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REPORTAGEM
 DEMOCRACIA 

Artigo 240º
Código Penal:
entre a ineficácia
e o perigo de repressão

Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Marina Mota
Digital de Teresa Gomes

19.08.2024

O crime de incitamento ao ódio e à violência, definido pelo artigo 240º do Código Penal é, segundo os especialistas, difícil de demonstrar. A complexidade do ilícito aliada à falta de clarificação jurídica dificultam a sua aplicação. Associações de defesa dos direitos humanos reivindicam a mudança da lei e o agravamento das penas, mas especialistas do Direito alertam para a ineficácia da repressão e a importância de preservar a liberdade de expressão. Dificuldades na aplicação da lei já foram reconhecidas pela Ordem dos Advogados e pelo Governo, que admite alterar a legislação.

Esta reportagem é a segunda parte de uma investigação que o Gerador dedica ao tema dos crimes de ódio.

 

Dos vários crimes de ódio de que foi vítima ao longo da vida, Mamadou Ba diz ter feito queixa de “uns cinco ou seis”. O ativista antirracista e dirigente da SOS Racismo não ganhou em nenhum desses casos, mas há dois deles a causar particular indignação.

O primeiro foi a queixa feita contra dois elementos do PNR – Partido Nacional Renovador, atual partido Ergue-te!, de extrema-direita, que, a 25 de janeiro de 2019, o filmaram quando se dirigia ao Fórum Picoas, em Lisboa. “Viemos confrontar-te porque ninguém o faz. Somos nós que pagamos o teu salário. Tu não podes vir falar mal de Portugal”, afirmaram Carlos Teles e João Patrocínio. Este último era candidato às eleições europeias. “Como estrangeiro deves respeitar”, acrescentou Carlos Teles.

Poucos dias antes, Mamadou Ba – que à data era assessor do Bloco de Esquerda -, escreveu nas redes sociais uma publicação polémica: “Sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bófia e da facho esfera é uma coisa, é natural, agora levar com sermões idiotas de pseudo radicais iluminados é já um tanto cansativo, carago”. A frase vinha a propósito da violência policial no bairro da Jamaica, no Seixal. A expressão “bosta da bófia” seria diversas vezes instrumentalizada pelo PNR, para se manifestar especificamente contra o ativista antirracista.

Voltemos ao caso em questão. Os dois elementos do partido de extrema-direita insistem e dizem: “pago-te 200 mil euros para tu manteres uma associação de ódio racial”. Sem perder a calma, Mamadou respondeu: “Sabes o que isso se chama? É bullying”. O vídeo foi depois partilhado nas redes sociais.

O ativista fez queixa, mas o caso acabou por ser arquivado. Na decisão do Ministério Público, divulgada cerca de dois anos depois, é referido: “[Mamadou Ba] não se opôs à filmagem”, o que significa um “acordo presumido”, ou seja, a mesma foi consentida e por isso, os membros do PNR teriam atuado “sem dolo”.

No despacho é ainda feita menção a um suposto “empurrão” de Mamadou Ba a Carlos Teles que, além de não ser visível no vídeo divulgado, o ativista nega. O Ministério Público diz, no seguimento disso, que a filmagem poderia ter “subjacente um cunho de auto-defesa”, mas nunca questionou Mamadou sobre esse empurrão, segundo o próprio.

O segundo caso que também deixou o ativista “embasbacado” foi quando juntou vários insultos sofridos através das redes sociais e apresentou queixa ao MP. ”Passado um bom tempo, eu recebo o indeferimento da minha queixa com esta justificação, que achei inacreditável: “não tendo fornecido os IPs de onde partiram as ameaças e os insultos, o MP era incapaz de prosseguir com o inquérito, porque não tinha a forma de chegar às pessoas.”

Para Mamadou Ba, estas duas situações “dizem muito sobre a falta de vontade, do Estado”, sobre como este “está impreparado para lidar com o problema do ódio”. “Há uma apatia institucional em relação à questão da violência de ódio”, afirma, em entrevista ao Gerador.

Em comparação, Mamadou Ba perdeu o processo no qual o neonazi Mário Machado fez uma queixa contra si por difamação. O motivo foi o post publicado pelo dirigente da SOS Racismo no Facebook, no dia 14 de junho de 2020, onde afirmava que o líder do grupo 1143 é “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” em Lisboa, a 10 de junho de 1995, por militantes da extrema-direita. O ativista foi condenado a pagar uma multa de 2400 euros. “[Aquele] não era um julgamento entre mim e o Mário Machado. Era o julgamento da justiça consigo própria”, diz.

Perante estes factos, Mamadou Ba acredita existir “uma porosidade ideológica” das instituições face ao discurso de ódio. “É uma coisa preocupante, porque isso não é uma ameaça para Mamadou só, ou para pessoas como eu. É uma ameaça para as instituições, para a ordem democrática”, defende.

Já depois da entrevista realizada a Mamadou Ba – ou seja, depois de abril de 2024 – o Tribunal da Relação de Lisboa anulou a sentença aplicada ao ativista. A justificação apontada foi o facto de a decisão do Tribunal Local Criminal de Lisboa não estar devidamente fundamentada.

 

A problemática do artigo 240º

 

Afinal o que está em causa e qual o motivo para a maioria das denúncias de agressões, físicas ou verbais, motivadas pelo ódio acabarem arquivadas?

Para começar, em Portugal não existe um crime de ódio propriamente dito, expresso na lei. O que há é o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, descrito no artigo 240º do Código Penal.

Artigo 240.º – Crime de Discriminação e incitamento ao ódio e à violência

1 – Quem:

a) Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda que incitem ou encorajem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica; ou

b) Participar nas organizações referidas na alínea anterior, nas atividades por elas empreendidas ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento;
é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 – Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade:

a) Provocar atos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica;

b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica;

c) Ameaçar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica; ou

d) Incitar à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica;
é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

Fonte: Código Penal

Este crime existe desde 1995, altura em que o Código Penal foi reformulado. Antes disso, eram punidos o “Genocídio e a Discriminação Racial”, no Código Penal de 1982, artigo 189º. As condutas punidas incluíam homicídio, ofensas à integridade física e psíquica, sujeição do grupo ou comunidade a tratamentos desumanos, a “transferência violenta de crianças para outra comunidade ou outro grupo”, entre outros. A discriminação religiosa e social também estava aqui incluída, mas o foco era o racismo.

Após a reformulação do Código Penal, em 1995, este artigo desapareceu e foi criado o artigo 240º, embora não com a formulação atual. O texto foi sendo alterado, numa clara tentativa de dar resposta às reivindicações sociais.

Primeiro foi denominado de crime por “Discriminação Racial”, depois foi adicionada a componente “Religiosa”, em 1998. Em 2007 viria a incorporação da “discriminação sexual”. Em 2013, sem que o nome do crime fosse alterado, foi adicionada “a origem étnica ou nacional” e “a identidade de género”, como fatores motivadores do comportamento penalizado criminalmente.

Após uma alteração em 2017, a última mudança na lei foi feita já em 2024. As condutas às quais se aplica o artigo 240º foram ampliadas. Na alínea a) do nº1 foi acrescentado “quem fundar ou constituir organização […] ao ódio ou à violência…”. Assim, deixou de ser exigido apenas o “desenvolvimento de atividades de propaganda organizada”, bastando que a própria organização encoraje a discriminação, o ódio e a violência.

A mudança – efetivada através da Lei n.º 4/2024 – veio ainda introduzir no 240.º do Código Penal um novo artigo, o qual explicita que, quando os crimes descritos nos artigos anteriores sejam cometidos através de sistema informático, o tribunal pode ordenar a eliminação dos mesmos.

Já houve também outras propostas de alteração que não chegaram a ser aprovadas. Em 2021, por exemplo, o Governo socialista pretendia criar uma sanção acessória para que quem exerça cargos e funções públicas, seja docente ou jornalista, ficasse impedido de exercer a sua profissão, após ser condenado pelo crime de incitamento ao ódio. A proposta estava incluída no Plano Nacional de Combate ao Racismo e Discriminação 2021-2025 – Portugal contra o Racismo, mas a queda do Governo levou a que ficasse pelo caminho.

A propósito do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio (18 de junho 2024), a ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, afirmou que o enquadramento jurídico destes crimes é uma das preocupações do atual executivo e disse ter intenções de avaliar a legislação. Face ao aumento de 38% das denúncias registadas pelas forças de segurança, a responsável afirmou ser “muito importante actuar na prevenção e no combate”, mas também “apostar na sensibilização da sociedade” e no apoio às vítimas.

A governante disse ser necessário o envolvimento da Assembleia da República para discutir o tema e avaliar “se a legislação vai ao encontro das necessidades”.

 

Ódio vertido noutros crimes fora das estatísticas

 

Devido à complexidade dos casos e do que isso implica aquando da investigação, muitas vezes os crimes podem nem ser enquadrados no artigo 240º do Código Penal, sendo considerados ofensas à integridade física, ou, no caso de agressão verbal, crime de injúria ou difamação. Assim sendo, a motivação de ódio é retirada da equação e não surge nas estatísticas.

Conforme referido no primeiro artigo desta série, o número de denúncias de crimes por incitamento ao ódio tem vindo a aumentar. A PSP e a GNR divulgaram que, em 2023, foram registadas 347 denúncias (no total, pelas duas forças de segurança), representando um aumento de 38% face a 2022. No total, houve mais 77 casos que no ano anterior.

Já o Ministério Público abriu 262 inquéritos por este crime, mas apenas emitiu cinco despachos de acusação, em 2023. Nesse ano, o número de inquéritos abertos foi 255, tendo resultado, também, em cinco acusações. O arquivamento continua a predominar.

Para o jurista Nuno Igreja Matos, apesar de o artigo 240º incluir vários exemplos de motivações de ódio puníveis, a lei não esclarece o significado exato da palavra “ódio”, tornando mais difícil a sua aplicação.

O também docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e autor do livro Ideologias Políticas e Direito Penal: O Problema da Incitação ao ódio no Conflito Político (2023, Almedina), considera por isso haver várias questões a considerar neste enquadramento penal, sendo a definição dos conceitos uma das principais. “O conceito [de ódio] em si não está, de todo, estabilizado. Isso também tem várias razões. Uma delas é o facto de ser um conceito que não nasce no Direito”, refere Nuno Igreja Matos.

O jurista explica que a origem do termo é mais “jornalística e social do que propriamente jurídica”. “Isso leva a que o Direito esteja, de certo modo, “a tentar capturar um conceito fora do edifício jurídico e muitas vezes esse conceito fica tremido, fica ‘nervoso’, pode-se expandir de mais ou pode-se reduzir”.

A par disto, o docente e investigador ressalva que a motivação criminal por ódio está vertida noutros artigos do Código Penal que não o 240º, aparecendo muitas vezes sob a forma de agravante. No que respeita ao crime de homicídio qualificado, por exemplo, o Código Penal prevê, no artigo 182º, o agravamento da pena se a motivação for “ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima”.

No caso de agressões verbais, a questão pode ser ainda mais complexa. “A grande diferença entre o crime de injúria do Código Penal e o crime de discriminação e incitamento ao ódio do artigo 240º, é que o artigo 240º pretende essencialmente punir as injúrias contra um universo alargado de pessoas, enquanto que o crime de injúria pretende punir as injúrias dirigidas a uma só pessoa. Isto é uma diferença, basicamente, relacionada com o número de pessoas visadas. Não é uma diferença sobre o teor odioso ou não odioso do discurso. Eu acho que podem conviver”, afirma o especialista.

 

Vazio na lei?

 

Para a APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a falta de clareza nos conceitos é apenas um dos problemas da lei atual. “Existem situações de violência contra as pessoas que não estão exatamente tipificadas na lei”, diz Joana Menezes, gestora da Rede de Apoio a Migrantes e Vítimas de Discriminação da referida associação.

A APAV tem vindo a alertar para a importância de alterar o Código Penal e criar o crime de ódio propriamente dito. O facto de existirem crimes nos quais a motivação de ódio não é registada é uma das justificações para a reivindicação desta alteração legislativa. Entre as Recomendações para políticas públicas e alterações legislativas para uma maior eficácia no combate ao fenómeno dos crimes de ódio, divulgadas em 2020 pela organização, é proposto que a redação do artigo 240º seja clarificada, de forma a evitar ambiguidades na sua interpretação.

A associação pede ainda a “criação de tipos penais qualificados para os crimes que mais comumente são cometidos por motivo discriminatório como, por exemplo, a violação, as ofensas à integridade física simples, a ameaça, a difamação, a injúria e o dano”. Também a “introdução de uma agravante geral que refira expressamente a motivação de ódio e as características protegidas” que possa ser aplicada a todos os crimes.

A implementação de um sistema de recolha de dados que não apenas obrigasse à “identificação do caso como crime de ódio como também ao registo do tipo de motivação discriminatória que esteve em causa” está entre as medidas defendidas. Para a APAV seria ainda importante “tornar crimes semipúblicos os crimes de injúria e difamação qualificados por motivação discriminatória”.

De acordo com informação disponível no Portal do Ministério Público, um crime público é “um crime para cujo procedimento basta a sua notícia pelas autoridades judiciárias ou policiais, bem como a denúncia facultativa de qualquer pessoa”. Isto significa que “as entidades policiais e os funcionários públicos são obrigados a denunciar os crimes de que tenham conhecimento no exercício de funções” e que o processo tem continuidade mesmo contra a vontade da vítima.

Já um crime semi-público requer a queixa da vítima, do seu representante legal ou sucessor. Também aqui as “entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar esses crimes”, o que continua a implicar depois uma queixa por parte dos ofendidos. “Nos crimes semipúblicos é admissível a desistência da queixa”, segundo o MP.

Numa iniciativa cidadã levada a cabo por um conjunto de ONGs, entre elas a SOS Racismo, vai-se mais longe e pede-se a transformação do artigo 240º do Código Penal em crime público. “O enquadramento legal atual não é suficientemente consequente do ponto de vista da aplicação” de penas efetivas, disse à Lusa Joana Cabral, da SOS Racismo, que frisou a importância de existir um elemento dissuasor que “não pode estar apenas ao nível da contraordenação” ou sujeito a queixas particulares, tendo em conta que se trata de um crime semipúblico.

“O discurso de ódio deve ser crime sempre”, independentemente “do meio em que é expresso”, disse ainda a dirigente, referindo que é “muito pouco consequente” apenas ser considerado crime quando o autor utiliza um meio destinado à divulgação, já que muitos casos acontecem em contextos pessoais.

 

Polarização e repressão

 

A par com as questões inerentes aos conceitos e à legislação propriamente dita, surge sempre no debate a questão dos limites da liberdade de expressão e sobre o que deve ou não ser punido criminalmente, quando o que está em causa é o discurso.

“É uma questão que, além de ser juridicamente difícil, depois está muito contaminada hoje em dia, com a grande atenção social que este tema tem recebido nos últimos anos”, explica Nuno Igreja Matos.

De acordo com o jurista, “todos os crimes expressivos são difíceis”, pois “têm uma elevada carga de subjetividade, pode haver nuances que não são universais”. Pode, por exemplo, dar-se o caso de uma pessoa visada por um discurso ofensivo não se sentir ofendida, mesmo que as palavras proferidas sejam vistas como ofensivas pela sociedade onde esta se insere. “Enfim, há aqui vários problemas”, esclarece o especialista, que destaca ainda a falta de jurisprudência em Portugal.

Francisco Teixeira da Mota, por sua vez, é peremptório e afirma que o agravamento da punição não é o caminho. “O agudizar da polarização [não se combate] pelo aumento da repressão”, disse o advogado especialista em liberdade de expressão e de informação, no programa Entrevistas Centrais, do Gerador.

 

O baixo número de acusações e, consequentemente, condenações pelo crime de incitamento ao ódio e à violência “diz muito pouco” sobre o que está em causa, até porque estas questões não podem ser analisadas no abstrato, requerem sempre contexto, segundo o especialista.

Teixeira da Mota acredita que o discurso, mesmo sendo de ódio, não deve ser punido, a não ser quando existe um incitamento direto à violência, em casos muito concretos. Exemplifica com as seguintes hipóteses: se alguém numa manifestação exibir um cartaz onde se lê “morte à polícia”, não deve ser punido; se, por outro lado, durante um confronto, um polícia estiver numa posição de fragilidade, a ser agredido e alguém proferir a mesma frase, já existe margem para a punição, de acordo com o advogado.

A sua linha vermelha é, por isso, o “risco inerente de violência”, em condições muito específicas. “Mesmo o apelo à violência, para mim, não chega. É preciso que esse apelo à violência tenha alguma possibilidade, viabilidade ou potencialidade de ser efetivo”, explica.

Assim, para o advogado, uma pessoa que profere uma opinião “estúpida, menos clarividente, errada – se é que uma opinião pode ser errada -, pouco louvável ou mesmo lamentável sobre determinadas pessoas ou sobre determinado grupo de pessoas, não deve ver-se criminalizado”. “Não há que ser criminalizado. É esse o risco do [artigo] 240º [do Código Penal], que já de si é muito restritivo, já foi muito alargado”.

Essa ideia de [aplicar] penas mais pesadas é um atraso completo. Não tem vantagem nenhuma”, diz. O primeiro motivo apontado pelo autor do ensaio Liberdade de Expressão em Tribunal (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2003) é que quem profere discurso de ódio não será dissuadido por uma pena mais gravosa. “Ninguém está a pensar nisso.”

Depois, uma punição mais pesada iria gerar “interpretações cada vez mais restritivas” do discurso, condicionando o debate livre de ideias. “O campo da repressão é infinito”, pois, conforme explica, o ser humano tem tendência para o egoísmo e pretende que todas as pessoas ajam à imagem do seu próprio universo. “Portanto, nós temos de desconfiar disso tudo”, sublinha.

Tudo o que seja vias repressivas em relação à opinião, a palavras, todo o cuidado é pouco e é por isso que o Tribunal Europeu [dos Direitos Humanos] diz que só se justifica restrições ou intervenções do Estado na liberdade de expressão, quando existe uma necessidade social imperiosa”, acrescenta.

De acordo com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a “liberdade de expressão constitui um dos pilares essenciais de uma sociedade [democrática], uma das condições básicas para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada ser humano”.

“O parágrafo 2 do artigo 10º [Da Convenção Europeia dos Direitos Humanos], é aplicável não apenas a ‘informação’ ou ‘ideias’ que são favoravelmente recebidas ou encaradas como inofensivas ou com indiferença, mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou qualquer setor da população. Essas são as exigências do pluralismo, tolerância e mente aberta sem as quais não existe uma ‘sociedade democrática’. Isto significa, entre outras coisas, que cada ‘formalidade’, ‘condição’, ‘restrição’ ou pena imposta nesta esfera tem de ser proporcional ao objetivo legítimo perseguido” (Handyside versus the Reino Unido, julgamento de 7 Dezembro 1976).

O mesmo Tribunal também deliberou que “…tolerância e respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos constitui a fundação de uma sociedade democrática e plural. Assim sendo, como princípio pode ser considerado necessário em certas sociedades democráticas, sancionar ou até prevenir todas as formas de expressão que espalham, incitam, promovem ou justificam o ódio baseado na intolerância…, desde que quaisquer ‘formalidades’, ‘condições’, ‘restrições’ ou ‘penas’ impostas sejam proporcionais ao objetivo legítimo perseguido. (Erbakan versus Turquia, julgamento de 6 julho 2006).

 

Primazia da liberdade de expressão…

 

“Há algumas formas de discurso que podem ser consideradas agressivas, [mas] que ainda podem cair dentro da liberdade de expressão”, especialmente se estiverem em causa questões políticas, afirma também Nuno Igreja Matos.

O problema, segundo o jurista, é o facto de “vivermos nesta clivagem muito extrema”, na qual se considera uma de duas opções: ou a pessoa está a exercer um direito fundamental ou está a praticar um crime”, explica. Apesar disso, há “certos tipos de discurso mais duvidosos, em que não faz sentido nem dizer que ainda cabem no direito à liberdade de expressão, mas também é demais puxar isso logo para o ângulo criminal”, até porque este deve ser “o último recurso”.

Foi uma lógica semelhante, a seguida pelo Tribunal da Maia, quando ilibou a historiadora Fátima Bonifácio do crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

Em causa estava um texto de opinião assinado pela autora em julho de 2019, no jornal Público. No artigo, Fátima Bonifácio reagia às declarações do secretário nacional do Partido Socialista, Rui Sena Pires, quando este referiu a necessidade de criar em Portugal quotas de acesso ao Ensino Superior para afrodescendentes e membros da comunidade cigana.

A historiadora contestou essa proposta, descreveu as pessoas de etnia cigana como “inassimiláveis” e inferiu que nem estes, nem os afrodescendentes “descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Revolução Francesa”, entre outros argumentos.

O juiz reconheceu as palavras de Fátima Bonifácio como sendo discurso de ódio e frisou que eram “agressivas ao ponto de causarem repúdio imediato”. Apesar disso, considerou não serem suficientes para justificar uma condenação penal. É que, segundo descrito na sentença de absolvição, “nomeadamente pela motivação exclusivamente política do texto, não são aptas para colocar em causa a dignidade humana das comunidades visadas ou a inserção dessas comunidades na sociedade portuguesa”.

Nem todo o discurso de ódio que contenha afirmações preconceituosas, racistas ou xenófobas mais ou menos sérias ou disparatadas” é punível como crime, segundo o juiz.

Francisco Teixeira da Mota, advogado de defesa da historiadora, aplaude a decisão do magistrado. “A sociedade tem de aguentar esta capacidade de discussão e tem de a promover mesmo, pois é assim que se geram pessoas adultas e com resistência às coisas”, diz.

 

 

A par do crime do artigo 240º do Código Penal, a legislação portuguesa proíbe a discriminação e prevê coimas para quem a levar a cabo. O âmbito da Lei n.º 93/2017 é, no entanto, distinto, e dirige-se a atos como “a recusa de fornecimento ou impedimento de fruição de bens ou serviços, colocados à disposição do público”, “o impedimento ou limitação ao acesso e exercício normal de uma atividade económica”, “a recusa ou limitação de acesso aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou privados”, “a recusa ou limitação de acesso a estabelecimento de educação ou ensino”, a espaços de fruição cultural, entre outros.

 

… ou proteção da dignidade humana?

 

Para Mamadou Ba, os dois lados não são equivalentes, e por isso não deveriam sequer ser encarados como tal. “Quando os colocamos no mesmo nível como bens jurídicos a proteger, o que nós estamos a fazer, basicamente, é a rebaixar a dignidade humana”, afirma o ativista.

“Então, eu acho que a nossa arquitetura legal é insuficiente e muitas vezes inoperante. Nós temos duas ordens jurídicas: temos o quadro penal, depois temos o quadro contra-ordenacional. E há um problema, porque a montante devíamos ter, era uma discussão, na minha opinião, muito mais séria sobre o que é um crime, sobre o que é o racismo primeiro. Falar do discurso de ódio, só por si, é um eufemismo para fugir ao debate central.”

Para o dirigente da SOS Racismo a lei “tem que ter uma tipificação concreta, clara, separada” que puna o crime de ódio racial, pois, segundo explica, “o racismo não é um apêndice de uma violência, é uma violência estrutural”. Esta mudança permitiria “dar mais substância [ao crime] o que lhe dá uma força mais dissuasiva”, diz o ativista.

A dificuldade na aplicação do artigo 240º do Código Penal foi reconhecida pela presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, Cristina Borges de Pinho. Num discurso a propósito do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio (18 de junho 2024), a responsável afirmou que “este tipo de crime é de difícil aplicação, por força dos requisitos que exige“.

“Tem de ser praticado em lugar público, e não privado, e tem de ter ameaças, injúrias, difamações, enfim, condutas violentas feitas através de um meio que permite a divulgação”, o que cria uma “série de requisitos que depois torna difícil a aplicação prática do ilícito criminal”, disse a dirigente, em declarações à Lusa.

Estas exigências estão na base da explicação para a discrepância entre o grande número de inquéritos abertos e as escassas acusações. Não obstante, Cristina Borges de Pinho, sublinhou que o tema não deve cingir-se ao direito criminal.

“Esses comportamentos de menor gravidade, menor censurabilidade, também não ficam impunes” e, “muitas vezes, são subsumidos noutros crimes”, “como xenofobia ou racismo”, referiu. Assim, a dirigente disse ainda que o alargamento do alcance do artigo 240º pode traduzir-se numa desvalorização do “caráter dissuasor da pena criminal, o que não é bom”.

Para o procurador da República Miguel Ângelo Carmo não existe um vazio na lei. “O legislador poderia ser mais claro, é verdade que podia, mas com o esforço interpretativo nós temos vários crimes que prevêem diretamente a agravante do ódio”, diz em entrevista ao Gerador. “Portanto, nesta perspectiva global, eu acho que o Código Penal consegue tutelar o ódio, a perspectiva negativa que ele tem, enquanto conduta e motivação para a prática de crimes”, diz.

 

Conselho da Europa pede aplicação da lei

 

Em junho deste ano, após uma visita a Portugal, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa instou o país a melhorar as condições de habitação da população de etnia cigana e a aplicar efetivamente a legislação contra crimes de ódio.

A delegação reuniu-se com governantes, a Provedora de Justiça, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, a Agência para a Integração, Migração e Asilo (AIMA) e organizações da sociedade civil.

Durante a visita, “a delegação da ECRI recolheu informações sobre igualdade efetiva e acesso aos direitos, discurso de ódio e violência motivada pelo ódio e integração e inclusão”, segundo descrito na informação de balanço dos encontros.

Portugal deve “desenvolver e adotar instrumentos adequados, incluindo protocolos e procedimentos operacionais normalizados, com o objetivo de ajudar os serviços responsáveis pela aplicação da lei a tratar de forma eficaz e coerente os incidentes e crimes de ódio”.

Em paralelo, devem ser desenvolvidos “programas de formação conexos para todos os funcionários responsáveis pela aplicação da lei e outros profissionais da justiça penal”, de acordo com a recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a luta contra os crimes de ódio, conforme descrito.

Uma nova série de recomendações será emitida e avaliada em dois anos.

Ainda antes da divulgação deste relatório, o Gerador questionou todos os partidos com assento parlamentar – Partido Socialista, Partido Social Democrata, Partido Comunista Português, Bloco de Esquerda, Pessoas Animais Natureza (PAN), Chega e Livre – sobre este tema, nomeadamente para perceber qual a sua posição e se pretendem apresentar propostas de alteração à lei. Apenas o Livre respondeu: “nesta legislatura ainda não apresentámos nenhuma iniciativa específica mas estamos a trabalhar nesse sentido, não só para dar cumprimento ao programa eleitoral, mas também para suprir algumas das ineficiências jurídicas que já apurámos existir nesta matéria”.

No e-mail de resposta enviado ao Gerador, o grupo parlamentar do Livre refere, a par disso, duas iniciativas apresentadas na anterior legislatura. Um projeto de Resolução que recomendou ao Governo “que crie um grupo de trabalho e adote um plano nacional para combate a discursos de ódio online”, e projeto de lei “pela criminalização da ciberviolência”. Enquanto a primeira iniciativa foi aprovada com os votos contra do CH e IL, a segunda foi rejeitada com os votos contra do PS, PSD, IL, PCP e BE.

Também o PCP apresentou um projeto de resolução, em 2023, com medidas de combate ao discurso de ódio na internet, assim como o PAN. À semelhança do projeto de lei do Livre, estas duas iniciativas respondem a uma petição pública “Contra o ódio e Agressão Gratuita na Internet”. Caducaram com a queda do Governo e dissolução da AR.

 

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Incertezas e ambiguidades: a nuvem cinzenta dos crimes de incitamento ao ódio

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