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Texto de Inês Rua
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Marina Mota
Produção de Sara Fortes da Cunha
Captação de imagem de Marcelo de Souza Campos
Edição de vídeo de Pedro Oliveira
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque
28.04.2025
“Quando o Estado [português] fala de sexualidades dissidentes ou de pessoas que fazem atos contra a natura e são antissociais, referem-se aos homens”. A afirmação é da antropóloga Raquel Afonso, investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea (IHC NOVA) em relação ao seu estudo sobre a memória histórica LGBTI. De acordo com a investigadora, “não só em termos estatais, mas também em termos de opressões sociais” as pessoas lésbicas estão “remetidas ao silêncio”. Por outro lado, se a invisibilidade foi uma forma de opressão durante o Estado Novo, Raquel Afonso menciona também que ”algumas conseguem dar-lhe a volta e pensar nessa invisibilidade como uma forma de resistir”: “é normal duas mulheres poderem partilhar casa e houve várias mulheres lésbicas durante o Estado Novo que o fizeram e nunca tiveram problemas exatamente por isso”, constata.
Esse passado marcado por tempos ditatoriais influenciou o modo como os avanços nessa temática ocorreram, mas também na forma como a lesbianidade é vista ainda no presente, como destaca a investigadora Ana Lúcia Santos, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). A questão é analisada no projeto REMEMBER, que visa estudar vivências de Pessoas LGBTQ Idosas no Portugal Democrático desde 1974 até 2020. “Para estudar o envelhecimento, ou seja, a forma como as pessoas estão a experienciar o envelhecimento hoje, é impactada pela forma como as pessoas viveram a sua juventude. E nós aqui temos o Estado Novo e temos a ditadura”, destaca.
Para a investigadora Raquel Afonso, a invisibilidade lésbica foi motivada por várias razões durante o Estado Novo. Entre as principais questões, salienta que “os homens têm o domínio da esfera pública e, portanto, as mulheres são remetidas para o privado”. Não é, portanto, de estranhar que muitas mulheres lésbicas tenham “relações íntimas mais no foro da própria casa e não frequentem espaços públicos à procura de encontros fortuitos”.
Outra componente salientada pela investigadora é “o facto de as mulheres terem um controlo educacional muito mais forte do que os homens”, o que leva a que as pessoas lésbicas descubram “uma sexualidade dissidente muito depois do que normalmente acontece com os homens”. Tendo em conta factores como “uma mulher que viva numa cidade e que seja de uma classe social mais elevada tem acesso a coisas que uma mulher de uma aldeia, ou uma mulher mesmo que vive na cidade e de classe baixa, não tenha acesso”, Raquel Afonso sublinha que as pessoas lésbicas são socialmente educadas para que “este é o único caminho que tenho e, portanto, é isto que eu tenho de fazer. Foi por isto que eu nasci. Foram educadas nesse sentido. E, só mais tarde, é que conseguem perceber que afinal a heterossexualidade não é o único caminho”.
Se existe um passado marcado por “uma falta de liberdade a todos os níveis, porque não se podia contar a ninguém”, como conta Raquel Afonso, a Revolução de 25 de Abril de 1974 comportou uma esperança para a comunidade lésbica. Mas nas palavras da investigadora, “o 25 de Abril não foi o 25 de Abril das liberdades homo e lésbica afetivas”. A investigadora constata que, atualmente, embora haja “sempre coisas a melhorar e a fazer”, “no plano jurídico eu acho que já se fez bastante”. No entanto, no social, os avanços são mais lentos “mas o facto de existirem estas leis que proporcionam uma maior visibilidade, também leva a que a sociedade vá deixar de estranhar tanto as coisas que para elas são fora da norma”.
Em Portugal, as últimas décadas foram marcadas por mudanças sociais e legislativas com forte impacto na vida das mulheres lésbicas. O primeiro passo passou pela descriminalização, após longos anos de a homossexualidade ser vista como um “atentado ao pudor” pelo Código Penal de 1852. Só em 2004 o Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da igualdade, passou a incluir a orientação sexual como factor de não discriminação. Um ano antes, em 2003, o Código de Trabalho já tinha estabelecido medidas de proteção contra a discriminação.
Além disso, embora a união de facto já fosse reconhecida para todos os casais, o casamento continuava sem estar previsto no ordenamento jurídico português. Fruto do trabalho feito quer pelas associações e iniciativas colectivas criadas em defesa dos direitos de pessoas homossexuais, quer por pessoas individuais, como Teresa Pires e Helena Paixão que, em 2006, tentaram pela primeira vez um casamento entre duas mulheres em Portugal, levando o seu caso ao Tribunal Constitucional, em 2010 o casamento entre pessoas do mesmo género passou a ser permitido no contexto português.
A Lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, veio permitir que a possibilidade adoção para casais do mesmo sexo. Já a Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, consagrou o acesso à procriação medicamente assistida para mulheres lésbicas casadas e mulheres solteiras. Mais recentemente, a Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, proíbe as denominadas práticas de “conversão sexual” contra pessoas LGBT+.
Embora algumas mudanças legislativas tenham sido tomadas tardiamente, a psicóloga educacional Eduarda Ferreira considera que “Portugal claramente teve uma grande evolução, especificamente para as lésbicas, a questão da adoção, co-adoção e inseminação medicamente assistida”, referindo também a possibilidade do casamento. A investigadora do CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais na NOVA FCSH) acrescenta: “mais do que fazer agora a mudança na legislação – que seria importante, e está a ser feita – falta ainda a ser feito com mais intensidade investimento a nível da sensibilização, na educação, no grande público, isso é fundamental”.
Foi principalmente na década de 1990 que o ativismo lésbico começou a surgir. Como refere Alexa Santos, dirigente do Clube Safo, “às vezes dá a sensação que o ativismo lésbico não existe ou não existiu durante muito tempo”, mas “veio muita gente antes de nós”, frisa.
Em 1997, o Arraial Lisboa Pride foi organizado, pela primeira vez, pela Associação ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), criada em 1995, a par de outros acontecimentos como a atribuição de um espaço para o Centro Comunitário Gay e Lésbico, hoje Centro LGBT. Só em junho de 2000 é que se realiza a primeira Marcha do Orgulho LGBT em Lisboa, tendo-se espalhado estes eventos ao longo dos anos por todo o país.
Mesmo com a existência da ILGA Portugal e de revistas lésbicas como a Organa (1991) e a Lilás (1993), um grupo de mulheres sentiu a necessidade de existir uma associação exclusiva para pessoas lésbicas e juntou-se, em 1996, para criar a primeira e única associação lésbica em contexto nacional: o Clube Safo. Ao longo destes anos, mantendo-se “mais ou menos viva, mais ou menos ativa”, tem procurado criar iniciativas como a Revista Zona Livre, “que conta a nossa história, que, no fundo, documenta o que é isto do caminho ativista lésbico”, recorda Alexa Santos. As primeiras e únicas Jornadas Lésbicas ocorridas em Portugal, em 2001, foram também promovidas por esta associação, o que demonstra a necessidade de “nós temos que estar na academia, temos que ocupar este espaço”, frisa.
Dentro das várias conquistas que o Clube Safo tem conseguido ao longo dos anos, Mahara Damasceno, dirigente da associação, fala-nos do facto de, “pela primeira vez, desde o ano passado começa a ter realmente investimento de projetos que nós estamos tendo financiados”, por parte da EL*C, EuroCentralAsian Lesbian* Community. Reforça que “é um Clube Safo que está crescendo. É um Clube Safo que agora é europeu. Já não é mais só nacional. E isso se dá ao esforço das pessoas lésbicas que compõem Portugal”. Este financiamento europeu permitiu a criação do projeto Lesbian 360º que se propõe “responder a várias necessidades das pessoas lésbicas* a nível nacional”, como se lê no website da associação. Também o financiamento da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género permitiu ao Clube Safo estar a desenvolver o projeto Léstória, um arquivo lésbico e feminista português. Entre vários objetivos, este projeto visa combater a invisibilidade lésbica.
Tanto Alexa Santos como Mahara Damasceno salientaram que um dos focos do Clube Safo é também promover conhecimentos sobre a saúde lésbica. O Lés+Saúde é um projeto que criou brochuras que abordam a maternidade, a saúde sexual e o acesso à saúde.
O Clube Safo procura também a realização de atividades com caráter anual como o Acampamento Sáfico ou assinalar o mês de abril como o mês da visibilidade lésbica. A 26 de abril comemora-se Dia Internacional da Visibilidade Lésbica e, no ano de 2024, o Clube Safo, juntamente com outras organizações e associações, prepararam um conjunto de atividades a decorrer por todo o país durante esse mês, o AbriLés. “O objetivo é continuarmos ao longo dos próximos anos para também dar força aqui às lutas e às realidades de pessoas lésbicas e também criar lugares seguros para pessoas lésbicas”, partilha Ana Rocha, membra da direção da ILGA Portugal.
Frequentemente, o ativismo lésbico encontra-se associado à comunidade LGBTQIAP+. No entanto, como reforça Alexa Santos, “o feminismo não existe sem as lésbicas e as lésbicas também estão no feminismo. E as lutas das mulheres também são lutas lésbicas”, pelo que os direitos das mulheres têm sido um dos motes do Clube Safo.
A par disso, a dirigente considera também que a associação procura “trazer assuntos fraturantes para a mesa das questões LGBTQAP+ e das associações LGBTQAP+”. A partir da questão “o que é isto de ser lésbica?”, o Clube Safo pretende abrir “esta discussão para um fórum alargado de outras organizações também LGBT”.
Sobre a palavra lésbica, Mahara Damasceno esclarece “nós acreditamos em pessoas lésbicas, nós temos um asterisco do nosso lado que inclui as lésbicas pansexuais, bissexuais, pessoas não binárias, em toda a sua diversidade, do que é ser lésbica”. Alexa Santos reforça “nós dizemos que uma pessoa bissexual, uma mulher bissexual não é o mesmo que uma mulher lésbica, mas ela pode estar num espaço lésbico, ela deve estar num espaço lésbico, ela faz parte de um espaço lésbico. Assim como uma pansexual, assim como uma mulher trans, assim como uma pessoa não binária. E quem somos nós para dizer não?”.
Tanto a psicóloga Joana Moreira, coordenadora do projeto (A)MAR-Açores pela diversidade, como Ana Vicente, membra da direção da ILGA Portugal, falam da importância da interseccionalidade na comunidade LGBTQIAP+, havendo identidades dentro dela que se cruzam entre si. Em concordância, Ana Rocha considera que “tanto a ação em conjunto é extremamente importante para várias lutas, como também é olhar para cada uma das letras e das necessidades de cada uma destas comunidades”.
“Nós, na ILGA, achamos que a nossa luta é em conjunto e faz-nos sentido assim” foram as palavras de Ana Vicente. Embora a ILGA tenha sido criada em 1995, apenas foi formalizada enquanto associação um ano depois, sendo a mais antiga associação de luta pela igualdade e contra a discriminação das pessoas LGBTI+ e das suas famílias em Portugal. Dispõem de um programa alargado de apoio no âmbito social e comunitário que garanta melhor qualidade de vida a esta comunidade e luta contra a discriminação, em função da orientação sexual, da identidade de género, da expressão de género e das características sexuais. Além do âmbito nacional, também são membros da ILGA Europe e da ILGA World. Em termos de organização, quer em direções anteriores, quer na atual, “temos tentado sempre manter esse foco nesta letra L”, conta Ana Vicente.
Falar sobre visibilidade lésbica é “falar do não apagamento das realidades de pessoas lésbicas”, segundo Ana Rocha. Ana Vicente completa que este apagamento deriva da “própria sociedade patriarcal em que nós vivemos, que invisibiliza muitas mulheres. Invisibiliza também uma sexualidade feminina que não esteja centrada, ou seja, falocêntrica e heteronormativa”.
Se a ILGA dispõe do Centro LGBTI, que proporciona o convívio entre a comunidade em Lisboa, Ana Rocha lança o alerta para “saindo das grandes metrópoles, há muita falta desses espaços, não só para pessoas lésbicas, mas para pessoas LGBT no geral, quer nas ilhas, quer no interior do país”. O projeto (A)MAR-Açores pela diversidade, sediado em Ponta Delgado, e a associação LGBTI Viseu partilharam as suas realidades connosco.
Foi o filme Lobo e Cão, de Cláudia Varejão, que esteve na origem do projeto (A)MAR-Açores pela diversidade. Após a realizadora ter começado a fazer a sua pesquisa e investigação para o filme, “percebeu que havia muitas pessoas a viver em situações de exclusão, de precariedade e de viverem dentro do armário e que não havia nenhuma plataforma ou associação que trabalhasse no sentido quer de promover os direitos, quer de combater o preconceito”, conta a psicóloga Joana Moreira. Foi assim que a 17 de maio de 2021, Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, nasce o (A)MAR-Açores pela diversidade, integrado na Associação para o Planeamento Familiar e Saúde Sexual e Reprodutiva dos Açores, com o objetivo de “promover os direitos das pessoas LGBT e também responder a necessidades específicas, quer em termos de saúde psicológica sobretudo, e depois articular com outras organizações da comunidade para responder a outras necessidades”, conta Joana Moreira.
Das formações que a psicóloga dá em escolas relacionadas com temáticas LGBTQIAP+ e dos relatos que nelas ouve, sente que “entre mulheres o que era amor e um romance, à vista de todos era uma amizade e, portanto, era mais facilmente tolerado”. Neste sentido, “é um pouco esta tolerância que não é verdadeiramente legitimar a relação homossexual entre mulheres”, sublinha.
Num contexto insular, onde existe muita proximidade entre as pessoas e com uma marcada influência religiosa, a psicóloga considera que, muitas vezes, as pessoas optam por “não viver ou viverem de forma clandestina” a sua sexualidade. Na sua entrevista, Joana Moreira partilhou que, em três anos de existência do projeto, embora o (A)MAR já tenha sido contactado por algumas pessoas lésbicas a procurar informação ou qualquer tipo de apoio, esses pedidos iniciais acabam por não se concretizar devido à desistência das próprias pessoas.
A coordenadora do (A)MAR alerta também para a falta de informação sobre “referências da história e do legado LGBT que façam criar uma identidade açoriana”. Constata a necessidade de haver um investimento na investigação destes temas, pois “não há estudos nem especificamente sobre lésbicas, nem sobre o movimento lésbico aqui nos Açores”. Na sua opinião, esta falta de dados conduz à invisibilidade da lesbianidade.
Criada em 2018, foi “no meio da pandemia”, em 2020, que a LGBTI Viseu passou a ser associação. Quando se dirigiram à Conservatória no primeiro dia de encerramento dos serviços públicos em Portugal devido à Covid-19, fizeram questão de adiar o momento, então, para o dia 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, conta Ana Ferreira, dirigente da associação.
A LGBTI Viseu sobrevive de trabalho voluntário “sem qualquer financiamento público ou privado”, devido às dificuldades de acesso a financiamento: “uma associação que não tem dinheiro dificilmente consegue aceder a um financiamento que não é financiado a 100%”, desabafa a dirigente.
Além da realização de atividades e eventos no distrito de Viseu, realizam também anualmente um inquérito sobre Discriminação em função da Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Género e Características Sexuais na população LGBTI+ nessa zona geográfica. A partir destes dados, pretendem aferir “quais são as necessidades da comunidade LGBTI+”. A dirigente sublinha que a elaboração deste relatório é feita através de “trabalho exclusivamente voluntário”. A preocupação com a saúde mental conduziu também a proporcionarem consultas de psicologia mais baratas para pessoas associadas.
Embora considerando que o contexto português é de “algum privilégio”, tendo em conta que o nosso país ocupa um lugar bom no Rainbow Map (10.º lugar), Ana Ferreira reforça que “os direitos são um papel e podem ser facilmente revogados”. A par da garantia de manter esta legislação, salienta que “é preciso ver se as leis estão aplicadas” no contexto social.
Sobre a existência de espaços LGBTQIAP+ em Viseu, a dirigente da associação diz “isso é uma coisa que eu desconheço”, destacando que esses espaços existem mais no litoral do país. “A maior parte, que eu tenha conhecimento, de espaços friendly acaba por ser muito masculinizado”, conta.
As conquistas legislativas e a multiplicação de associações lésbicas em Portugal são, sem dúvida, motivo de celebração. Mas nem todas as mulheres sentem, na prática, o peso desse progresso, sobretudo fora dos grandes centros urbanos. Se o 25 de Abril abriu a porta à liberdade, cabe agora à sociedade assegurar que essa porta nunca mais se feche para as mulheres lésbicas — e que a palavra ‘visibilidade’ deixe de ser uma aspiração, para se tornar uma realidade diária.