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Passaram mais de dez anos desde que, em julho de 2009, foi aprovada, na Assembleia da República, a lei que estabelece o regime da educação sexual em meio escolar. No entanto, os poucos relatórios feitos até aqui apontam ainda para vários obstáculos que têm condicionado a aplicação da norma em várias escolas.
Uma abordagem insuficiente, que privilegia os conteúdos biomédicos, numa lógica prescritiva e normativa, e que descura dimensões igualmente importantes, como as questões de identidade e género, as relações afetivas ou os papéis sociais. É este o cenário pintado por grande parte dos alunos, mas também pais e vários professores.
O que está a falhar nas escolas? Tempo, recursos, (à-)vontade, formação? Não há apenas uma resposta. Até porque a dificuldade na implementação da educação sexual espelha outros problemas sistémicos: uma classe docente envelhecida, sobrecarregada e pouco valorizada, conteúdos excessivamente compartimentados e uma prática de ensino ainda muito agarrada a um modelo expositivo que não fomenta o espírito crítico dos alunos.
A educação sexual nas escolas é uma necessidade e um direito das crianças, jovens e das famílias, previstos na legislação portuguesa desde 1984. Os avanços feitos na área do Direito, desde então, contribuem para a opinião generalizada de que o nosso país tem, atualmente, um quadro legal muito completo nesta matéria. Todavia, do papel à prática, parece ainda existir um longo caminho a percorrer para garantir que todos os jovens têm contacto com estes conteúdos – na sua abrangência – em meio escolar.
Para a antropóloga Alice Frade, o problema começa logo quando ainda nos referimos a um «tema sensível», embora «afirmemos que estamos a falar de conteúdos de base científica». Já o médico pediatra Mário Cordeiro explica que os «48 anos de uma ditadura fascista», mas também a influência da «Igreja Católica» e até, mais atrás, da «Inquisição» contribuíram para as reticências que ainda persistem, e alerta, porém, para os perigos em não se falar abertamente desta temática: «perdemos, primeiro, o poder de compreender os fenómenos e, associado a isso, imediatamente, de tomarmos decisões informadas, conscientes, responsáveis».
Ficou célebre o caso do «pai de Famalicão» que, há vários anos, recusa que os filhos frequentem a aula de Cidadania e Desenvolvimento, por considerar que os tópicos lecionados – entre os quais a educação sexual – são da competência familiar e não da escola. O caso despoletou uma luta jurídica entre o encarregado de educação e o Ministério da Educação, e acabou mesmo por se transformar num manifesto “Em defesa das liberdades de educação”, subscrito por uma centena de personalidades – como Pedro Passos Coelho, Cavaco Silva, ou D. Manuel Clemente – que concordam que deve ser respeitada a objeção de consciência dos pais que entendam que os filhos não devem participar.
– Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga
A sexóloga Vânia Beliz – que considera que a educação sexual é uma questão «muito política» – lamenta que o tema seja apenas abordado «associado a este tipo de polémicas, que, na verdade, não representam a maior parte das pessoas.» Para Liliana Pina, mãe de dois rapazes, só com o envolvimento dos pais é possível garantir um trabalho «fluido» que culmine em «aprendizagens com significado»: «É como a questão ambiental. Na escola, os miúdos fazem a separação do lixo e, depois, em casa não o fazem. Em adultos, depois, o que se percebe é que eles deixam de fazer, porque aquilo era só um momento que acontecia naquele contexto específico.»
Ora, um receio que surge, muitas vezes, associado a esta temática é a ideia de que falar de sexualidade pode precipitar os jovens para o início de uma vida sexualmente ativa. Todavia, vários estudos científicos apontam para uma situação exatamente inversa.
Desmistificar e desconstruir, de forma objetiva, o que são os conteúdos da educação sexual parece, por isso, ser ainda um passo por dar para eliminar as hesitações que perduram relativamente a esta matéria, não só na escola, mas também em casa. Até porque a educação sexual não se cinge às questões relacionadas com atos sexuais, infeções sexualmente transmissíveis, reprodução ou métodos contracetivos. Engloba também questões de identidade e género, emoções, todo o tipo de relações afetivas, noções de consentimento, prazer, corpo, e muitos outros tópicos. Falar deste tema, explica Paulo Pelixo, psicólogo e diretor técnico da Associação para o Planeamento da Família (APF), «implica perceber, exatamente, todas as questões sociais que estão relacionadas com a sexualidade, com os direitos sexuais e reprodutivos de cada pessoa, e implica posicionarmo-nos exatamente nessa perspetiva, de perceber questões tão importantes como os limites de cada um, questões e fenómenos que estão presentes na nossa sociedade, como a discriminação, e que podem ser abordados também através da educação sexual.»
É um facto que, através da internet, os jovens que frequentam hoje os estabelecimentos escolares têm acesso a um manancial astronómico de informação, que não estava disponível – pelo menos, não tão facilmente – há algumas décadas. No entanto, estes nem sempre são capazes de contextualizar e desconstruir muita da informação que lá recebem – muita dela de carácter violento e «completamente distorcida», avalia a também psicóloga Vânia Beliz. «Há jovens que ainda não começaram as suas relações sexuais e são altamente consumidores de pornografia. Acham que sabem tudo e, quando chegam à prática, cometem muitos erros e colocam-se em risco. Há jovens que se relacionam, através da internet, sem conhecer os riscos que podem estar por trás desta forma de relacionamentos», exemplifica.
A Lei n.º 60 de 2009 – que estabeleceu um mínimo de horas obrigatórias por cada nível de ensino – constitui o instrumento legislativo mais claro, até à data, sobre a educação sexual em contexto escolar, ao definir os seus objetivos e o enquadramento curricular e organizacional nos quais esta deve acontecer.
A psicóloga e investigadora Margarida Gaspar de Matos, que fez parte do grupo de trabalho na origem dessa lei, conta que chegou na altura a ser equacionada a criação de uma disciplina específica para esta temática. Mas a importância de outras matérias, como a educação ambiental, financeira ou para a internet, e a já elevada carga horária dos alunos fizeram com que a hipótese não avançasse: «Em vez de terem oito horas de aulas por dia, passavam a ter doze».
Por esse motivo, optou-se antes por integrar a educação sexual – enquadrada na área da Educação para a Saúde – nas chamadas áreas curriculares não disciplinares, como Formação Cívica e Área de Projeto. Estas áreas foram, no entanto, suprimidas do currículo, mas manteve-se em vigor a lei de 2009, que não foi, entretanto, revogada, apesar de aqueles conteúdos terem transitado para a então criada Cidadania e Desenvolvimento – e «sem prejuízo da sua vertente interdisciplinar, ou seja, da importância de o tema ser abordado com o olhar específico das diferentes disciplinas, sob a coordenação do projeto curricular de turma», esclarece o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues.
Com um longo painel de outros temas a abordar – entre os quais, desenvolvimento sustentável, saúde, literacia financeira ou media –, a Cidadania e Desenvolvimento constitui uma disciplina autónoma apenas nos 2.º e 3.º ciclos, sendo uma área de natureza transdisciplinar, no 1.º ciclo, e desenvolvendo-se «com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação», no ensino secundário. A disciplina divide-se em três áreas temáticas, com orientações dadas a nível nacional, mas cabe ao professor decidir o que abordar dentro de cada tema, e como.
Uma vez que «a sexualidade, de uma forma mais vasta, acaba por abranger praticamente a vida toda», Mário Cordeiro defende que a educação sexual não deve ser uma disciplina específica: «Acho mais lógico, e por ventura também que é mais benéfico e mais eficaz, se esses temas todos forem sendo falados nas outras matérias todas (…). O aluno vai ganhando patamares em relação ao conhecimento da sexualidade de uma forma completa.»
Mas a opinião não é consensual. «Para ser transdisciplinar, tem de haver um currículo transdisciplinar que seja blindado, que não permita a introdução de valores da própria pessoa», contrapõe Carmo Gê Pereira, duvidando que a maioria dos professores do sistema educativo esteja preparada para o fazer, principalmente, «enquanto vivermos numa sociedade que oscila entre ser sexofóbica e sexocompulsória». Isto não invalida que, «se calhar daqui a 30, 40 anos», não tenhamos «um corpo docente que, como teve uma disciplina de educação sexual ao longo do crescimento, consegue implementar isto de forma transdisciplinar», completa a sexóloga.
A disparidade entre escolas – e mesmo entre turmas – é uma realidade, evidenciada num relatório do Ministério da Educação, que auferiu, em 2019, que grande parte dos estabelecimentos de ensino não estava a cumprir a lei aprovada dez anos antes.
O questionário, a que responderam 95 % das escolas ou agrupamentos existentes no país, revelou que apenas 36 % dedicavam as 12 horas de carga horária prevista, por ano, no secundário, ao chamado Projeto de Educação Sexual na Turma, sendo que num terço das escolas esse projeto simplesmente não existia. No 3.º ciclo do ensino básico, a percentagem subia para 57 % e, no 1.º ciclo, onde o limite desce para 6 horas, os valores de cumprimento da legislação subiam para 68 %, chegando a um máximo de 74 % no 2.º ciclo, onde se praticam as mesmas 6 horas.
«Creio que todos reconhecemos que são avanços muito importantes face à realidade das nossas escolas num passado recente», analisa Tiago Brandão Rodrigues, responsável pelo ministério da Educação, a quem cabe avaliar a implementação da lei. Em declarações, por escrito, ao Gerador, quando questionado sobre a atuação do ministério perante aqueles números, garante que a prioridade é a qualidade educativa. E considera, por isso, que é «fundamental que as escolas tenham autonomia para se organizar, constituam as suas próprias estruturas, encontrem as soluções mais apropriadas para o contexto em que trabalham e vão construindo este caminho progressivamente.»
Um estudo anterior, realizado em 2014, mostrava também que, em muitos casos, as instituições escolares se limitavam ao cumprimento formal da lei, numa visão partilhada pela APF. «Se há escolas em que temos a perceção de que é feito um trabalho muito consistente, muito sério, com muito empenho por parte dos profissionais a nível da educação sexual, também existem muitas escolas em que isto não acontece, em que o tema não é privilegiado e em que a educação sexual, tal como nos dizem muitos jovens com que trabalhamos, se cinge a uma ou duas sessões por ano num anfiteatro, em que um profissional de saúde vai falar sobre os aspetos biológicos da sexualidade», dá conta Paulo Pelixo, chamando ainda a atenção para o facto de a escola ser o único local onde muitos jovens podem ter acesso a uma educação sexual baseada em ciência. «Quando isso não acontece na escola, então estamos a criar desigualdades.»
Parece consensual que a educação sexual ainda se apresenta como um desafio para um grande número de professores. Segundo Ana Serra, diretora do Agrupamento de Escolas de Palmela, a grande dificuldade prende-se, muitas vezes, com a «parte mais afetiva, mais subjetiva, mais de personalidade e de falar de determinadas situações aos alunos.»
Perante diferentes crenças e ideologias, a ética surge, para Carmo Gê Pereira, como um valor central nesta problemática. «A pessoa pode ter uma moral conservadora, mas, se o estiver a fazer com ética e com uma formação que corresponde ao programa pretendido, entenda os objetivos e perceba que algumas das coisas vão contra as suas crenças pessoais, mas não é por isso que são menos verdade, tudo bem, é ética». Mas será que isso chega?
Com vários anos de experiência em formação de docentes, a psicóloga Sara Nasi garante que é raro um professor dizer, à partida, que se sente à vontade para abordar as temáticas da sexualidade: «Há vários tipos de professores. Há aquele professor que quer muito aprender, descomplicado e que sabe que, a partir, daí está tudo bem. Há aqueles mais resistentes. E há aqueles que não querem de todo. Não querem estar envolvidos, acham que aquilo não é a área deles, acham que um professor de matemática não tem de ensinar educação sexual.»Mas o professor só ensina? «O professor também é», afirma perentoriamente a docente do 1.º ciclo Ana Jorge. «Quando estamos em sala, aprendemos ensinamos e somos. O professor, para além de ser de português, ou do que quer que seja, tem uma responsabilidade social e ética, independentemente do conteúdo em que se especializou.»
– Ana Jorge, professora
A falta de formação e de experiência nesta área são também muitas vezes apontadas como limitações no processo de implementação da educação sexual. Isto apesar da existência de um Referencial da Educação para a Saúde, aprovado em 2017 – mas de carácter não-vinculativo e, para muitos, pouco claro e vago na área dos Afetos e Sexualidade.
«[A professora] estava a explicar aos meninos que feminismo é o contrário de machismo», relata Catarina Ferreira, sobre o episódio em que se viu obrigada a corrigir uma docente, no contexto de uma sessão sobre igualdade e género, que tinha ido, voluntariamente, dar à escola da filha. É para garantir que este tipo de situações não acontece que Alice Frade, que já foi responsável por um dos departamentos da APF, defende que o tema deve entrar na formação de base de professores, numa lógica «centrada nas pessoas e nos conhecimentos, no desenvolvimento de competências pedagógicas, de exercícios e de metodologias». Não descartando esta possibilidade, a APF sugere, sobretudo, formação contínua ao longo do ciclo de vida dos profissionais. «Defendemos as ações de formação, defendemos a reciclagem», menciona Paulo Pelixo, porque «dar educação sexual hoje não é o mesmo que dar educação sexual há 10 anos, ou há 15 anos. Os jovens não são os mesmos. As necessidades não são as mesmas. Os temas não são os mesmos».
Tiago Brandão Rodrigues
Ministro da Educação
De acordo com o ministro Tiago Brandão Rodrigues – e não obstante a administração educativa providenciar alguns programas, a nível nacional –, cabe sobretudo às escolas, em conjunto com os seus centros formativos, organizar as formações que respondam às necessidades, por elas, identificadas. Isto porque «está provado que os sistemas educativos que procuram impor tudo do topo para a base, sem reconhecer a autonomia das escolas e a iniciativa dos seus profissionais, acabam por ter um desenvolvimento mais comprometido», refere.
Tendo em conta que «há uma série de formações todos os anos, há materiais disponíveis online, há diretivas, há lei», para Ana Jorge, este não é, de todo, o problema, mas, sim, uma «questão cultural e social».
Porém, aquele estudo de 2014 indicava também que vários professores que se dedicavam estas matérias se sentiam desvalorizados e pouco reconhecidos no seu esforço. A psicóloga e sexóloga Maria Joana Almeida – que rejeita a perceção de não haver educação sexual nas escolas – dá o exemplo dos clubes que «não contam em nada para a carreira» profissional dos docentes. «Esses clubes são dinamizados por professores em voluntariado. Não acho isto lógico, não acho isto justo para ninguém, nem para os professores, nem para os psicólogos, nem para os enfermeiros. Mas se é isto que é esperado deles, que é esperado de nós enquanto sistema, não chega criar uma lei bonita no papel», lamenta. «Percebo que os professores, que já têm de dar aulas, corrigir testes, fazer relatórios, etc., não queiram mais um relatório em cima, não queiram mais uma preparação em cima, se calhar, não fazem mais por falta de tempo.»
Para além da carga horária e dos objetivos curriculares, a lei de 2009 define também os conteúdos adequados a cada nível de ensino. Mas, para Paulo Pelixo, sem investimento na formação dos profissionais, não é possível ter uma educação sexual que responda ao propósito. «Se não tiver preparado para os abordar, se não conhecer as melhores estratégias de abordar, posso cair naquele papel de limitar-me a dar informação. (…) obviamente que esta é uma componente muito importante da educação sexual, mas é necessário também trabalhar atitudes e competências.»
E os auxiliares de ação educativa? Sara Nasi alerta que a escola não se faz apenas de docentes e que, da sua experiência, aqueles «eram as pessoas que, efetivamente, melhor se posicionavam para dar apoio sobre estas temáticas aos estudantes.» Afinal, são estes profissionais que estão a gerir os recreios – um «espaço de civismo e de cidadania» –, acrescenta a colega Maria Joana Almeida, realçando um «papel pedagógico» importante, que pode contribuir para tornar aqueles espaços mais inclusivos.
– Maria Joana Almeida, psicóloga e sexóloga
Sara e Maria Joana são as responsáveis pelo projeto SexTalk, que leva até à Escola Fernando Lopes Graça, em Cascais, sessões educação sexual para as turmas do 3º ciclo ao 12º ano. «Uma intervenção bombeiro», é como olham para esta iniciativa, que partiu de um orçamento participativo jovem daquele concelho.
A discussão sobre quem deve garantir educação sexual nos equipamentos escolares é uma das que mais divide opiniões. De acordo com Rui Pires, membro do Conselho Executivo da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), a organização considera que, para além de existir uma aula específica, o tema deveria ser abordado «por um profissional de sexologia, dado que há situações onde [estes técnicos] conseguem chegar às crianças e aos jovens de uma outra forma». «Têm outra maneira de estar», afiança, mais preparada, por exemplo, para quando as crianças fazem perguntas «mais “descaradas”».
Também Rita Paulos, presidente da Casa Qui – uma associação de solidariedade social, especializada nas questões da orientação sexual e da identidade ou expressão de género –, defende que é preciso haver trabalho de fundo, feito por «alguém que é exclusivamente responsável e está formado ou capacitado» para tal, nomeadamente, professores especializados: «Acho que se justifica haver um docente ou uma docente. Não vejo porque é que temos de pegar em alguém que dá outras áreas e, às três pancadas, ser preparada para isto.» A também fundadora da rede ex aequo coloca mesmo a hipótese de haver formação superior para docência nesta área, o que, na sua opinião, permitiria aumentar a qualidade do trabalho feito.
Já Maria Joana Almeida acredita que partilhar a responsabilidade com entidades externas, num modelo misto, pode ser «o mais lógico e eficaz» do ponto de vista das aprendizagens, mas reforça haver um trabalho que tem de ser feito pelas escolas, porque «os momentos mais importantes» têm de ser geridos internamente. Não se aprende educação sexual apenas na sala de aula, atenta: «Se chamar paneleiro e fufa ainda é o principal insulto das nossas escolas – que é –, não somos nós que vamos mudar mentalidades a passar uma ou duas horas com os alunos. Cada vez que alguém é insultado de paneleiro e fufa, a escola tem de fazer alguma coisa. Isto é educação sexual. E todos os professores, auxiliares, colegas, pais e mães que olham para o lado também estão a fazer educação sexual, estão a dizer que isto é permitido, que não faz mal.»
– Alice Frade, antropóloga
Sobre esta questão, Alice Frade não tem dúvidas: tem de ser responsabilidade do estabelecimento de ensino e do ministério. «Não pode ser natural que estejamos sistematicamente a chamar convidados para ir à escola dar as aulas de educação sexual, porque isso desresponsabiliza a própria escola.» Para a antropóloga, é preciso encarar que esta é uma matéria objetiva e científica, que faz parte do currículo escolar e que, tal como acontece com outras disciplinas, deve ser avaliada para auferir a aquisição de conhecimentos e o real impacto na vida dos jovens.
Carmo Gê Pereira
Sexóloga
A visão da APF vai no mesmo sentido. «Se os professores estão na escola, se existe uma disciplina que se chama Cidadania e Desenvolvimento, onde supostamente serão ministrados os conteúdos de educação sexual, então vamos preparar estes professores, porque eles já lá estão.» Não obstante, Paulo Pelixo pondera que pode existir uma «articulação muito interessante entre a escola e outras estruturas da comunidade», na perspetiva de complementar aquilo que é feito através de uma intervenção específica.
A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, , implementada a partir do ano letivo de 2017/2018, define ONGs, associações juvenis, autarquias locais, centros de investigação, entre outras entidades, como possíveis parceiras. No entanto, a pandemia veio revelar a fragilidade de um modelo que delega as horas de educação sexual a profissionais externos às escolas. «Há praticamente dois anos que estamos inativos», afirma Ana Geraldes, uma das enfermeiras que garante a saúde escolar ao nível de todo o concelho da Covilhã.
Para a investigadora Inês Brandão, é também importante que estas matérias sejam dadas por «uma pessoa mais próxima da idade dos miúdos», ao invés de alguém, mais velho, «que replica o modelo de autoridade familiar.» Nesse sentido, o Centro de Aconselhamento e Orientação de Jovens de Lisboa desenhou o Projecto Nacional de Educação pelos Pares. André Pedroso Rocha teve aulas, no âmbito dessa iniciativa e, mais tarde, tornou-se também ele formador, tendo dado sessões a algumas turmas numa escola em Benfica: «Éramos quase colegas deles, um pouco mais velhos, então eles sentiam-se muito mais à vontade para fazer certas perguntas (…).» Sentados em círculo, ali, «todos tinham voz».
Este é, na opinião do diretor técnico da APF, um ponto fulcral. «Podemos ter muito interesse na área, [mas], se a forma como isso é explorado não tem nada a ver connosco, não motiva a discussão, não motiva a flexibilidade de pensamento, então, se calhar, vamos encarar isso como uma qualquer outra disciplina», avalia.
– Catarina Ferreira, mãe, formadora, doula e investigadora na área da saúde integral feminina
Os contracetivos, a gravidez precoce ou as infeções sexualmente transmissíveis continuam a ser dos temas mais vulgarmente tratados com os alunos, o que leva Catarina Ferreira, formadora, doula e investigadora na área da saúde integral feminina, a dizer que «a educação sexual nas escolas é vista apenas como uma questão de saúde pública» e não «como parte do indivíduo», como «uma expressão da individualidade de cada um».
Falámos com vários jovens do ensino secundário e 3.º ciclo, que partilharam que as pontuais abordagens que tiveram à educação sexual, durante o seu percurso escolar, focaram-se sobretudo neste tipo de conteúdos biomédicos. Por esse motivo, recai frequentemente sobre os professores de ciências naturais e biologia a tarefa de lecionar estas temáticas. Mas pensar que estes docentes estão mais preparados para educar para a sexualidade pode ser uma falácia. «Nas universidades aprendemos muito de biologia, mas não temos nenhuma disciplina em concreto que nos explique, ou que nos ensine, a formação de educação sexual», admite André Ferreira. Este professor fez duas formações voluntárias sobre educação sexual e considera que há temas que necessitam de uma abordagem diferente da expositiva. Um jogo, uma análise, um debate ou uma representação de papéis são alguns exemplos que menciona. Contudo, garante que o normal, nas escolas por onde passou, é a «abordagem formal» e que, nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, «geralmente, quem não se sente à vontade» não escolhe as temáticas relacionadas com a sexualidade.
Paulo Pelixo reconhece o «progresso incrível» em áreas como a gravidez na adolescência e observa que, relativamente ao conhecimento dos jovens sobre os aspetos biomédicos, «estamos muito bem». No entanto, alerta que há «uma parte muito significativa» da educação sexual que não está a ser abordada, «quando colocamos questões como bullying homofóbico, quando percebemos que a grande maioria de jovens LGBTI nos refere que nunca, nas suas escolas, viu uma abordagem positiva ao tema, que vivem experiências de discriminação, preconceito e violência nas escolas; quando temos acesso aos dados sobre a violência no namoro e temos, exatamente, números que nos preocupam também». Por sua vez, a sexóloga Vânia Beliz enumera outra lacuna recorrente: «a ideia e o foco de uma sexualidade genital, que ainda é uma coisa muito constante, como se a sexualidade ou o sexo só passasse pelos órgãos genitais».
De acordo com Carmo Gê Pereira, o problema não é só privilegiar-se os temas relacionados com as questões biológicas, mas também o currículo destas disciplinas estarem desatualizados em algumas matérias: «Estamos a ensinar neste momento ficção de sexo. De género também, mas isso toca a outras disciplinas, como histórias, antropologias, etc. Mas, em termos científicos, não estamos atualizados e isto é muito complicado, quando se tiver uma disciplina de educação sexual que lhes fale que não é apenas o X e Y que estão encarregados da divisão sexual nos humanos, que há a descoberta de uma série de outras variações e que a componente sexual tem várias questões (…). Ora, isto tinha de estar na disciplina de ciências, porque, depois, ao mesmo tempo estão a ouvir o professor de ciência, ou a professora de ciências, que diz que há meninos e meninas e que acabou a história por aí.»
Para Manuela Ferreira, presidente da Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, a escola e o pré-escolar contribuem, muitas vezes, para a marginalização das pessoas LGBTI, «porque a sociedade ainda lhes dá uns sinais de que aquilo que estão a sentir está errado, ou aquilo que dizem está errado.» As formatações normativas começam desde cedo: «os bibinhos cor de rosa e os bibinhos azuis, a casinha para as meninas e os carrinhos, as bolas e as oficinas para os rapazes. Está tudo errado. Brincar não tem género, é brincar.»
A juntar ao desconforto e à pouca preparação, o envelhecimento da classe docente e a falta de trocas intergeracionais – apesar do trabalho diário com crianças e jovens – são, para Rita Paulos, dois dos motivos que justificam que estes tópicos sejam ainda evitados por muitos professores. «Estamos com pessoas de gerações mais antigas que não têm a mesma possibilidade, ou não tiveram a mesma possibilidade, de contacto com as pessoas LGBTI. (…) Quando não há estas trocas sociais, no fundo, estamos com um problema», entende.
Como voluntário da rede ex aequo há vários anos, Tomás Barão já deu dezenas de sessões de educação sexual e nota que a organização – uma associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e apoiantes com idades entre os 16 e os 30 anos em Portugal – contribui para preencher a lacuna existente relativamente às temáticas LGBTI em ambiente escolar. Em 2019, a rede, composta por jovens voluntários, deslocou-se a nove distritos e uma região autónoma. No entanto, a maioria das sessões – de educação não formal e entre pares – acontecem na zona da Grande Lisboa e do Porto. «Mais de quatro mil jovens, em 2019, fizemos 162 sessões e, se formos ver o universo escolar, isto é uma percentagem muito pequena. Menos de 1% dos jovens contactaram connosco. Espero que contactem com questões LGBTI de outra maneira», afirma.
Educar para a diversidade é, como diz Carmo Gê Pereira, possibilitar escolha: “Imagina, desde que és uma criança pequena, saberes que podes ser quem és e que isso não implica marginalização.» E isso não deve ser uma preocupação para os pais. «É importante fazermos as crianças perceber que não existem só pessoas como elas, também existem outras pessoas e que todos têm direito a ser felizes com as suas escolhas», diz Vânia Beliz. Isso é educar para a sexualidade com base nos Direitos Humanos, explica, porque «a partir do momento em que há coisas que prejudicam a vida ou o bem-estar de outra pessoa, já estamos a por um pé no não-cumprimento» desses direitos.
– Carmo Gê Pereira, sexóloga
Por muito que tenhamos avançado nesta matéria, quando falamos de sexualidade feminina e masculina, as questões continuam a colocar-se de forma diferente. E esta desigualdade de género é ainda hoje perpetuada em muitas salas de aula, como exemplifica Catarina Ferreira: «Mantém-se a questão do peso da contraceção nas raparigas, isto continua a ser reforçado pelo sistema».
Vânia Beliz relembra que «somos um país que viveu durante muito tempo num regime altamente repressivo, principalmente para as mulheres, e isso claro que nos deixou raízes que dificultam a nossa relação com a sexualidade.» Mudanças, considera que há algumas e que são positivas, mas «ainda são muito insuficientes para fazer face à falta de conhecimento e desinformação.» Empoderar as mulheres nesta matéria torna-se, por isso, essencial.
Para «desmontar» a relação hierárquica e de poder entre homens e mulheres e para reivindicar o direito das raparigas de viverem a sua sexualidade de forma livre, segura, com prazer e sem quaisquer condicionalismos, surgiu a educação sexual feminista, uma abordagem fundada na igualdade, respeito, prazer mútuos e numa sexualidade livre de coerção, como expõe Maria João Faustino, representante da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM).
– Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga
Tal como a sexualidade, a educação sexual é, ou deveria ser, um processo contínuo e que, para muitos, deveria começar logo no pré-escolar. «Há muitos jovens a achar normal a violência entre pares. Isto não pode ser normalizado. Mas não vais trabalhar violência doméstica, se não fores trabalhar lá atrás no pré-escolar, as representações do que é um menino e uma menina – e quando tens meninos de 4 anos a dizer que as meninas são pouco corajosas, que as meninas são mais fracas», esclarece Vânia Beliz, reforçando que é no pré-escolar e 1.º ciclo que se adquire um conjunto de aprendizagens que dão as bases para o futuro. Para a docente Ana Jorge, tem de haver uma «pré-preparação para a educação sexual», que é, no fundo, a pré-preparação para a educação.
Todas as quintas-feiras podes encontrar aqui um novo episódio do podcast.
Alice Frade é antropóloga e diretora da P&D Factor – Associação para a Cooperação sobre…
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Mário Cordeiro é médico, professor, romancista e poeta, especialmente dedicado aos temas da saúde e…
Dá continuidade à leitura da reportagem na Revista Gerador ouvindo aqui mais conteúdo.
Margarida Gaspar de Matos (psicóloga), sobre a lei 60/2009 e a educação sexual em contexto escolar.
Mário Cordeiro (médico pediatra), sobre as aulas de educação sexual e Cidadania e Desenvolvimento.
Carmo Gê Pereira (sexóloga), sobre a importância da ética, face à ideologia
Paulo Pelixo (psicólogo e diretor-técnico da APF), sobre a necessidade de formação dos professores
Maria Joana Almeida (psicóloga), sobre condicionantes à aplicação da lei
Rita Paulos (presidente da Casa Qui), sobre a especialização de profissionais
Catarina Ferreira (mãe, antropóloga e doula), sobre a falta de educação emocional
Vânia Beliz (sexóloga), sobre o empoderamento das mulheres e da sua sexualidade
Maria João Faustino (representante da PpDM), sobre a educação sexual feminista
Ana Jorge (docente), sobre as bases da educação sexual, no pré-escolar e 1º ciclo.