para a responsabilidade da sociedade. “A aplicação de penas de substituição em maior número implica que estejam reunidos um conjunto de pressupostos, como a prestação de trabalhos para a comunidade”, explica.

Estes casos pressupõem que “a comunidade esteja disposta a ter pessoas que saíram há pouco tempo de um EP a tratar dos jardins ou a desempenhar outras funções, tendo nós contacto com eles todos os dias”. Santos advoga que as penas de substituição serão mais utilizadas quando a comunidade se revelar mais disponível para participar nos esforços de ressocialização.

Segundo Dores, sabe-se há muito que Portugal é um país onde a criminalidade é baixa e que “não há razão comparativa para termos as taxas de encarceramento que temos”. No entanto, não é fácil traçar explicações para a relação entre os dois valores. De acordo com um estudo referente aos EUA, do Vera Institute of Justice, publicado em 2017 e intitulado The Prison Paradox: More Incarceration Will Not Make Us Safer, elevadas taxas de encarceramento não são sinónimo de sociedades mais seguras.

No estudo lê-se que, desde 2000, o uso crescente de encarceramento foi responsável por quase zero por cento da redução verificada no crime. O documento indica que 75 a cem por cento da redução das taxas de criminalidade, desde os anos 90, são explicadas por outros fatores. Aponta -se para o envelhecimento da população, o aumento nos salários e da empregabilidade e o aumento da educação como alguns dos fatores associados à redução da criminalidade e que, de forma coletiva, explicam melhor a redução do crime do que o encarceramento.

O documento salienta ainda o facto de que diferentes estudos têm demonstrado que altos níveis de encarceramento podem até mesmo contribuir para o aumento da criminalidade. Uma das razões apresentadas é o facto da reclusão causar a quebra de laços sociais e familiares que afastariam determinadas pessoas da atividade criminosa, ao mesmo tempo que provoca a redução dos vencimentos das famílias afetadas. O estudo indica também que, ao nível individual, existem dados que suportam o argumento de que cumprir uma pena de prisão aumenta a probabilidade da pessoa recorrer a atividades ilegais de novo, no futuro.

Estes dados são suportados pelo facto de fatores como ambientes familiares e sociais desestruturados e dificuldades económicas serem, com frequência, reconhecidos nas pessoas que estão reclusas. Marco Ribeiro Henriques assinala que “os crimes que são maioritários na prisão e que levam mais pessoas a ficarem presas, vêm sobretudo de uma ausência da intervenção de Estado a montante”.

O jurista acrescenta que as “pessoas mais desfavorecidas, não bem integradas ou mesmo não integradas, muitas vezes não optam por cometer o crime”, mas são antes “conduzidas a uma lógica de sobrevivência que vai redundar em lógicas criminais”.

Dentro da prisão. Como são os Estabelecimentos Prisionais portugueses?

Existem 49 Estabelecimentos Prisionais (EP) no território nacional, classificados em função do nível de segurança (especial, alta e média) e do respetivo grau de complexidade de gestão (elevado e médio). O EP de Monsanto é o único classificado como segurança especial, ou seja, segurança máxima.

O CEPMPL constitui o instrumento de referência para o funcionamento dos EP e encontra-se regulamentado no Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais. Segundo o site da DGRSP, este documento “garante uniformidade e igualdade na aplicação da regulamentação em vigor no conjunto do sistema prisional”.

Apesar de reconhecer a humanidade da legislação portuguesa, Duarte Fonseca, Diretor Executivo da Reshape, considera que o documento legislativo, que regulamenta o dia-a-dia de um EP português, não permite atender às especificidades de cada um. “Temos um [Regulamento Geral] para 49 EP, quando os 49 são distintos”, defende. Fonseca acredita que “não existe uma solução que seja igual ou que funcione para todos, [é] o problema de quando temos um sistema de grande ou média escala”.

A desadequação do parque prisional português face às intenções ressocializadoras contempladas na lei é também um dos problemas apontados em relação à gestão e funcionamento das prisões. O investigador Marco Ribeiro Henriques considera que Portugal não possui “as estruturas adequadas para a estratégia humanista que o Estado deseja”.

O relatório Prison conditions in Portugal, publicado pelo European Prison Observatory, em 2020, dava conta de que a maioria dos edifícios prisionais estão envelhecidos. Os autores do documento frisam que, apesar da inauguração de programas de renovação, em 2001, que possibilitariam a modernização do sistema prisional, a crise financeira fez com que, com a exceção de Caxias e da Carregueira, “todos os planos para construir novas prisões fossem interrompidos e o descomissionamento de antigas instalações prisionais foi revertido”, lê-se.

Apesar de terem sofrido algumas modificações ao longo das décadas, existem EP portugueses cuja construção data de finais do século XIX e da primeira metade do século XX. Deste período pode mencionar-se o EP de Coimbra, construído em 1889, cuja configuração obedece ainda ao Sistema Panóptico de Bentham. Na segunda metade do século XIX foi também construído o Forte de Monsanto, atual EP de Monsanto, que após as obras de remodelação, em 2007, foi classificado como EP de Segurança Máxima, único em Portugal.

O sociólogo Carlos Nolasco defende que deveria investir-se numa revisão do parque prisional português. “As prisões têm perfis em que as estruturas não se compadecem com as pretensões de reinserção”, reitera. Nolasco crê que alguns dos edifícios prisionais existentes não estão vocacionados para a atual conceção de Direitos Humanos.

O parque prisional e as más condições

Sentado numa das salas do primeiro piso da Casa do Impacto, Paulo ri-se ao mesmo tempo que coloca as suas mãos sobre a mesa à sua frente. Afasta-as cerca de vinte centímetros uma da outra e aponta para a frente com os indicadores. “Às vezes, na cozinha, havia ratos deste tamanho”, conta, “pareciam coelhos”.

Segundo Paulo, no ginásio caíam, por vezes, objetos do teto enquanto os homens praticavam exercício físico. No entanto, era mais frequente encontrá-lo na biblioteca da prisão. “A biblioteca era o único sítio em que estava mais calminho, tinha aquecedor, estava arranjadinho, passava lá muito tempo”, confessa.

Portugal já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos devido à violação do Artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, relativo à proibição da tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. Em causa esteve o caso de Daniel Petruscu, cidadão romeno preso em Portugal, em razão da falta de condições dos EP em que cumpriu pena: o EP de Pinheiro da Cruz e o EP de Lisboa, em 2019. Este ano, dois cidadãos portugueses, Márcio Pereira e Diamantino da Silva, também receberam uma indemnização pelas condições desadequadas das suas detenções, no EP de Coimbra.

O relatório Prison conditions in Portugal denuncia que os EP portugueses sofrem com frequência da falta de condições de higiene e de salubridade. Lê-se no documento que “as instalações são precárias e mal cuidadas” e que “os reclusos têm de limpar as suas celas com os seus próprios produtos de limpeza adquiridos na loja da prisão (quando podem comprá-los)”.

Carlos Sousa, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP), atesta que as “as condições de reclusão de uns são as condições de trabalho de outros”. O Guarda Prisional, que trabalha no EP do Porto há cerca de dez anos, já passou pelo EP do Linhó e de Caxias. “A maioria das nossas viaturas estão a atingir um milhão de quilómetros, e as próprias chaves que usamos e o peso das portas que abrimos, tudo isso são condições de trabalho”, reitera.

Sousa acredita que são feitos alguns esforços de modernização, mas o “parque prisional está muito envelhecido”. O presidente do Sindicato aufere que “enquanto o sistema prisional português for visto como um custo e não como um investimento, vamos continuar neste depauperar de condições, quer para o Corpo da Guarda Prisional (CGP), quer para os reclusos”.

A qualidade da comida também é alvo de críticas. “O frango vinha sempre cru e mal feito porque eles descongelam e metem no forno e aquilo não cozinha”, conta Paulo. O relatório Prison conditions in Portugal revela que a quantidade de comida oferecida é, muitas das vezes, “inadequada” e “a qualidade é muito pobre”. O documento dá conta de que 4 euros por prisioneiro por dia é a “quantidade alocada para os contratos das empresas responsáveis pelas refeições”, que não são submetidas a “qualquer tipo de standards/controlo de qualidade”.

Carlos Nolasco atesta que “o que as prisões muitas vezes fazem é retirar a dignidade às pessoas”, através da falta de condições de higiene e salubridade. “Apesar de as pessoas estarem a cumprir um castigo, esse castigo é a privação da liberdade, não podemos com esse argumento violentar outros direitos a uma vida digna”, defende.

Marco Ribeiro Henriques assinala que tem existido um esforço por parte do sistema prisional em reverter estas situações, mas acredita que as lacunas existentes podem traduzir-se num “insucesso dos processos de reinserção” e no avolumar das questões de saúde. “É preciso que o tratamento prisional seja humanizado, já não estamos no plano do retribucionismo, o plano agora é humanista, assente no indivíduo”, afirma.

A sobrelotação: um problema que persiste

A par da falta de condições de higiene e de salubridade, a sobrelotação tem-se afigurado um problema frequente, em Portugal. Alexandra Esteves explica que já na segunda metade do século XIX os espaços prisionais eram, sobretudo, “grandes pavilhões sobrelotados que ultrapassavam largamente a capacidade limite dos edifícios” e que “há séculos que muitas [prisões] funcionavam naquelas condições”.

Em 1996, a Provedoria da Justiça referia, no seu primeiro Relatório Sobre o Sistema Prisional, que a sobrelotação existente constituía um “poderoso obstáculo a um internamento adequado dos reclusos”. De acordo com o documento, nesse ano, dois EP chegaram a atingir uma taxa de ocupação superior a 400 por cento: o EP de Guimarães (490%) e o de Portimão (440%).

O Relatório de Atividades e Autoavaliação 2020 da DGRSP assinala que a taxa de ocupação das prisões, a nível nacional, é de cerca de 87,1 por cento. Este valor tem vindo a decrescer desde 2015, quando a taxa de ocupação era de cerca de 114 por cento, o que evidencia que a sobrelotação tem vindo a manifestar progressos positivos nos últimos anos.

Ainda assim, o mesmo relatório dá conta de que existem ainda EP cujo nível de ocupação é superior à capacidade das instalações. Segundo o documento, em 2020, a Clínica Psiquiátrica e Saúde Mental (inimputáveis) registava uma taxa de ocupação de cerca de 107,1 por cento e existiam quatro EP com grau de gestão elevada com a taxa de ocupação superior a cem por cento. Já os EP de nível de gestão média registavam 12 instalações com esses valores.

A sobrelotação existente faz com que em alguns EP não seja cumprido o estipulado no Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais em relação ao alojamento. A alínea um do Artigo 197.º do documento estabelece que o “alojamento é sempre efetuado em cela individual”. Duarte Fonseca argumenta que “se vivo numa cela que tem cinco ou dez pessoas, o grau de individualidade perde-se, e se perco a minha individualidade, passei a ser um número”.

O Diretor Executivo da Reshape acredita que ainda há um “grande caminho a fazer” para pôr em prática a legislação, pensada à luz da reinserção social.

O acesso à saúde e a existência de violência

O Relatório da Provedoria da Justiça de 2020 informava que o número de queixas efetuadas referentes ao sistema prisional tinha aumentado em oito por cento face ao ano anterior. Cerca de 15 por cento das 170 queixas realizadas estavam relacionadas de forma direta com a pandemia da covid-19.

No documento lê-se que “o acesso a cuidados de saúde, a ação disciplinar e a afetação a determinado estabelecimento mantiveram-se como temas mais frequentes de queixa, com especial relevo para o primeiro”. A articulação entre o sistema penitenciário e o Sistema Nacional de Saúde (SNS) é caracterizada como um problema “sempre presente”. Verificaram-se adiamentos de consultas e cirurgias já programadas e atrasos na primeira referenciação.

No Relatório da Provedoria da Justiça de 2021 lê-se que as “queixas apresentadas sobre o sistema prisional subiram de modo significativo (24%), representando o segundo maior valor dos últimos dez anos”. Apesar da diminuição de queixas relacionadas com a pandemia de covid-19, o acesso a cuidados de saúde manteve-se como a questão que suscitou maior número de queixas.

A falta de profissionais de saúde nos EP também não é um problema recente. Apesar do Ministério da Justiça ter anunciado, em dezembro de 2017, que o valor anual a despender pela prestação de cuidados de saúde nas prisões e centros educativos no triénio 2018-2020 seria de quatro milhões de euros, os problemas persistem. Em abril de 2018, o PÚBLICO noticiava que existiam apenas cerca de 30 psicólogos nas prisões e que estes ganhavam cerca de cinco euros brutos à hora.

Por sua vez, as Estatísticas Anuais Penais para o Conselho da Europa 2021 revelam que a taxa de suicídio por 10 mil reclusos em Portugal é a terceira mais elevada no continente europeu. Em primeiro surge a França, com 28 suicídios anuais em contexto prisional, seguida da Letónia, com cerca de 20, e depois Portugal, com 18. Em relação à mortalidade, Portugal surge na 5.ª posição mais elevada, com cerca de 66 mortes por 10 mil reclusos. Em 2019, de acordo com o último Relatório de Atividades e Autoavaliação da DGRSP, registaram-se 75 mortes de pessoas reclusas, 21 por suicídio e 54 por doença.

O Relatório Anual de Segurança Interna de 2020 destaca a existência do programa integrado de prevenção de suicídio, implementado nos EP desde 2010, mas afirma que os “valores do suicídio confirmam o padrão registado nos últimos anos”. Já o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021 contabiliza 53 óbitos de pessoas reclusas, em 2020, 11 das quais por suicídio. No documento reitera-se que os “valores das mortes por doença continuam a refletir o envelhecimento progressivo da população prisional e a existência de doenças, de elevada morbilidade, que afetam parte dos reclusos à entrada no sistema prisional”.

Por outro lado, a existência de violência nos EP tem sido também apontada como um problema. O Relatório da Provedoria da Justiça de 2020 indicava que “é com preocupação que se verificou um aumento significativo das queixas de violência física, seja entre reclusos, seja especialmente com a participação de elementos da guarda prisional”. No relatório relativo ao ano passado, a Provedoria escrevia que “permaneceu praticamente idêntica a proporção de queixas contra as ações disciplinares e as relativas a supostas situações de violência, seja entre a população prisional, seja pelo uso indevido ou excessivo da força por parte do pessoal de vigilância”.

No EP de Caxias existiam informações junto às cabines telefónicas com o número das entidades a que os homens que estavam reclusos podiam ligar para solicitar informações ou formalizar queixas. Apesar de nunca ter experienciado agressões físicas por parte do CGP, Paulo testemunhou situações de outras pessoas reclusas durante o cumprimento da sua pena e acredita que pode ser inusitado fazer uma queixa sem a ajuda de um advogado.

“É difícil fazer-se queixa sem ser o advogado, porque se formos nós a fazer, parece que a queixa desaparece”, conta. Paulo tinha um advogado oficioso e lamenta não ter tido oportunidade de ser atendido de forma satisfatória. “Durante toda a pena só o vi duas vezes: no julgamento e na sentença”, revela.

O presidente do SNCGP nega a existência do uso excessivo da força por parte do CGP. “Não acredito que o CGP faça uso de meios excessivos para além do preconizado por lei”, defende Carlos Sousa. O Guarda Prisional menciona que a falta de profissionais de que sofre esta classe de trabalhadores pode levar a “situações descontroladas”. Porém, garante que “o CGP tem conseguido manter a ordem e a disciplina nos EP dentro do cumprimento estrito do Regulamento de Utilização de Meios Coercivos, apesar da extrema falta de guardas”.

Carlos Sousa reforça que os guardas prisionais, no desempenho das suas funções, correm também riscos de agressão física. De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna, no ano de 2020, registaram-se 22 agressões a membros do CGP, mais três do que no anterior.

A prisão é uma “universidade”: a possibilidade da ressocialização inversa

Em Prisões, ensaio publicado, em 2020, pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, a antropóloga Catarina Frois escreveu que, ao longo das conversas que teve, durante três anos, com profissionais que trabalham no sistema prisional, constatou “unanimidade no diagnóstico do falhanço da função reabilitadora através da privação de liberdade em meio carcerário”.

Para Paulo, a ressocialização preconizada dá-se, muitas das vezes, no sentido inverso. Para ele, mais do que uma “escola do crime”, como diferentes autores defendem, a prisão é uma universidade. “Aprendes a fazer tudo: a roubar um banco, a traficar, aprende-se a ter maus contactos para comprar armas”, conta, “está virado para o lado errado, uma pessoa que anda a traficar e roubar, chega ali e fica pior, vai aprender a fazer as coisas de forma diferente e com mais ajudas”.

No ensaio, Frois escreve que, nos casos em que existe sobrelotação prisional, “deixa de ser exequível, em várias prisões, fazer-se a separação entre reclusos preventivos e reclusos condenados, ou mesmo entre reclusos em situação especialmente vulnerável (toxicodependentes, idosos, agressores sexuais) e a chamada população comum”. A autora menciona ainda casos em que a mesma situação ocorre em relação a crimes violentos ou de reclusos com comportamentos violentos.

Segundo Marco Ribeiro Henriques, a socialização que ocorre dentro de uma prisão sem que exista uma separação pelo tipo de crime cometido, pode levar a uma naturalização de determinado tipo de comportamentos. Também para Carlos Nolasco “não faz sentido não existir uma maior distinção entre os crimes cometidos”, devido a estes processos de ressocialização.

O relatório Prison conditions in Portugal (2020) do Observatório Europeu das Prisões, confirma que, muitas das vezes, não existe, na prática, uma separação entre preventivos e condenados.

Os funcionários do sistema prisional e as dificuldades em executar um tratamento prisional individualizado

O CEPMPL estipula, no seu Artigo 3.º, que um dos princípios orientadores da execução de penas e medidas privativas da liberdade é o respeito pelos “princípios da especialização e da individualização do tratamento prisional do recluso”. O Artigo 5.º estabelece também que o processo de execução se orienta pelo “princípio da individualização do tratamento prisional e tem por base a avaliação das necessidades e riscos próprios de cada recluso”.

Os problemas já enunciados, com destaque para a sobrelotação, dificultam o cumprimento destes princípios. A esses obstáculos junta-se a falta de recursos humanos, que afeta tanto os Guardas Prisionais como os Técnicos de Reinserção Social, os principais responsáveis pelo trabalho de promoção da reinserção social junto dos reclusos.

Ambos os grupos profissionais identificam múltiplos problemas que afetam o desenvolvimento das suas tarefas diárias. Sobrecarga de trabalhos, más condições, falta de profissionais e dificuldades de progressão nas carreiras são algumas das adversidades indicadas que dificultam o cumprimento dos princípios vinculados no CEPMPL.

“Estamos a trabalhar no limite”: o caso dos Guardas Prisionais

Os trabalhadores que integram o CGP agrupam-se, por ordem decrescente de hierarquia, nas carreiras especiais de chefe da guarda prisional (com as categorias de comissário prisional, chefe principal e chefe) e de guarda prisional (com as categorias de guarda principal e guarda).

Em relação às funções que desempenham estes profissionais, Carlos Sousa, presidente do SNCGP, defende que “não se cingem, como dizem os nossos guias e livros, à vigilância e segurança das habitações onde estão os reclusos e à segurança do próprio EP”.

Segundo o Estatuto do Pessoal do Corpo da Guarda Prisional, atendendo à prioridade dada à reinserção social do cidadão recluso, “exigem-se cada vez mais ao CGP especiais competências e conhecimentos especializados nesta área essencial à prossecução das atribuições do sistema prisional, para além das competências na área securitária”.

O presidente do Sindicato afirma que o CGP e as pessoas reclusas estabelecem entre si uma “relação dicotómica” tendo em conta a “função tensa entre o ter de tomar conta e o ter de impor regras”. Sousa salienta que o CGP tem de manter “uma vigilância atenta de todos os aspetos de segurança dos reclusos, civis e guardas”, assim como supervisionar “o bem-estar deles [reclusos]”.

O desempenho destas tarefas é dificultado pela falta de recursos humanos. De acordo com o último Relatório de Atividades e Autoavaliação da DGRSP, o CGP foi o grupo profissional que registou um maior desvio entre a pontuação planeada e a pontuação concretizada. Os guardas prisionais registaram menos 826 profissionais face ao previsto.

Carlos Sousa sustenta que a falta de profissionais é um problema que se vai agravar nos próximos anos. “Há cerca de mil guardas em posição de ir para a merecida reforma e que se nada for solucionado vão faltar e muito no sistema”, declara. “Estamos a trabalhar no limite, ao nível da segurança implica que, se na mesma ala onde estariam seis ou sete guardas, estão dois ou três”, acrescenta.

Para além da falta de recursos humanos, o dirigente sindicalista sustenta que não existem motivações suficientes para enveredar na carreira de Guarda Prisional. “Pedir a alguém para concorrer a um concurso para GP, estar fora de casa, lidar com quem a sociedade quer afastar de si, levar com a complexidade da função e ganhar pouco mais do que o ordenado mínimo é completamente irrealista”, sustenta. Acrescentando que “neste momento, existem guardas com 22 anos à espera de uma promoção, isto é inadmissível”.

Estes números traduzem-se, muitas das vezes, na incapacidade do CGP em cumprir todas as funções de forma satisfatória. “Neste momento, conseguimos manter à tona o sistema prisional”, afirma Sousa. O guarda prisional reitera que o CGP está sensível perante as questões da reinserção social, mas confessa que “nem sempre conseguimos atender a todas as solicitações a tempo”.

Para a nova Direção-Geral, liderada por Rui Abrunhosa, o presidente do SNCGP espera que “se faça justiça ao CGP”, porque considera que a classe de trabalhadores está “há demasiados anos estagnada” e “à espera de um investimento por parte das nossas tutelas”. Caso as reivindicações não sejam atendidas, o dirigente afirma que o SNCGP vai ter de partir para a realização de greves “como se calhar o sistema prisional nunca viu”.

“Se não consigo acompanhar o recluso, já estou a deturpar o papel da prisão”: o caso dos Técnicos de Reinserção Social

Os Técnicos de Reinserção Social estão subdivididos em três grandes grupos. Os Técnicos Profissionais de Reinserção Social (TPRS) são os que monitorizam os vigiados nas equipas de vigilância eletrónica, assim como realizam o acompanhamento de menores em centros educativos.

Por sua vez, os Técnicos Superiores de Reinserção Social (TSRS) elaboram relatórios, prestam apoio aos tribunais e trabalham a reinserção na comunidade, quando os cidadãos cumprem ou acabam de cumprir as suas penas. Por fim, os Técnicos Superiores de Reeducação (TSR) trabalham a reinserção social junto dos reclusos, nos EP.

O presidente do Sindicato dos Técnicos da DGRSP (SinDGRSP), Miguel Gonçalves, dá conta de que os TPRS, inicialmente, só trabalhavam em Centros Educativos, mas as suas funções foram depois alargadas sem que fossem realizadas as respetivas alterações legislativas. “Os conteúdos funcionais e as carreiras estagnaram, as pessoas não têm o conteúdo funcional para fazerem o que estão a fazer”, explica.

Apesar das especificidades, a carreira de Técnico de Reinserção Social não foi, até à data, revista nem regulamentada como carreira especial no âmbito da Administração Pública. “Estas carreiras tinham um conhecimento técnico próprio e não cabiam nas carreiras gerais, então ficaram estagnadas até hoje, deixaram de ser atrativas”, explica o dirigente sindicalista.

Em maio deste ano, Gonçalves subscreveu uma petição endereçada ao então Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, em que reivindicava a criação da carreira única de técnico de reinserção da DGRSP. No documento lê-se que é “manifesta a necessidade de criação de um corpo de funcionários que dominem os conhecimentos técnicos, a experiência e o treino necessário à prossecução dos fins atribuídos funcionalmente, no quadro do pessoal a exercer funções” na DGRSP.

De acordo com o SinDGRSP, devido a esta falta de reconhecimento, existem indivíduos a desempenhar funções de TSR e TSRS sem possuírem os conhecimentos específicos ou a devida orientação técnica. Gonçalves explica que a DGRSP está a subverter a lei ao autorizar que múltiplos trabalhadores usem a mobilidade na Função Pública para passarem a exercer funções de técnicos de reinserção, mesmo sem a formação adequada.

Em agosto, o Jornal de Notícias noticiou um caso em que uma funcionária dos Recursos Humanos de uma autarquia foi admitida pela DGRSP em julho deste ano e, a 1 de agosto, passou a desempenhar funções numa equipa de reinserção social. Trabalhadores de câmaras, do Instituto de Emprego e Formação Profissional e da Segurança Social também recorrem a este tipo de mobilidade.

O presidente do sindicato explica que, devido a estas situações, muitas das vezes não são os TSR e os TSRS que fazem os relatórios que podem influenciar de forma decisiva as decisões dos tribunais, nomeadamente em relação ao internamento de menores em Centros Educativos, a condenações de cidadãos e a libertações de reclusos. “Quer a população reclusa, quer a sociedade, quer a própria Justiça, ficam defraudadas”, assinala Gonçalves, “temos de ter alguma dignidade no que estamos a fazer, estamos a falar de vidas, de crimes, de vítimas, de um conjunto de coisas que deve ser tratado de uma forma mais profissional e mais respeitosa”.

Para além desta problemática, os técnicos de reinserção enfrentam também uma sobrecarga de trabalhados derivada da insuficiência dos recursos humanos existentes. Segundo o Relatório de Atividades e Autoavaliação da DGRSP 2020, os TPRS registaram menos 57 efetivos do que os que estavam planeados. Já os TSR e TSRS registaram menos 64 profissionais.

O presidente do SinDGRSP é TSR no EP de Paços de Ferreira e confessa que chega a ter mais de cem reclusos para acompanhar. “Os rácios do trabalho que temos são completamente desadequados, é inqualificável”, declara. Tendo em conta a aplicação de formações, a elaboração de relatórios, quer de liberdade condicional quer de saídas, entre muitas outras funções, o técnico confessa que, para atender cem reclusos, iria demorar meses, pelo que o tratamento individualizado fica comprometido.

A TSR que acompanhava Paulo também trabalhava com cerca de cem reclusos. “A minha [TSR] era do 100 ao 200”, conta, “fazia-se um pedido e depois chamava-te, por norma não [nos reuníamos] mais do que uma vez por semana”. Paulo explica que conseguia reunir de forma atempada com a técnica, mas outros homens reclusos sentiam dificuldades. “Via pessoas desesperadas, que tinham muitas custas de tribunal e a técnica não os recebia”, afirma.

Miguel Gonçalves acredita que se tentam cumprir as finalidades de execução de penas e medidas privativas da liberdade, mas estas falhas não o permitem. “Se não consigo acompanhar o recluso, já estou a deturpar o que o recluso está a fazer e o papel da prisão e da reclusão”, declara.

O sistema informático utilizado pelos técnicos é também alvo de críticas. Miguel Gonçalves dá conta de que, para que um colega de uma equipa de vigilância tenha acesso a determinadas informações e relatórios, necessita de pedir a outros colegas.

“Trabalhamos a mesma população, sob a mesma Direção-Geral, mas não conseguimos ter acesso à informação uns dos outros”, explica, “temos de telefonar ou mandar email como se de outros organismos de outros países se tratasse”.

Para a nova direção, o presidente do SinDGRSP espera que o novo Diretor seja mais comunicativo e atenda às solicitações dos funcionários do sistema prisional de forma atempada. “Temos esperança de que as coisas mudem, sabemos que é a Direção-Geral e é tudo muito difícil, é um mundo que está fechado sobre si próprio e tem práticas que nos desagradam muito”, afirma.

O presidente do SinDGRSP é TSR no EP de Paços de Ferreira e confessa que chega a ter mais de cem reclusos para acompanhar. “Os rácios do trabalho que temos são completamente desadequados, é inqualificável”, declara. Tendo em conta a aplicação de formações, a elaboração de relatórios, quer de liberdade condicional quer de saídas, entre muitas outras funções, o técnico confessa que, para atender cem reclusos, iria demorar meses, pelo que o tratamento individualizado fica comprometido.

A TSR que acompanhava Paulo também trabalhava com cerca de cem reclusos. “A minha [TSR] era do 100 ao 200”, conta, “fazia-se um pedido e depois chamava-te, por norma não [nos reuníamos] mais do que uma vez por semana”. Paulo explica que conseguia reunir de forma atempada com a técnica, mas outros homens reclusos sentiam dificuldades. “Via pessoas desesperadas, que tinham muitas custas de tribunal e a técnica não os recebia”, afirma.

Miguel Gonçalves acredita que se tentam cumprir as finalidades de execução de penas e medidas privativas da liberdade, mas estas falhas não o permitem. “Se não consigo acompanhar o recluso, já estou a deturpar o que o recluso está a fazer e o papel da prisão e da reclusão”, declara.

O sistema informático utilizado pelos técnicos é também alvo de críticas. Miguel Gonçalves dá conta de que, para que um colega de uma equipa de vigilância tenha acesso a determinadas informações e relatórios, necessita de pedir a outros colegas.

“Trabalhamos a mesma população, sob a mesma Direção-Geral, mas não conseguimos ter acesso à informação uns dos outros”, explica, “temos de telefonar ou mandar email como se de outros organismos de outros países se tratasse”.

Para a nova direção, o presidente do SinDGRSP espera que o novo Diretor seja mais comunicativo e atenda às solicitações dos funcionários do sistema prisional de forma atempada. “Temos esperança de que as coisas mudem, sabemos que é a Direção-Geral e é tudo muito difícil, é um mundo que está fechado sobre si próprio e tem práticas que nos desagradam muito”, afirma.

A cooperação com a comunidade num sistema “pouco aberto ao exterior”

O sistema prisional e os EP são com frequência descritos como instituições e espaços fechados sobre si mesmos, sem muitos canais de comunicação ou contacto com o mundo exterior. O sociólogo Carlos Nolasco concorda com essa visão. “As prisões ainda hoje são entidades fechadas sobre elas próprias, em que os muros são quase como que uma linha abissal que separa aquilo que é a nossa sociedade quotidiana e vivências diárias de um espaço exceção, que é o EP”, sustenta.

Também Carlos Sousa, presidente do SNCGP, reconhece que o CGP e os restantes funcionários do sistema prisional trabalham “num sistema muito fechado, pouco aberto ao exterior” que chega a ser “um bocado ‘misterioso’ às pessoas” que não possuem com ele qualquer contacto direto.

No entanto, o Artigo 5.º do CEPMPL estabelece que a “execução, na medida do possível, (…) aproxima-se das condições benéficas da vida em comunidade”. Também o Artigo 7.º estipula que a “execução realiza-se, na medida do possível, em cooperação com a comunidade”. Deste modo, tal como se lê no último Relatório de Atividades e Autoavaliação da DGRSP, o tratamento prisional “deve ser programado e faseado de modo a favorecer a aproximação progressiva à vida em meio livre”.

De forma a promover estes princípios, as pessoas reclusas podem tentar obter o Regime Aberto ao Exterior (RAE), que permite o desenvolvimento de atividades de ensino, formação profissional, trabalho ou programas em meio livre, sem vigilância direta.

Para isso, os cidadãos reclusos têm de já ter cumprido um quarto da pena, gozado de uma licença de saída jurisdicional com êxito e não ter pendência de processo que implique a prisão preventiva. Para além disso, o comportamento prisional também é tido em conta. Tem de se considerar que a pessoa reclusa não vai ameaçar a ordem e disciplina nos EP, a segurança das vítimas ou a ordem e paz social.

No caso do EP de Torres Novas, a aplicação deste regime tem demonstrado resultados de sucesso significativos. Em dezembro de 2021, todos os reclusos tinham o RAE e, ao Público, a Diretora do EP, Paula Quadros, afirmou que a taxa de sucesso do plano que, desde setembro de 2020 estavam a aplicar, rondava os 84 por cento. Com a exceção de seis homens, todos cumpriram o programa e saíram com uma promessa de emprego no exterior.

Apesar dos benefícios e potencialidades, segundo o Relatório de Atividades e Autoavaliação 2020 da DGRSP, apenas 117 reclusos, a 31 de dezembro de 2020, usufruíam deste regime. O número reduzido foi, em parte, consequência do contexto pandémico. Segundo o mesmo documento, em 2019, cerca de 230 pessoas reclusas usufruíam do RAE.

Marco Ribeiro Henriques salienta a importância de estabelecer pontes entre o meio prisional e a sociedade civil. “O encontro com a sociedade deve ser praticamente imediato a partir do momento em que começa o cumprimento de pena”, frisa, “o indivíduo não vai socializar-se fora da sociedade, a micro-bolha que é a prisão não espelha a organização social”.

Duarte Fonseca acredita ainda que este tipo de contactos poderia contribuir para a redução do estigma muitas vezes enfrentado pela população reclusa. “Esta interação é o que desconstrói mitos sobre aquelas pessoas, é essencial”, explica.

Em 2020, os reclusos com o RAE dedicaram-se, sobretudo, à Manutenção/Obras (38), à Limpeza de Espaços Verdes (28), à Limpeza Urbana/Geral (20) e a Tarefas Agrícolas (12).

Que reincidência?

A taxa de reincidência corresponde ao número pessoas que já estiveram reclusas e que voltam a cometer um crime. Em Portugal, esta estatística não é publicada nos documentos oficiais. No entanto, este dado permitiria atestar se o sistema prisional está a cumprir o papel que lhe é atribuído: a reinserção social do agente na sociedade, sem cometer crimes.

O último valor oficial que se conhece foi publicado pela Provedoria da Justiça, em 2003. Segundo o documento As Nossas Prisões – III Relatório, tendo em conta a globalidade da população reclusa, cerca de 49 % eram reincidentes. De acordo com uma estimativa feita pela Reshape, através da comparação dos dados disponíveis sobre sistemas prisionais europeus semelhantes ao português, a taxa de reincidência pode hoje situar-se perto dos 60 %.

Para Carlos Sousa, presidente do SNCGP, a importância da publicação destes valores recaem sobre a hipótese de perceber se o trabalho realizado no sistema prisional está a ser bem sucedido. O guarda prisional acredita que não se devem fazer comparações com outros sistemas prisionais para obter este tipo de valores, mas afirma que, pela percepção do CGP, “a reinserção estará algo acima disso [60 %]”. Sousa conclui que “o sistema prisional como está, não está a cumprir a sua função”.

Segundo o investigador Marco Ribeiro Henriques, existe uma “consciência generalizada de que é preciso fazer algo diferente, de que a prisão assim é obsoleta”. No entanto, reconhece que é “preciso muita coragem e espaço político” para defender um investimento no sistema prisional. Ainda assim, Henriques crê que, eventualmente, a permanência da situação atual vai tornar-se “intolerável” e que “estamos numa deriva que vai levar a uma alteração” porque há “uma inquietude a nível internacional”.

Duarte Fonseca concorda com a previsão e salienta ainda que menores taxas de reincidência beneficiariam toda a sociedade. “Uma pessoa reinserida não vai cometer crimes, não vai criar vítimas nem todos os custos que o crime traz”, declara, “provavelmente estará a trabalhar” e a “pagar impostos”. Desta forma, o Diretor Executivo da Reshape salienta que “a reinserção não só fica mais barato” para os contribuintes, como “o país ainda ganha dinheiro com isso”.

Fonseca frisa o interesse de todos no sucesso da reinserção ao reiterar que “uma pessoa reinserida dá a ganhar dinheiro ao país” enquanto que “uma pessoa não reinserida só nos custa dinheiro”.

Resposta da DGRSP

Desde julho, o Gerador enviou vários pedidos de entrevista e solicitações de informação à DGRSP. No entanto, não foi possível obter uma resposta atempada até à data de publicação desta reportagem. Quando for possível obter respostas por parte da DGRSP, podes consultá-las no site do Gerador.

Os sistemas prisionais europeus

Nem todos são adeptos das comparações estabelecidas entre sistemas prisionais. O sociólogo abolicionista, António Dores, acredita que as comparações podem ser enganosas e estabelecer uma ideia falsa de que certos sistemas são bem-sucedidos. “Se queremos perceber o que é uma prisão, a última coisa que devemos fazer é comparar países, porque isso é uma ilusão”, explica, “parece que o melhor destes países tem a melhor solução para as prisões e não é verdade”.

Apesar da limitação das comparações, os países nórdicos são com frequência apontados como os mais bem-sucedidos e progressistas. Dores explica que houve fortes movimentos abolicionistas e democráticos nestes países que motivaram diferenças a nível político, institucional e cultural. “Ninguém na Finlândia ou na Noruega se atreve a dizer que as prisões são algo que vale a pena manter”, argumenta.

Em relação à reincidência, estes países possuem taxas mais baixas do que aquelas que se estimam para Portugal. Segundo os dados disponibilizados pela University College of Norwegian Correctional Service, na Noruega, a taxa de reincidentes durante os dois primeiros anos após as pessoas reclusas saírem em liberdade foi de cerca de 18 por cento, em 2018. Na Suécia e na Dinamarca foi de 32 por cento e, na Finlândia, cerca de 33 por cento.

O Relatório das Estatísticas Anuais Penais para o Conselho da Europa 2021 dá conta de que, no que diz respeito à média do dinheiro gasto, por dia, pela detenção de um recluso, os países nórdicos estão acima da média europeia, situada nos 186,7 euros. No entanto, San Marino é o país com a média mais elevada, com cerca de 2.031 euros gastos por dia, seguido da Bélgica, com 1.420 euros, e do Liechtenstein, com 352 euros. Portugal está situado abaixo da média europeia, com cerca de 55,42 euros. Nas posições mais baixas, encontram-se a Bulgária, com 6,5 euros, o Azerbaijão, com 8 euros, a Moldávia, com 10,6 euros e a Turquia, com 12 euros.

O mesmo documento permite atestar que a Turquia e a Federação Russa estavam, em janeiro de 2021, entre os países a que mais tempo de prisão condenam os seus cidadãos. Para um total de 230 492 condenados, a Turquia condenou a uma pena entre dez a 20 anos cerca de 71 mil pessoas, entre cinco a dez anos, cerca de 56 mil, e a mais de 20 anos, cerca de 43 mil pessoas.

Os dados da Federação Russa não distinguem os reclusos preventivos dos condenados, mas para uma população total de 478 714 reclusos, cerca de 137 mil estavam condenados a uma pena de entre cinco a dez anos. Já na Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca, a pena mais comum foi a de um a três anos. Em Portugal, a pena mais aplicada foi a de entre cinco a dez anos, com cerca de 3460 condenações.

O Azerbaijão é o país europeu em que, em média, os reclusos passam mais tempo na prisão, com cerca de 34,6 meses. Segue-se-lhe Portugal, com uma média de 31,4 meses, a Moldávia, com 30,5 meses e a Ucrânia, com 28,9 meses. Abaixo da média europeia, situada nos 12,4 meses de encarceramento, e nas posições mais baixas, encontra-se o Chipre, com 3,8 meses, o Liechtenstein, com cerca de 2,5 meses, e a Suíça, com uma média de 1,8 meses.

Em relação ao número de reclusos existentes para o número de lugares disponíveis em instituições penais, em janeiro de 2021, a Roménia surge com o maior nível de sobrelotação, com cerca de 119 reclusos para cem lugares. Segue-se-lhe San Marino (112,5), a Grécia (111,4) e o Chipre (110,5). Portugal contabilizou cerca de 88 reclusos para cem lugares, o que coloca o país acima da média europeia, de cerca de 82,5 reclusos por cada cem lugares. O Mónaco (13,4) e a Arménia (36,8) registaram os valores mais baixos.

Para o mesmo período, a média europeia para o número de reclusos existentes por cada funcionário que trabalha em meio prisional foi de cerca de 1,5. O Mónaco, a Suécia, a Noruega e a Dinamarca foram os únicos países que registaram valores abaixo de um. A Turquia registou o pior valor neste indicador, com cerca de quatro reclusos por cada funcionário, seguido da Moldávia e da República da Sérvia, ambos com 2,5. Já Portugal possuía cerca de 1,7 reclusos por cada funcionário do meio prisional.

A República da Sérvia registou ainda o pior resultado no indicador da mortalidade de reclusos por cada 10 mil pessoas, com cerca de 124 mortes, em 2020, seguida da Letónia, com 115 e da Moldávia, com 87. Portugal registou o dobro da média europeia, situada nas 33 mortes, com cerca de 66 mortes por 10 mil reclusos. No mesmo ano, a Islândia, Andorra, Liechtenstein, Mónaco e San Marino registaram zero mortes.

Para Duarte Fonseca, ainda nenhum país conseguiu ultrapassar por completo a “versão 1.0” dos sistemas prisionais. “Acho que não existe nenhum sistema em que diga ‘é aquilo’”, sustenta, “não há nenhum país que esteja na versão 2.0 a cem por cento, todos, mesmo os mais evoluídos, continuam a ter resquícios desta 1.ª versão”.

Alternativas à pena de prisão na lei portuguesa

O Artigo 70.º do Código Penal português torna clara a preferência do legislador pela utilização de penas não privativas da liberdade, desde que estas realizem “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Desta forma, o documento estabelece diversas alternativas à pena de prisão que podem ser utilizadas se verificadas certas condições.

A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma das alternativas à privação da liberdade e pode ser decretada para crimes cuja pena de prisão não seja superior a cinco anos. Existem diferentes tipos de suspensão: simples; subordinada ao cumprimento de deveres; com o cumprimento de regras de conduta de natureza positiva; e com regime de prova.

A aplicação da suspensão depende de determinadas circunstâncias, como a crença do tribunal de que a ameaça da pena de prisão e a censura do crime são suficientes para cumprir as finalidades de execução de penas e medidas privativas da liberdade estipuladas no CEPMPL. Esta pena é fixada num período de entre um a cinco anos.

A pena de multa afigura-se a outra alternativa e é aplicada em substituição de penas de prisão com duração não superior a um ano. Esta sanção é concretizada pelo pagamento ao Estado de um valor fixado pelo tribunal, tendo em conta a situação económica do arguido. Por norma, o pagamento é feito num prazo mínimo de dez dias e no máximo de um ano.

Para os casos em que o crime tenha sido cometido no exercício de profissão, função ou atividade públicas ou privadas, e a pena de prisão não for superior a três anos, ao agente pode ser atribuída a pena de proibição dessa atividade durante um período de dois a cinco anos. A proibição da respetiva profissão ou função determina também a perda dos direitos e regalias atribuídas ao agente durante o tempo de execução da pena.

Por sua vez, a prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser aplicada em vez das penas de prisão não superiores a dois anos. Cada dia da pena de prisão fixada na sentença corresponde a uma hora de trabalho, até ao limite máximo de 480 horas. O seu cumprimento resulta na realização de trabalhos, de modo gratuito, ao Estado ou a pessoas coletivas de direito público ou privado que o tribunal considere terem interesse para a comunidade.

Já a pena de permanência na habitação consiste numa pena de substituição em sentido detentivo, visto que é concretizada pela obrigação de o condenado permanecer no seu domicílio, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão. Esta sanção é aplicada, por norma, em substituição da pena de prisão efetiva não superior a dois anos e apenas depois do consentimento do condenado.

Esta pena pode ainda ser complementada com o cumprimento de regras de conduta e da observação de determinados deveres, como a frequência de programas ou a sujeição a tratamentos médicos. Estes deveres são suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social.

Será possível um mundo sem prisões?

Para Paulo, a resposta parece clara: não. Paulo não acredita que um mundo sem prisões seria concebível. “A prisão isola algo que não está bem para a sociedade”, começa por explicar, “é o corretivo para a pessoa interiorizar o crime e saber que custa estar sem a liberdade por atos que não devemos cometer”.

Apesar das dificuldades que sentiu durante o tempo em que esteve recluso, Paulo acredita que a prisão pode contribuir para tornar a sociedade mais segura. “Evita que muitas pessoas que não devem andar em liberdade andem livres, junto com a sociedade”, argumenta. Já para António Dores, sociólogo abolicionista, a resposta é a inversa. “Tenho toda a facilidade em imaginar [um mundo sem prisões], aliás, se não quiser imaginar o futuro, posso imaginar o passado”, atesta.

O sociólogo acredita numa sociedade que, “em vez de esconder os crimes condenando os que são considerados culpados”, responsabiliza os agentes através da sua colaboração para identificar as causas dos crimes. O docente do ISCTE defende que, através das condenações, os tribunais não resolvem nem identificam as causas que levam as pessoas a recorrer à criminalidade. Dores crê que este tipo de mecanismo é “uma das causas do fracasso das prisões e da falta de reinserção” e que para resolver estes problemas seria necessária “uma democracia diferente”.

A deputada Cláudia Santos também acredita que, ao atacar os problemas estruturais, sociais e interpessoais que, muitas vezes, estão por detrás dos crimes, talvez se pudesse prescindir da prisão como forma de punição.

“Acho que a história da humanidade é a da descoberta de soluções para o crime que impliquem menos sofrimento”, defende Santos, “é obrigação do Estado encontrar respostas em que haja menor inflição de sofrimento às pessoas”.

Nesse sentido, a historiadora Maria João Vaz relembra que “as sociedades vão implementando novas soluções consoante os novos valores e ideias que se vão concretizando”. Desta forma, a docente do ISCTE afirma que a prisão que existe nos dias de hoje vai, eventualmente, acabar por ser substituída por um outro sistema ou modo de punição.

Apesar de não ser abolicionista, o Diretor Executivo da Reshape, Duarte Fonseca,, acredita naquilo a que apelida a “versão 2.0” do sistema prisional. “As prisões não evoluíram nos últimos 250 anos”, assevera, “hoje em dia falamos na Internet 5G, na indústria 4.0, do turismo 5.0, Algoritmos, Inteligência Artificial, Realidade Virtual e as prisões continuam na sua versão 1.0”.

Fonseca acredita num sistema prisional mais simplificado, em que as “comunidades se responsabilizam também pelas pessoas que cometeram crimes” ao trabalhar com elas a reinserção social. O Diretor Executivo favorece a pequena escala de forma a conseguir pôr em prática o tratamento prisional individualizado e a garantir o acesso ao trabalho e educação.

A hipótese das práticas restaurativas: não há crimes sem vítimas…

A justiça restaurativa vê o crime não apenas como violação da lei, mas como causador de danos às vítimas, à comunidade e mesmo aos infratores. Segundo a Associação de Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), este tipo de justiça entende o crime como “uma perturbação nas relações entre pessoas que vivem em conjunto numa comunidade, numa sociedade ou nas relações entre o infractor e a comunidade onde se insere”.

Deste modo, as práticas restaurativas centram-se na ativa participação das vítimas, agressores e comunidades, muitas vezes concretizada através de encontros entre estes, num esforço para identificar a injustiça praticada. Este tipo de práticas tem como objetivo tomar os passos necessários para a reparação de danos às vítimas e comunidades, assim como identificar as medidas que possam reduzir a ocorrência de novos crimes.

O CEPMPL menciona, na alínea quatro do seu Artigo 47.º, que o “recluso pode participar, com o seu consentimento, em programas de justiça restaurativa, nomeadamente através de sessões de mediação com o ofendido”. Cláudia Santos esclarece que esta é a primeira vez que a legislação portuguesa menciona e permite a participação de reclusos nestas práticas, em contexto prisional. “Apesar de existirem algumas experiências-piloto em alguns EP, não temos ainda programas restaurativos em funcionamento de forma mais ou menos generalizada”, afirma, no entanto, a deputada.

Cláudia Santos crê, contudo, que por vezes é necessário um período de habituação por parte dos aplicadores a este tipo de possibilidades, pelo que espera que as práticas restaurativas se tornem num caminho que venha a ser trilhado. Paulo acredita que este tipo de práticas seriam produtivas e constituiriam uma hipótese de reparar danos às vítimas e “dar de volta à sociedade”.

Em declarações à BBC, o professor de Criminologia na The Open University, em Inglaterra, David Scott, explicou que a maioria das vítimas não cita a punição ou vingança como as suas prioridades no que toca à justiça. Antes, as vítimas revelam uma maior preocupação com a sua segurança e em evitar que outras pessoas sofram da mesma forma que elas. Neste sentido, o docente salienta a importância e potencial das práticas restaurativas.

Scott relembra que a maioria das pessoas imagina crimes violentos quando se fala sobre prisões, mas, na verdade, estes não constituem a maioria dos crimes cometidos. Em Portugal, os crimes contra as pessoas constituem 31 por cento do total de condenações. Os homicídios surgem com maior peso (10%), seguidos pela violência doméstica (9,5%) e pelas ofensas contra a integridade física (3,6%). Para casos violentos, o professor de Criminologia reconhece a possibilidade de um sistema de afastamento dos agentes da sociedade.

Através do exercício de práticas restaurativas, Scott imagina a possibilidade de um mundo sem prisões. O professor argumenta que, através delas, existiria uma maior possibilidade das vítimas discutirem os seus sentimentos, aceitarem o que lhes aconteceu e tentarem reconstruir as suas vidas. Desta forma, o impacto do crime é reconhecido por quem o cometeu, mas também pela sociedade, que seria encorajada a apoiar as vítimas e a participar na ressocialização dos agentes.

Scott defende que, ao não se poder simplesmente prender alguém, a sociedade em geral teria interesse em encontrar formas de viver de forma mais pacífica com os agentes. “Um mundo sem prisões não é sobre justiça punitiva, não é sobre repetir ciclos de violência, é um mundo onde a justiça é sobre resolver problemas sistémicos e apoiar as pessoas através da empregabilidade, educação e saúde, [um mundo] focado na justiça social e não na vingança”, declara.

Em liberdade. E agora?

Era uma terça-feira e já passava das 16 horas quando Paulo, ao final de quatro anos, esperava com os seus pertences junto ao EP de Caxias por um familiar que o viesse buscar. A diretora do EP surpreendeu-o naquele dia com a notícia de que iria ser libertado. “No tempo em que estive à espera, passaram-me milhares de coisas pela cabeça: o que ia fazer, o que ia ser da minha vida, porque é que estive ali preso”, confessa Paulo com o olhar vidrado no tampo da mesa à sua frente.

Em retrospetiva, Paulo reflete sobre a prisão como um castigo, mas foi ao mesmo tempo uma oportunidade de perceber que, através da “boa força de vontade e humildade”, a reinserção era possível. “Reavaliei tudo o que se passou comigo e fez-me melhorar um pouco, em termos de humanidade”, confessa.

A boleia chegou e pelas 18 horas já estava em casa, mas nessa primeira noite não conseguiu dormir. A par do barulho dos automóveis e das pessoas que passavam na rua, Paulo já não estava habituado a ter tantos canais de televisão e o entretenimento manteve-o acordado. No dia seguinte foi ao shopping fazer compras, mas ser confrontado com a grande quantidade de pessoas foi um choque. “Estava habituado a estar muito preso, então fazia-me confusão, olhava para todo o lado, as pessoas eram todas diferentes umas das outras”, admite.

No terceiro dia em liberdade teve de deslocar-se à sede da Reshape, na Casa do Impacto, e o caminho do Chiado até ao Bairro Alto despertou-lhe as mesmas sensações. “Vi montes de turistas, já não os via há anos, muita gente mesmo”, conta. Quando caminhava pelas ruas sentia que “não estava sintonizado” e não conseguia concentrar-se. “O mais difícil foram esses bocados, estar em convivência com muita gente, fazia-me mesmo confusão”, confessa, “na prisão também somos muitos, mas estamos todos ali e conhecemo-nos já muito bem e aqui as pessoas são todas estranhas”.

Mesmo passados cerca de três meses após a sua libertação, os barulhos dos carros e o grande fluxo de pessoas continuam a fazer-lhe confusão, mas agora admite andar sempre com fones. Neste momento, está no Centro de Emprego e espera conseguir um estágio com a Reshape. “Está tudo encaminhado, fui buscar certificado de ensino, currículo, certificado de quanto tempo estive preso e declaração do Centro de Emprego em como estou inscrito”, reitera.

Se conseguir o estágio, as viagens do Chiado até ao Bairro Alto vão tornar-se mais frequentes. É possível que com a força do hábito e a ajuda dos seus fones, as viagens se tornem menos confusas e Paulo se habitue à liberdade.

Podcast

Aqui encontras em formato de áudio algumas das entrevistas realizadas a propósito desta reportagem. Cada um dos três episódios trata um tema considerado basilar para melhor compreender para que servem, afinal, as prisões.

1º episódio

História das Prisões

Com Maria João Vaz

Diretora do Departamento de História do ISCTE

2º episódio

O papel das prisões numa sociedade democrática

Com António Pedro Dores

Professor de Sociologia no ISCTE

3º episódio

Reinserção Social

Com Duarte Fonseca

Diretor Executivo da RESHAPE

e “Paulo”

Homem que esteve recluso no Estabelecimento Prisional de Caxias, entre 2018 e 2022

Bolsa Gerador Ciência Viva para jovens jornalistas

Esta reportagem teve o apoio da Bolsa Gerador Ciência Viva para jovens jornalistas e foi publicada na Revista Gerador 39.

Descobre aqui em baixo mais reportagens de investigação que estão a resultar deste projeto.

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