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Esta é a primeira parte da grande reportagem “Repensar o sistema em que vivemos”, para garantir um futuro mais sustentável e justo, que tem seis partes e começa a ser publicada a partir de 17 de novembro no Gerador. “É muito difícil para mim ver tudo o que está a acontecer ao planeta, e eu sei que o que digo vai contra os desejos mais profundos que as pessoas têm, mas não vejo outra maneira. Ou controlamos estas vontades e preservamos o que resta de um planeta habitável, ou haverá um colapso caótico enorme. Não podemos simplesmente continuar como estamos e achar que vamos evitar as consequências do nosso comportamento” – entrevista exclusiva com Peter Kalmus, cientista climático da NASA.

 

 

Um ponto de situação: 2023, o início da “era da ebulição global”

 

O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, conhecido como IPCC, divulgou a 20 de março um relatório que António Guterres, secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), descreveu como “um guia de sobrevivência para a humanidade”. Este relatório síntese do Sexto Ciclo de Avaliação, formado por vários grupos de cientistas de diversos países que trabalharam sob a égide da ONU e avaliaram ao longo dos últimos anos as alterações no clima do planeta, resume os resultados de seis outros publicados entre 2018 e 2022. Cada grupo de trabalho contribuiu com um relatório diferente (com os subtítulos A Base da Ciência Física, Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade e Mitigação das Alterações Climáticas), tendo sido desenvolvidos ainda três relatórios especiais (Aquecimento Global de 1,5°C, Alterações Climáticas e o Solo e O Oceano e a Criosfera num Clima em Mudança).

O documento desenvolve extensivamente as consequências das alterações climáticas desencadeadas pelo ser humano e as medidas necessárias para limitar o aquecimento global a 1,5ºC (graus Celsius) acima dos valores pré-industriais, salientando que tal ainda é possível, mas cada vez mais improvável, e que a humanidade deve lutar por uma meta o mais próxima possível desse valor. Ainda assim, já no final do ano passado, relatórios da UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas) e do UNEP (Programa das Nações Unidas para o Ambiente) apontavam para uma possível subida global da temperatura de 2,5ºC até 2100, com estimativas no intervalo de 2,1 a 2,9.

Um ano depois, o Emissions Gap Report do UNEP de 20 de novembro (a 14.ª edição deste relatório de avaliação anual) tem logo como subtítulo Broken Record – Temperatures hit new highs, yet world fails to cut emissions (again). Estes relatórios estão de facto a tornar-se num ‘disco riscado’, verificando repetidamente que as temperaturas continuam a aumentar e que os cortes de emissões continuam a não ser suficientes. Apesar de algum progresso ter sido conseguido desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015, mesmo que as nações cumpram as contribuições incondionais, o aquecimento global só será limitado a 2,9ºC, descendo esse número para 2,5 na eventualidade de os países implementarem também as contribuições condicionais.

Com o fim do ano a aproximar-se, já se tornou bastante claro que 2023 está a ser um ano preocupantemente atípico. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o programa Copernicus Climate Change Service (C3S) da União Europeia estimam que julho tenha sido o mês mais quente de que há registo. Estes dados foram imediatamente acompanhados por declarações de António Guterres, que os classificou como “um desastre para todo o planeta”. “E para os cientistas, é inequívoco – os seres humanos são os culpados”, acrescenta o secretário-geral da ONU: “Tudo isto é inteiramente consistente com as previsões e os repetidos avisos. A única surpresa é a velocidade da mudança. As alterações climáticas estão aqui. É assustador. E é apenas o começo. A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou.”

O último boletim mensal do C3S prevê que 2023 seja o ano mais quente desde que há registo. A cientista Samantha Burgess, vice-diretora do serviço de monitorização, diz que estamos “atualmente 1,43ºC acima da média pré-industrial”, frisando que a “urgência de uma ação climática ambiciosa na COP28 nunca foi tão grande”. A 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, que vai decorrer do dia 30 deste mês até 12 de dezembro no Dubai, é o espaço de negociação anual para o qual a comunidade científica olha sempre sem grandes expetativas e da qual sai, ainda assim, desiludida ano após ano.

Ainda, na sequência do artigo “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency”, publicado em janeiro de 2020 por cientistas membros da Alliance of World Scientists e que já conta com mais de 15.000 assinaturas, uma equipa internacional de 12 cientistas publicou a 24 de outubro um novo relatório em jeito de atualização. “A vida no planeta Terra está sob cerco”, escrevem logo na abertura. Salientam que a comunidade científica anda a alertar há décadas e que, “infelizmente, o tempo acabou. Estamos a assistir à manifestação dessas previsões à medida que uma sucessão alarmante e sem precedentes de recordes climáticos são ultrapassados, provocando o desenrolar de cenas de sofrimento profundamente angustiantes. Estamos a entrar num domínio desconhecido no que diz respeito à crise climática, uma situação que ninguém jamais testemunhou em primeira mão na história da humanidade”.

 

 

O perigo real

 

 

Peter Kalmus é um dos cientistas climáticos mais conhecidos da atualidade. Há uns anos, trocou a área de investigação onde estava a construir a carreira (a das ondas gravitacionais) pelo estudo de projeção dos efeitos das alterações climáticas na biodiversidade. Trabalha no Laboratório de Propulsão a Jato da NASA e divide-se entre a investigação, o ativismo e a comunicação de ciência. Tornou-se vegan, deixou de andar de avião, escreveu o livro Being the Change: Live Well and Spark a Climate Revolution, fundou o movimento NoFlyClimateSci, cofundou a plataforma Earth Hero, fundou o projeto Climate Ad e é frequentemente convidado a escrever artigos para os jornais mais influentes do mundo. Nas redes sociais é conhecido como @ClimateHuman, partilhando com centenas de milhares de pessoas os avanços e recuos da luta contra a crise climática, tendo-se tornado no cientista climático mais seguido no Twitter (ou X). Ativista pelo clima há mais de 15 anos, está envolvido com a Scientist Rebellion, a Extinction Rebellion, a Greve Climática Estudantil (da qual os seus filhos também fazem parte) e diversos outros movimentos, chegando a ser detido em abril do ano passado numa ação de desobediência civil não violenta.

Quando iniciamos a conversa, o cientista faz questão de lembrar que fala unicamente em nome próprio e não em representação de qualquer entidade. Comenta que é difícil dizer exatamente como a vida poderia ser num futuro em que a humanidade conseguiu evitar o colapso ecológico, já que é tudo demasiado relativo, que se trata de “uma questão gigantesca” e que implica “um tipo de pensamento tão vasto e abrangente”. Ainda assim, diz que já sabemos há muito por onde começar, que temos à nossa disposição todo o conhecimento e tecnologia para o fazer, e que “temos inevitavelmente de reorganizar a sociedade por completo”.

O investigador explica ao Gerador que “nós, seres humanos, somos uma espécie como qualquer outra espécie, e precisamos de condições específicas para sobreviver como qualquer outra espécie. Podemos entrar em sobrecarga como qualquer outra espécie – se existirem demasiados de nós ou se não houver comida suficiente, por exemplo. O que eu vejo, da minha perspetiva enquanto cientista climático, é uma pressão crescente nos sistemas terrestres que atendem às nossas necessidades – nos próprios sistemas que nos proporcionam comida, água, ar respirável, abrigo e clima habitável. E, tal como todos os seres vivos têm requisitos de temperatura, nós também precisamos que as temperaturas se mantenham dentro de um intervalo bastante estreito, porque se subirem demasiado os nossos órgãos começam a falhar, as nossas proteínas começam a desnaturar, e nós morremos”. Assim, de forma a evitar “o perigo claro e iminente de colapso ecológico provocado pelo aquecimento global”, precisamos de “eliminar toda a pressão que estamos a pôr no mundo natural”.

Antes de avançar, Peter Kalmus considera importante salientar que tudo o que vai dizer apenas faz sentido se entendermos “que estamos a viver uma emergência e que temos de responder a essa emergência”. Porque “se as pessoas não entenderem isso, se acharem que não há qualquer problema com a maneira como estamos a fazer as coisas”, então nada do que diz irá fazer sentido.

A evolução tecnológica das últimas décadas permitiu que conseguíssemos atualmente medir “centenas de milhares de aspetos no sistema terrestre”, aspetos esses que são usados tanto para avaliar a evolução dos ecossistemas como para perceber o impacto das alterações climáticas nos mesmos. A ciência é clara: “todos esses aspetos apontam numa única direção, e o facto de todas estas linhas, estas tendências, estas métricas que podemos medir ao longo do tempo, se estarem a inclinar, e a intensificar cada vez mais a cada dia e a cada ano, é incrivelmente preocupante”.

O cientista da NASA aponta o aumento do aquecimento dos oceanos, o aumento da temperatura na superfície, o aumento da precipitação, o aumento da seca e o aumento do nível do mar como exemplos – há alterações em todo o lado. E “está tudo a ficar tão desestabilizado que a primavera está a chegar mais cedo, o inverno está a chegar mais tarde, há recordes de calor a serem batidos todos os anos, há animais e plantas a migrar para próximo dos polos ou a subir montanhas”. Diz que sempre que olha para os gráficos se assusta com quão real é o perigo: “nada disto deveria estar a acontecer num planeta saudável. Se não houvesse este desequilíbrio energético enorme, todas essas tendências estariam estáveis e as linhas não teriam alterações tão drásticas”.

Com o passar do tempo, “todas estas pressões vão fazer com que coisas comecem a entrar em rutura”. Os efeitos já começam a ser sentidos um pouco por toda a parte, quer se trate de “coisas pequenas como os aeroportos ficarem parados” por as pistas estarem tão quentes que os aviões não conseguem descolar, ou coisas mais graves como todos os fenómenos climáticos extremos que estão a afetar populações pelo mundo fora, com “ondas de calor a matarem muito mais pessoas do que antes” ou “inundações catastróficas em zonas que não costumavam inundar”. E, de certa forma, as consequências ainda são relativamente pequenas, diz Peter Kalmus, porque daqui para a frente “vai ficar tudo exponencialmente pior”. Mesmo com todos os dados que a ciência consegue recolher e analisar de forma a prever as tendências futuras, “muita coisa vai acontecer de forma bastante imprevisível, o que torna tudo ainda mais catastrófico, no sentido em que muita mais gente vai sofrer e muita mais gente vai morrer”.

Comenta que há vários “sentimentos de conforto” que não passam de ilusões. Um deles é a ideia de que as consequências mais graves das alterações climáticas apenas vão ser sentidas num futuro muito longínquo. Outro é a crença de que, “se realmente quiséssemos, poderíamos resolver tudo e reverter as coisas para um estado saudável”. Mas não é assim que as coisas funcionam na natureza, e “muito menos em relação ao aquecimento global”. “Claro”, acrescenta, “pode-se sempre tentar adaptar, mas só se pode adaptar os sistemas até certo ponto antes que estes se tornem irrecuperáveis. Não é como quando temos lixo no jardim, que se limpa facilmente. Todas as coisas de que estamos a falar são irreversíveis”, quer seja a perda de florestas, como a Amazónica ou as da Sierra Nevada, as alterações nas correntes oceânicas, a perda dos calotes glaciares ou o aumento das temperaturas. Nada disto recupera o equilíbrio “em nenhuma escala de tempo relevante para o ser humano, ou sequer para a civilização humana. Quão mais quente ficar, é quão quente vai ficar para o resto de nossas vidas, das vidas de nossos filhos, das vidas dos nossos netos e por diante”.

“Se continuarmos a priorizar o crescimento económico sobre todo o resto, isso significa queimar ainda mais combustíveis fósseis quando devíamos era parar por absoluto, e esse calor e os danos que provoca vão ser sentidos pelos séculos XXI, XXII e XXIII dentro”, aponta. Continuando a este ritmo, nessa altura já “grande parte do planeta se terá tornado efetivamente inabitável só pelo calor extremo”, para não falar de todas as outras alterações climatéricas. Isso seria “incrivelmente desestabilizador”, uma vez que “a nossa espécie evoluiu intimamente adaptada ao clima deste sistema terrestre ao longo de dezenas de milhares de anos”. Até porque o calor em excesso “alimenta muitas outras coisas”, que são “prejudiciais à agricultura, prejudiciais às infraestruturas, obrigam as pessoas a emigrar (de zonas onde não há água suficiente, por exemplo), pressionam os sistemas geopolíticos, podem levar a guerras” – no fundo, todo o tipo de desequilíbrios.

A par de todas estas consequências provocadas por todos os gases com efeito de estufa (GEE) com que sobrecarregamos o planeta, também há a pressão criada por extrairmos demasiado dos solos e dos oceanos. “Os ecossistemas são entidades profundamente complexas que funcionam como teias ou redes – costuma usar-se a analogia de uma torre de Jenga, quando se tira demasiados pedaços, aquilo cai tudo. E nós já enfraquecemos a níveis sem precedentes a estabilidade da biosfera.”

O passo seguinte, diz Peter Kalmus, é identificar as causas destas pressões. “Existem dois impulsionadores principais: a indústria de combustíveis fósseis e a indústria de pecuária. Então, cerca de 80% dos gases com efeito de estufa vêm do uso de combustíveis fósseis, e a maior parte do resto vem da pecuária, à volta de 15%.” Claro que existem “algumas outras coisas a contribuir, como o facto de sermos oito mil milhões de pessoas a viver neste planeta, muitas bem acima das capacidades a nível de consumo de recursos, ou a produção e utilização de materiais como cimento, ou o facto de haver desenvolvimento constante, com secções inteiras de florestas a serem derrubadas para construir novos centros comerciais ou campos de forragens para alimentar as vacas”.

 

Sistema alimentar

 

 

“Se fôssemos uma espécie racional”, diz sem qualquer divertimento na voz, “há algumas coisas bastante óbvias que deveríamos fazer”. “Poderíamos eliminar 15% dessa pressão na atmosfera, mais ou menos rapidamente, sem que ninguém morresse, apenas acabando com a pecuária”, principalmente a industrial. Isto contribuiria para retirar “muita da pressão na biosfera também, porque não precisaríamos de tanta terra para alimentar os oito mil milhões de pessoas que estão vivas atualmente. É tão ineficiente pegar na produtividade das plantas e processá-la através da pecuária, e depois alimentar as pessoas com esses animais – é preciso muito mais terra para fazer isso” (cerca de 100 vezes mais solo por quilocaloria). Desta forma, poderíamos “eliminar imediatamente uma grande fatia de emissão de gases com efeito de estufa e permitir que esse solo todo voltasse para a biosfera, de forma a começar a estabilizar esse complexo sistema interconectado que mantém tudo vivo neste planeta”. Poderia “haver margem para uma quantidade muito, muito pequena de criação animal, se pudesse ser feita sem combustíveis fósseis e de uma forma mais ecológica e humana, se bem que isso pareça um tanto absurdo e impossível”, comenta.

A criação intensiva de animais para consumo humano contribui para as alterações climáticas de diversas formas, sendo as mais imediatas a emissão de GEE, a desflorestação e a poluição dos lençóis e cursos de água. Mais de 70% da carne consumida mundialmente é produzida em criação intensiva – as chamadas factory farms (nos Estados Unidos o número sobe para 99%). E estima-se que os animais criados para consumo correspondam a 60% de todos os mamíferos na Terra, sendo que os seres humanos equivalem a 36% e apenas 4% são animais selvagens. Vários estudos demonstram que, se a humanidade adotasse uma alimentação à base de plantas, 75% da terra usada para produção alimentar poderia ser devolvida à natureza. Ainda no início de março foi publicado um estudo detalhado que conclui que apenas as emissões de GEE provenientes do sistema alimentar são suficientes para que o mundo ultrapasse a meta da limitação da subida global de temperatura a 1,5ºC. Se os alimentos com grandes emissões de metano não forem controlados e o nível atual se mantiver, o aquecimento resultante será de 0,7ºC, que se junta ao aquecimento de mais de 1ºC verificado atualmente e ao aquecimento provocado pelas emissões dos outros setores de atividade humana.

“A questão é, se acabar com a pecuária faz tanto sentido, porque é que não o fazemos?”, interroga-se Peter Kalmus. “E começamos a chegar à próxima camada disto tudo, que são os sistemas de poder que preservam o status quo da maneira fazemos as coisas atualmente. E isso é tudo tão complicado que acho que ninguém o compreende completamente. E, claro, há fortes interesses financeiros na indústria da pecuária, e essas pessoas não querem que nada disto aconteça, porque perderiam muito dinheiro.” Depois também há a questão dos trabalhadores, “porque muitas pessoas teriam de arranjar novos empregos”, ainda que “a maior parte dos empregos na indústria da pecuária sejam mal remunerados, brutais e às vezes até perigosos, e mudar de área seria provavelmente o melhor para as próprias pessoas também”. E, naturalmente, seria necessário “requalificar esses trabalhadores e criar programas com redes de segurança social que os protegessem” durante o período de transição.

 

“E ainda há uma outra camada: as pessoas simplesmente não querem mudar. Preferem que as coisas continuem como estão, e acho que em parte isso advém do facto de não reconhecerem o perigo em que estamos, e muito disso vem da polarização política.” O cientista acrescenta que, então, surge uma nova reflexão: “as pessoas querem comer carne ou querem estar vivas? Mas o problema é que, devido aos desequilíbrios de poder, essa não é a verdadeira questão. É mais algo como, as pessoas ricas e poderosas querem comer carne ou querem que outras pessoas estejam vivas? E, infelizmente, muitas dessas pessoas preferem que as outras pessoas morram; não o diriam abertamente, mas é essencialmente isso que pensam e é por isso que continuam a proteger os interesses da indústria pecuária e a não apoiar qualquer tipo de mudança”.

 

Combustíveis fósseis

 

 

O investigador da NASA defende que “temos de acabar com os combustíveis fósseis de vez. Não podemos queimar nem uma percentagem muito pequena, não no ponto a que chegamos. O dióxido de carbono que já emitimos está acumulado na atmosfera e vai permanecer lá por muito tempo, e os efeitos desse dióxido de carbono não vão desaparecer. Portanto, não precisamos de usar metade do que usamos atualmente; precisamos de eliminar completamente”.

Contudo, eliminar os combustíveis fósseis é muito mais complicado do que eliminar a pecuária intensiva: “o nosso sistema económico atual é literalmente alimentado a combustíveis fósseis.” Para se começar a diminuir a produção e utilização o mais rápido possível, “a sociedade teria provavelmente de consumir menos energia durante o período de transição, até sermos capazes de alimentar o sistema de energia mundial apenas com energias alternativas como a solar e a eólica”, logo, “isso desafiaria o paradigma económico atual, que exige crescimento de uma certa percentagem anual apenas para funcionar”. A “boa notícia” é que “as alternativas renováveis são atualmente muito mais baratas”.

Assinala que “uma das primeiras coisas que devíamos fazer era diminuir imenso (ou até eliminar) a aviação comercial – que é uma peça relativamente pequena do puzzle, representa cerca de 3% da pressão humana no aquecimento global, mas acho que funciona quase como um indicador de se aceitamos ou não que estamos numa emergência, porque a aviação comercial é um luxo. Só que ainda a estamos a expandir mais, logo, se ainda estamos a expandir algo que é um luxo, e se isso está a contribuir para a crise, então não estamos realmente a aceitar que seja uma crise”. Se a sociedade entendesse a magnitude do problema, Peter Kalmus acredita que “começaríamos a ver coisas como leis que proíbem os programas de passageiros frequentes, e taxas específicas para passageiros frequentes, de forma que quantas mais milhas a pessoa voar durante um determinado ano, mais impostos tem de pagar por cada bilhete”. Mas, por agora, esse tipo de propostas seria “extremamente impopular nos países ricos”, porque, “uma vez mais, ainda estamos nessa fase egoísta em que queremos as coisas, e as queremos independentemente das consequências a longo prazo para o planeta”.

Outra peça “incrivelmente importante é o excesso de emissões dos ultra-ricos”. Clarifica que foram feitos estudos que demonstram que “os multimilionários usam infinitamente mais combustíveis fósseis, e emitem infinitamente mais GEE, e provocam infinitamente mais aquecimento global do que um qualquer ser humano ‘comum’”. Para o cientista, este é “um grande indicador dos motivos pelos quais estamos na situação em que estamos sequer, que é o facto de haver uma pequena classe de ultra-ricos que controlam o poder e que beneficiam massivamente deste sistema. Andam por aí a voar nos seus vários jatos particulares, a navegar nos seus iates enormes e a ter quantas casas lhes apetece, e tudo isso implica muito mais energia do que qualquer pessoa precisa – e do que qualquer pessoa deveria gastar, e a isto chama-se injustiça climática – e, portanto, seria necessário criar leis para acabar com tudo isso”, ainda que tal seja “muito difícil de fazer”, já que são essas “as pessoas que fazem as leis”.

Há ainda um outro grande obstáculo, “que são as mentiras da indústria dos combustíveis fósseis”. Peter Kalmus defende que “precisamos de nos opor a essas mentiras, que fizeram com que o público subestime o perigo do que fizeram”. Em janeiro, foi publicado um estudo na revista Science que comprova, uma vez mais, o grau destas mentiras: cientistas da multinacional de petróleo e gás Exxon Mobil já tinham dados nos anos 70 que previam a evolução das emissões de carbono e das temperaturas globais para as décadas seguintes (que se revelaram extremamente precisas). A empresa, no entanto, decidiu sempre ignorar esses dados e até promover campanhas publicitárias que anunciavam o oposto, opondo-se sempre os esforços da comunidade científica. “Permitimos que a indústria dos combustíveis fósseis ande a espalhar desinformação e mentiras descaradas há décadas”, continua o investigador americano, “a encobrir os danos irreversíveis que estão a causar ao nosso planeta e a fazer lobby com decisores políticos de forma a influenciarem as políticas e financiarem as políticas (o que é praticamente uma forma de suborno), e continuam a lucrar às custas do futuro”.

 

Transição justa

 

 

“Para fazermos a transição energética – e muitas pessoas diriam que isto é ideológico, mas não é – precisaríamos de redes de segurança social para proteger as pessoas das classes baixa e média.” Peter Kalmus explica que seria preciso apoiar os trabalhadores que ficariam impedidos de sustentar as famílias se o preço dos combustíveis para os automóveis disparasse, já que esse é o tipo de “combustível fóssil mais fácil de se pensar numa redução de abastecimento”. Defende que, sim, é urgente reduzir essa oferta, mas que é preciso fazê-lo “de forma que os preços permaneçam estáveis para as classes trabalhadoras”, com “regulação de preços” e “programas de disponibilidade de energia financiada para quem de outra forma não a possa pagar”.

“Caso contrário”, acrescenta, se a redução do fornecimento de combustíveis for feita sem qualquer mecanismo de segurança, “os executivos e os acionistas, a mesma classe capitalista rica que toma as decisões, controla o abastecimento e utiliza uma quantidade enorme de energia excedente, lucraria ainda mais com a subida dos preços, à custa das classes trabalhadoras e até da própria transição, projetada para resgatar o planeta precisamente dos danos que essa classe está a causar”. O cientista clarifica que é por esta razão que diz que o que defende “não é ideológico”; se a transição fosse feita sem ter tudo isto em conta, “simplesmente nunca funcionaria: os eleitores não aceitariam nada disto, porque seriam eles os únicos a sofrer, e rapidamente retirariam do poder todos os políticos que promulgassem esse tipo de medidas”, referindo o movimento dos coletes amarelos franceses como exemplo do que aconteceria.

“Os 1% mais ricos atualmente dominam mais do que alguma vez na história, porque ao longo das últimas quatro ou cinco décadas acumularam cada vez mais riqueza e poder às custas de todos os outros”, diz, destacando que “essa é uma prova de que vivemos numa sociedade e num sistema económico desequilibrados, porque num paradigma saudável todas estas tendências económicas estariam estáveis”. “Sim, eu considero injusto que um grupo restrito de pessoas tenha mais do que todos os outros mil milhões de pessoas juntas”, admite, “mas estou a falar muito mais de um ponto de vista prático”. Comenta ainda a crise energética que se prolonga desde o ano passado, apontando que a maior parte dos políticos estão “apenas a lutar para expandir o fornecimento de combustíveis, para os preços baixarem e poderem ser reeleitos, enquanto os magnatas do petróleo só ficam mais poderosos”.

 

Estado de emergência climática

 

 

“As pessoas ainda não compreenderam a magnitude do perigo (tanto consequência do aquecimento global como da degradação da biodiversidade), nem que não precisamos de continuar a fazer as coisas da maneira que temos vindo a fazer ao longo das últimas décadas”, diz Peter Kalmus. “Nós podemos mudar. E aí entra a componente educacional; precisamos desesperadamente que os media alertem as pessoas de que o mundo está em perigo, qual é esse perigo, as razões de estarmos em perigo e como poderíamos fazer as coisas de outra maneira para proteger a vida e garantir o mínimo de morte e sofrimento possível.” Aponta que “a sociedade precisa de entrar em estado de emergência climática”, porque apenas o eleitorado pode “forçar governos e decisores políticos a promulgar leis para reduzir a pecuária intensiva e os combustíveis fósseis”. Isto precisa de ser feito “rapidamente”, mas “garantindo que as classes trabalhadoras ainda tenham a energia e a comida que precisam para viver, o que significa que tudo isso teria necessariamente de ser financiado com impostos às corporações e aos indivíduos mais ricos”.

Para o cientista, é importante ter em conta que, neste momento, “ainda parece tudo relativamente normal para a maioria das pessoas”. “Não é como se um exército invadisse o país, estamos a falar de escalas de tempo muito mais lentas, o que passa ao lado da nossa capacidade de sentir perigo de forma eficaz. E depois está tudo meio escondido por publicidade, e todas estas coisas que estão a destruir o planeta parecem tão normais, faz tudo parte do nosso dia a dia, então há camadas profundas de normalização que ajudam a criar a ilusão de que tudo está bem. Mas não está.” Os gases com efeito de estufa que emitimos para a atmosfera fazem com que “mais energia entre do que saia do planeta porque retêm parte dessa energia que sai”, mas “o planeta ajusta-se muito rápido”, só que “esse ajustamento envolve calor a entrar nas camadas profundas do oceano, envolve o derretimento dos calotes de gelo e por aí fora”. Do ponto de vista humano, “nada disto parece real o suficiente – nós só vivemos algumas décadas e estes processos demoram a nossa vida inteira”. “É muito estranho existir numa altura em que tudo isto está a acontecer”, desabafa.

Muito estranho também, no seu entender, é a comunidade científica não estar em peso “a soar o alarme”, nem a falar ativamente “sobre quão grave tudo isto é”, mas tem noção de que é muito difícil continuar a fazê-lo quando “já tentamos há décadas e ninguém ouve”. “É muito difícil tentar repetidamente convencer as pessoas de que algo está errado quando ninguém acredita e mais ninguém diz a mesma coisa. Se alguém está numa sala com mais cem pessoas e vê algo perigoso a acontecer, mas mais ninguém reconhece o perigo e todos continuam a agir como se tudo estivesse normal, há imensa pressão social para a pessoa assumir que não está a entender alguma coisa e que está tudo bem. E então para de tentar avisar, até porque isso faz com que se destaque socialmente por fugir às normas sociais, e nós temos tendência a não gostar desse tipo de atenção negativa.”

Na psicologia, “isto chama-se bystander effect” (‘efeito do espectador’ ou ‘difusão de responsabilidade’), e acredita que “é algo que também está em jogo aqui”. “E vão ser preciso muitas pessoas corajosas para contrariar isso – e as pessoas que estão a fazer esse trabalho agora são os ativistas climáticos, e em muitos casos estão a ser punidos pela sociedade.” Estes ativistas “estão um pouco por todo o lado”, e “às vezes fazem coisas que incomodam” o funcionamento normal das cidades, “mas são apenas pessoas que compreendem a realidade” e que “não sabem como acordar as outras pessoas, então tentam usar todo o tipo de metodologias” para ver se alguma coisa funciona. “Também vão aprendendo com o processo, porque não existe um manual de boas práticas para nada disto, nunca ninguém imaginou estar nesta situação absurda”.

Ao terminar a conversa, Peter Kalmus agradece “a oportunidade de responder às perguntas que realmente importam, ainda que seja um pouco assustador fazê-lo, mas isto é tudo tão importante”, e deixa um desabafo. “As pessoas ficam muito irritadas quando se fala de tudo o que eu acabei de dizer, e eu odeio ser o mensageiro de más notícias, mas não tenho outra opção. É muito difícil para mim ver tudo o que está a acontecer ao planeta, e eu sei que o que digo vai contra os desejos mais profundos que as pessoas têm, mas não vejo outra maneira. Ou controlamos estas vontades e preservamos o que resta de um planeta habitável, ou haverá um colapso caótico enorme. Não podemos simplesmente continuar como estamos e achar que vamos evitar as consequências do nosso comportamento. Outra maneira de dizer isto é que no planeta Terra nada acontece sem efeito. Ou vivemos dentro dos nossos meios energéticos e biosféricos, ou então sofremos as consequências como qualquer outra espécie.”

 

As alterações climáticas são consideradas a maior crise que a humanidade alguma vez enfrentou. Mesmo com consciência das consequências, a quantidade de gases com efeito de estufa que emitimos para a atmosfera continua a aumentar anualmente; segundo a monitorização da Climate Watch, temos vindo a aproximar-nos cada vez mais das 50 mil milhões de toneladas anuais. Cientistas e ativistas defendem que é necessário repensar, adaptar e restruturar o sistema em que vivemos, e que fazê-lo é urgente, uma vez que o prazo de validade do nosso modo de vida está a esgotar-se. Mas como se repensa o sistema? Por onde se pode começar, quais os caminhos a seguir e quais as possíveis alternativas e soluções? Como poderia ser a vida nas cidades sustentáveis do futuro? E quais os maiores obstáculos para lá se chegar?

 

Esta grande reportagem tem seis partes que serão publicadas ao longo de seis semanas nas datas indicadas em baixo.

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As alterações climáticas são consideradas a maior crise que a humanidade alguma vez enfrentou. Mesmo com consciência das consequências, a quantidade de gases com efeito de estufa que emitimos para a atmosfera continua a aumentar anualmente; segundo a monitorização da Climate Watch, temos vindo a aproximar-nos cada vez mais das 50 mil milhões de toneladas anuais. Cientistas e ativistas defendem que é necessário repensar, adaptar e restruturar o sistema em que vivemos, e que fazê-lo é urgente, uma vez que o prazo de validade do nosso modo de vida está a esgotar-se. Mas como se repensa o sistema? Por onde se pode começar, quais os caminhos a seguir e quais as possíveis alternativas e soluções? Como poderia ser a vida nas cidades sustentáveis do futuro? E quais os maiores obstáculos para lá se chegar?

 

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