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Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Design de Frederico Pompeu
Digital de Inês Roque
Anastácia Roda tem 32 anos e faz trabalho sexual desde os 17, altura em que decidiu sair de casa para dar início ao processo de transição de género. No início, mentia sobre a sua idade. “As donas das casas não sabiam que eu tinha 17 anos. Dizia sempre que tinha 18”, confessa.
Começou por trabalhar numa casa com mulheres cis. Era necessário entregar uma percentagem de cada serviço à proprietária. Em troca, tinha teto e materiais necessários, como gel lubrificante e preservativos, além de ser assegurado o custo do anúncio em classificados na Internet ou jornais. “Na altura, [os anúncios] eram mais no Correio da Manhã. Depois é que começou a haver o [site] Classificados X”, explica.
Elogia as condições de segurança que conseguia ter neste contexto, mas diz que se sentia discriminada. “Eu sempre trabalhei em casas onde só havia mulheres cis. Às vezes, eu demorava um bocadinho no quarto, e a dona da casa [dizia]: “Passaste mais 10 minutos, por isso, vais dar mais 10 € à casa.” Não achava isso justo até porque muitas vezes tinha de “fazer dois papéis: ser ativa e ser passiva”, o que muitas vezes se traduzia em mais tempo com cada cliente. Os preços eram definidos pela “madame”: “40 € por 30 minutos de relação completa, 50 € com massagem. Uma hora custava 80 €. Metade de cada valor tinha de ser entregue à proprietária.
Anastácia sempre achou que essas percentagens eram injustas, por isso, quando, aos 20 anos, decidiu abrir o seu próprio negócio, cobrava apenas cinco euros a cada colaboradora que trabalhava no seu apartamento. Tinha um segurança à porta. “Tive a casa durante dois anos, dois anos e meio, mais ou menos, depois é que tudo começou a descambar”, lamenta. Iniciou o consumo de crack, e a sua dependência foi-se agravando. “Perdi a casa. Fiquei sem dinheiro e fui despejada. Gastava o dinheiro todo nos consumos e foi isso que me destruiu a minha vida e o meu negócio na altura.”
Começou depois a ser impedida de trabalhar noutras casas. Viu-se obrigada a ir para as ruas. “Martim Moniz, Conde Redondo, Artilharia Um. Foi aí que fui fazendo a minha vida para [sustentar] os meus consumos, na vida da noite.” As fragilidades foram aumentando, assim como os riscos. “Nos apartamentos, há mais segurança. Na rua, não há segurança nenhuma”, explica, em entrevista ao Gerador.
Por sentir falta do conforto e maior estabilidade que tinha nas “casas” onde trabalhou, Anastácia acredita na importância da despenalização do lenocínio simples e na legalização efetiva do trabalho sexual. Isso permitiria ter “um espaço, não estarmos na rua expostas”, além de possibilitar pedir ajuda às autoridades, em caso de violência. “Teríamos mais ajuda da polícia, porque agora não há ajudas nenhumas”, conforme constatou de todas as vezes que foi espancada.
No início de maio de 2023, foi noticiado que quatro dos 13 juízes do Tribunal Constitucional, entre eles o novo vice-presidente, puseram em causa a associação entre proxenetismo e violação de liberdade sexual que é feita na lei.
No acórdão que foi publicado em abril deste ano, os juízes consideraram que é “inegável” que a decisão de uma pessoa se prostituir “pode constituir uma expressão ainda plena da sua liberdade sexual”.
A deliberação surgiu após o Ministério Público recorrer de uma decisão tomada no Tribunal Judicial da Comarca de Valpaços, no qual a juíza recusou aplicar o artigo 169.º n.º 1 do Código Penal, que define o crime de lenocínio por o considerar inconstitucional.
O caso era referente a um bar de alterne em Valpaços, com quartos no primeiro andar, que foi alvo de uma rusga em 2016. As dez mulheres que ali trabalhavam explicaram depois, no tribunal, que ganhavam comissões pelas bebidas vendidas no bar. Além disso, sempre que optavam por prestar um serviço sexual, 10 dos 40 euros que ganhavam revertiam para os gerentes do espaço.
A juíza recusou-se a condenar o casal que detinha o negócio, e o Ministério Público recorreu desta decisão, chamando o Tribunal Constitucional a pronunciar-se.
Este órgão é composto por três secções de juízes conselheiros. Uma dessas secções – da qual fazem parte os quatro juízes que votaram favoravelmente o acórdão em causa – deliberou que a decisão da juíza de primeira instância estava correta. Os juízes do TC consideraram, assim, que a aplicação do referido artigo do Código Penal entra em conflito com o direito à liberdade e segurança e viola a Constituição, na medida em que restringe direitos, liberdades e garantias (artigos 18.º n.º 2 e 27.º nº 1 Constituição da República Portuguesa).
Já em 2021 esta questão tinha sido levantada. À data, os juízes do Palácio Ratton decidiram, após se reunirem em plenário, que o crime se iria manter no Código Penal. Por essa razão, não era expectável que uma decisão contrária surgisse passado tão pouco tempo. Este facto foi considerado inédito, até por questões de certeza jurídica, e pode abrir a porta à despenalização, já que a norma vai voltar a ser discutida pelo plenário dos 13 juízes do TC, e, em último caso, deixar de ser aplicada.
A notícia desencadeou reações antagónicas: o Movimento dos Trabalhadores do Sexo, que defende a total descriminalização e reconhecimento da atividade, assim como a despenalização do lenocínio simples, aplaudiu. A Plataforma pelos Direitos das Mulheres e O Ninho, que defendem a abolição, repudiaram.
A questão da despenalização do lenocínio simples chegou ao Parlamento em 2022, por via de uma petição lançada em 2019 por Ana Loureiro que também pede a regulamentação da venda de sexo. Ana foi trabalhadora sexual e detém agora vários espaços de convívio, em Lisboa e Évora, onde emprega outras mulheres. Tornou-se uma das vozes mais conhecidas em defesa da regulamentação da prostituição por defender que essa mudança traria mais segurança, assim como maior controlo sanitário. O Gerador tentou por diversas vezes agendar uma entrevista com a ativista, mas a mesma não chegou a realizar-se por falta de disponibilidade da própria.
Entre as diferentes especificidades propostas por Ana Loureiro, está a definição da idade mínima de 21 anos para a realização de trabalho sexual, a obrigatoriedade de exames médicos periódicos, patente num certificado de saúde, a proibição da realização de trabalho sexual a pessoas sem título de residência válido, e a possibilidade de ser estabelecido um contrato de prestação de serviços, além da criação de um código fiscal para a tributação da atividade.
Uma vez que nunca escondeu ser proprietária de estabelecimentos dedicados a práticas sexuais comerciais, Ana Loureiro chegou a ser detida por lenocínio, na sequência de uma rusga aos mesmos, em novembro de 2022. Ficou sujeita a termo de identidade e residência, além de ter sido proibida de contactar com as mulheres que supostamente explorava, segundo noticiado pelo jornal Correio da Manhã. Apesar disso, continua a defender publicamente que a prática não é uma forma de exploração, se for feita de forma livre e consentida, mas antes um meio de providenciar melhores condições e segurança.
Segundo dados cedidos ao Gerador pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, 36 pessoas estavam presas por lenocínio, a 31 de dezembro de 2020. Um ano depois eram 29, e, em 2022, passaram a 32. Segundo a mesma entidade, “não havia ninguém condenado exclusivamente pelo crime de lenocínio”, já que este “surge entre outros que também foram cometidos e tomados em consideração pelos tribunais para efeito de condenação”. Apesar do pedido, não foi esclarecido que outros crimes estavam em causa.
Mesmo sendo o mais conhecido, o modelo regulamentarista defendido por Ana Loureiro não reúne consenso dentro da comunidade e já foi criticado por ativistas e coletivos defensores da legalização.
O Movimento dos Trabalhadores do Sexo (MTS), fundado em 2018 por pessoas que efetivamente “fazem o trabalho”, afirma, por exemplo, que a definição de regras desse género seria quase um regresso ao tempo da ditadura. Negam a viabilidade dos exames médicos e pedem apenas que a profissão seja reconhecida e equiparada a todas as outras. Defendem a descriminalização e não a regulamentação ou legalização do trabalho sexual. Por rejeitarem perentoriamente a narrativa de vitimização veiculada pelos abolicionistas, reclamam, também, a despenalização do lenocínio simples. Apesar das solicitações, o coletivo rejeitou participar nesta reportagem, por não querer estar incluído num trabalho que inclui também a visão de coletivos abolicionistas liderados por pessoas que não praticam a atividade e, por esse motivo, não sofrem as consequências do enquadramento atual. Apesar disso, o MTS concedeu uma entrevista ao Gerador, na qual explicita a sua posição.
Uma situação hipotética: se quatro mulheres alugarem um apartamento para terem melhores condições para fazer trabalho sexual, a pessoa cujo nome ficar registado no contrato de arrendamento, pode ser acusada de lenocínio simples. Conceição Mendes, de O Ninho, afirma que este é um exemplo “extremo” e que é um caso no qual podem ser recolhidas provas em como não há um aproveitamento económico de outrem, pelo que as mulheres não serão penalizadas. Também Ana Sofia Fernandes, presidente da Plataforma para os Direitos das Mulheres, o desvalorizou. Apesar disso, este é um exemplo que foi repetidamente referido pelas trabalhadoras do sexo, ativistas pela legalização e investigadores que deram o seu contributo para esta reportagem.
Em junho de 2022, a Juventude Socialista apresentou um anteprojeto de lei para a regulamentação da atividade profissional do sexo. A proposta, que se encontra em consulta pública, pretende reconhecer a liberdade de escolha de quem realiza trabalho sexual, salvaguardar os seus direitos humanos, dar condições de segurança à prática e descriminalizar o lenocínio simples, por meio da alteração ao Código Penal. “Entendemos, pois, que hoje não se justifica restringir a liberdade de quem se prostitui a associar-se a quem fomente, facilite ou favoreça tal prática em nome da sua liberdade sexual, apenas e só quando tal não está em perigo, isto é, quando a prostituição é livre e voluntariamente exercida.” , lê-se no documento.
A proposta limita o exercício da profissão a maiores de 18 anos, salvaguarda a autodeterminação, assegura o acesso às proteções da Segurança Social e a liberdade de organização de forma independente ou em “sociedades de trabalho sexual”. Especifica ainda que “os serviços sexuais são prestados em estabelecimentos próprios, licenciados para o efeito, ou no domicílio, para o qual é dispensada a obtenção de licença”.
Ao Gerador, o secretário-geral da JS, Miguel Matos explicou que “a nossa proposta não é legalizar o proxenetismo. A nossa proposta não é ignorarmos as situações de exploração que existem na sociedade. É, antes pelo contrário, permitir legalizar que existam estabelecimentos, que existam sociedades em que os trabalhadores do sexo possam cooperar”, da mesma forma que acontece noutras profissões.
Dentro do partido este assunto não reúne consenso, mas o líder da jota diz compreender as posições contrárias. “Não é apenas quem tem uma visão conservadora da sexualidade que é contra a legalização. As pessoas também estão preocupadas com o facto de estarmos a legalizar e a branquear as situações de exploração”, admite. “O que nós achamos é que, tal como no aborto, a existência de prostituição clandestina tende a favorecer situações de maior vulnerabilidade, e a legalização é apenas o reconhecimento de uma coisa que vai sempre existir”, diz.
Em novembro do mesmo ano, o partido Livre viu ser aprovada uma alteração ao Orçamento de Estado para que fosse elaborado um livro branco sobre trabalho sexual e prostituição. Na origem da proposta, estava o reconhecimento de que “esta pode ser uma matéria complexa de regulamentar”, mas essa regulamentação tem “urgência”, segundo o partido. O Gerador contactou o Livre para saber se este livro está a ser elaborado, mas não foi obtida resposta em tempo útil.
“Há trabalhadores do sexo que estão na rua a ser multados, a ser obrigados a fazer trabalho comunitário apenas porque dão boleia uns aos outros. Eu conheço casos desses. Uma mulher dá boleia às colegas porque tem carro e as outras não têm, para as transportar para o sítio onde trabalham, a polícia para e [ela] é acusada de crime de lenocínio. Vai a tribunal, paga uma multa e faz trabalho a favor da comunidade. Isto existe em Portugal”, relata a investigadora Alexandra Oliveira, da Universidade do Porto, que investiga a temática do trabalho sexual.
Joana Canêdo, do coletivo As Manas, aponta o mesmo problema e diz que isso impede as trabalhadoras de se organizarem. “Se as manas que fazem trabalho sexual pudessem cooperativizar-se, alugar um espaço, mesmo que esse espaço viesse em nome de uma organização ou de uma de nós, e garantir condições de segurança para outras manas trabalharem, isso era ideal, só que é considerado, aos olhos da lei, lenocínio e/ou incentivo ao trabalho sexual”, lamenta.
Além disso, as defensoras da despenalização do lenocínio simples ressalvam que as situações de exploração continuariam a ser crime, através do lenocínio agravado, e que a despenalização do primeiro seria até uma forma de ajudar a distinguir as situações de abuso ou coação.
A ideia de que existe uma correlação consequente entre tráfico de seres humanos e legalização da prostituição, assim com a despenalização do lenocínio simples, é também rejeitada pelos investigadores. “A pesquisa empírica, desenvolvida em contextos europeus e não europeus, demonstra precisamente o contrário. Ela mostra que “a única forma de intervir e fazer com que as pessoas que se encontram no mercado do sexo por coação ou sem ser de livre vontade possam ser protegidas, é quando a lei reconhece o trabalho sexual como um trabalho”, afirma Mara Clemente, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) do ISCTE, que trabalha questões relacionadas com tráfico humano e sexualidade.
A especialista explica que é complicado identificar e mapear o tráfico humano em Portugal, porque o mesmo está dependente da obtenção do estatuto de vítima, atribuído pela Polícia Judiciária ou Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Isto quer dizer que as vítimas são reconhecidas como tal quando são “casos gritantes de abuso”, o que diz ser raro. Atualmente, a nível institucional, afirma que há mais preocupação com a exploração laboral e de crianças. De facto, o próprio sindicato do SEF demonstrou preocupação com esta questão, numa conferência em 2018.
“Apenas quando os direitos do trabalho são reconhecidos é que é possível combater o que fica fora do trabalho reconhecido, neste caso do mercado do sexo. Como é possível combater o tráfico para exploração sexual, isto é, as condições de violência que afetam pessoas migrantes no mercado do sexo, sem que essas pessoas tenham claros direitos trabalhistas para trabalhar no mercado do sexo com condições? É impossível”, afirma a investigadora.