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Ao longo dos últimos anos, o vocabulário científico relativo às alterações climáticas tem vindo a integrar cada vez mais o léxico comum. Desenvolvimento sustentável, justiça climática, emissões, gases com efeito de estufa, mitigação, adaptação, resiliência, transição, neutralidade carbónica, emissões líquidas zero, sumidouro de carbono, impactos, risco climático; os exemplos são muitos, e alguns conceitos são relativamente fáceis de compreender, mas outros nem tanto. Os tipping points – em português referidos como pontos de inflexão, pontos de viragem ou pontos de não-retorno – são tão complexos e imprevisíveis que definitivamente pertencem à segunda categoria. O Gerador conversou com Filipe Duarte Santos para esclarecer o que são estes fenómenos.

Esta é a quinta parte da grande reportagem “Repensar o sistema em que vivemos” para garantir um futuro mais sustentável e justo, que tem seis partes e começou a ser publicada a partir de 17 de novembro no Gerador.

 

Um ponto de situação: 2023, o início da “era da ebulição global”

 

O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, conhecido como IPCC, divulgou a 20 de março um relatório que António Guterres, secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), descreveu como “um guia de sobrevivência para a humanidade”. Este relatório síntese do Sexto Ciclo de Avaliação, formado por vários grupos de cientistas de diversos países que trabalharam sob a égide da ONU e avaliaram ao longo dos últimos anos as alterações no clima do planeta, resume os resultados de seis outros publicados entre 2018 e 2022. Cada grupo de trabalho contribuiu com um relatório diferente (com os subtítulos A Base da Ciência Física, Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade e Mitigação das Alterações Climáticas), tendo sido desenvolvidos ainda três relatórios especiais (Aquecimento Global de 1,5°C, Alterações Climáticas e o Solo e O Oceano e a Criosfera num Clima em Mudança).

O documento desenvolve extensivamente as consequências das alterações climáticas desencadeadas pelo ser humano e as medidas necessárias para limitar o aquecimento global a 1,5ºC (graus Celsius) acima dos valores pré-industriais, salientando que tal ainda é possível, mas cada vez mais improvável, e que a humanidade deve lutar por uma meta o mais próxima possível desse valor. Ainda assim, já no final do ano passado, relatórios da UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas) e do UNEP (Programa das Nações Unidas para o Ambiente) apontavam para uma possível subida global da temperatura de 2,5ºC até 2100, com estimativas no intervalo de 2,1 a 2,9.

Um ano depois, o Emissions Gap Report do UNEP de 20 de novembro (a 14.ª edição deste relatório de avaliação anual) tem logo como subtítulo Broken Record – Temperatures hit new highs, yet world fails to cut emissions (again). Estes relatórios estão de facto a tornar-se num ‘disco riscado’, verificando repetidamente que as temperaturas continuam a aumentar e que os cortes de emissões continuam a não ser suficientes. Apesar de algum progresso ter sido conseguido desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015, mesmo que as nações cumpram as contribuições incondionais, o aquecimento global só será limitado a 2,9ºC, descendo esse número para 2,5 na eventualidade de os países implementarem também as contribuições condicionais.

Com o fim do ano a aproximar-se, já se tornou bastante claro que 2023 está a ser um ano preocupantemente atípico. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o programa Copernicus Climate Change Service (C3S) da União Europeia estimam que julho tenha sido o mês mais quente de que há registo. Estes dados foram imediatamente acompanhados por declarações de António Guterres, que os classificou como “um desastre para todo o planeta”. “E para os cientistas, é inequívoco – os seres humanos são os culpados”, acrescenta o secretário-geral da ONU: “Tudo isto é inteiramente consistente com as previsões e os repetidos avisos. A única surpresa é a velocidade da mudança. As alterações climáticas estão aqui. É assustador. E é apenas o começo. A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou.”

O último boletim mensal do C3S prevê que 2023 seja o ano mais quente desde que há registo. A cientista Samantha Burgess, vice-diretora do serviço de monitorização, diz que estamos “atualmente 1,43ºC acima da média pré-industrial”, frisando que a “urgência de uma ação climática ambiciosa na COP28 nunca foi tão grande”. A 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, que vai decorrer do dia 30 deste mês até 12 de dezembro no Dubai, é o espaço de negociação anual para o qual a comunidade científica olha sempre sem grandes expetativas e da qual sai, ainda assim, desiludida ano após ano.

Ainda, na sequência do artigo “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency”, publicado em janeiro de 2020 por cientistas membros da Alliance of World Scientists e que já conta com mais de 15.000 assinaturas, uma equipa internacional de 12 cientistas publicou a 24 de outubro um novo relatório em jeito de atualização. “A vida no planeta Terra está sob cerco”, escrevem logo na abertura. Salientam que a comunidade científica anda a alertar há décadas e que, “infelizmente, o tempo acabou. Estamos a assistir à manifestação dessas previsões à medida que uma sucessão alarmante e sem precedentes de recordes climáticos são ultrapassados, provocando o desenrolar de cenas de sofrimento profundamente angustiantes. Estamos a entrar num domínio desconhecido no que diz respeito à crise climática, uma situação que ninguém jamais testemunhou em primeira mão na história da humanidade”.

 

No relatório especial Aquecimento Global de 1,5°C, divulgado em 2018, o Sexto Ciclo de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da Organização das Nações Unidas) define pontos de viragem como “limites críticos num sistema que, quando excedidos, podem levar a uma mudança significativa no estado do sistema, muitas vezes com o entendimento de que a mudança é irreversível”. Desta forma, “uma compreensão das sensibilidades dos pontos de viragem no sistema climático físico, bem como nos ecossistemas e sistemas humanos, é essencial para entender os riscos associados a diferentes graus de aquecimento global”. O Dicionário do Clima criado pelo UNDP (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) refere que a comunidade científica “já identificou áreas de preocupação, como o desaparecimento de florestas e corais, o derretimento do permafrost e dos glaciares e o aquecimento e acidificação do oceano profundo”, embora seja “necessária mais investigação” no assunto.

Quais são as implicações disto? Primeiro, é preciso ter em conta que a relação entre dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e a temperatura sempre foi vista como algo diretamente proporcional, evoluindo um fator gradualmente (e lentamente) à medida que o outro se altera; um tipping point implica uma mudança abrupta nessa relação, fazendo disparar a quantidade de CO2, o que faz disparar a temperatura, o que, como se de uma bola de neve se tratasse, pode fazer disparar outros tipping points, e o ciclo vai-se repetindo – podendo, hipoteticamente e já numa situação extrema, fazer todo o sistema colapsar. A mudança pode ser pequena, afetando maioritariamente certos ecossistemas ou uma região específica da Terra, ou pode ser global, afetando o sistema terrestre como um todo. Outra ideia importante é que, mesmo que alguns destes pontos de viragem, ao serem desencadeados, até possam gerar efeitos que se prolonguem ao longo de séculos e, portanto, aparentem não ter efeitos catastróficos para a humanidade no imediato, os efeitos serão sentidos na mesma, mesmo que não na sua totalidade ainda (os modelos climáticos calculam as quantidades de carbono que seriam emitidas em diferentes fases de colapso de certos sistemas, por exemplo, prevendo colapsos parciais e colapsos totais), e serão irreversíveis em qualquer escala de tempo humana.

A ideia de que certos elementos do sistema climático possam constituir pontos de viragem já tem vindo a ser estudada há algumas décadas, em particular nos anos 2000, década em que o IPCC também começou a considerar a hipótese, com “descontinuidades em larga escala” a serem ponderadas num relatório de 2001 do Terceiro Ciclo de Avaliação, e o termo tipping pointa surgir em 2007 com o Quarto Ciclo de Avaliação. Em 2005, os cientistas climáticos do Polar Science Center R. W. Lindsay e J. Zhang publicaram um artigo com os resultados da simulação dos níveis de gelo no Ártico, questionando-se se já teria sido ultrapassado o ponto de viragem. Três anos depois, uma equipa de cientistas climáticos liderada por Timothy M. Lenton publicou um estudo que utilizava modelos para prever a evolução do sistema terrestre e identificava nove elementos de viragem. No entanto, em setembro de 2022, uma outra equipa de cientistas climáticos encabeçada por David I. Armstrong McKay subiu esse número para dezasseis. Intitulado “Exceder 1,5°C de aquecimento global pode desencadear vários pontos de viragem climáticos” e publicado na revista Science, a investigação sintetizou a literatura científica publicada desde 2008 (um total de mais de duas centenas de trabalhos que a equipa considerou rigorosos), identificando nove pontos de viragem com impacto global e sete com impacto regional.

De forma progressiva – consoante o aumento da temperatura –, a equipa propõe o colapso da camada de gelo da Gronelândia, o colapso da camada de gelo da Antártida Ocidental, a perda dos corais de baixa latitude, o degelo abrupto do permafrost boreal, a perda abrupta de gelo no mar de Barents, o colapso do giro subpolar (SPG) da corrente do mar do Labrador, a perda dos glaciares de montanha, alterações na monção da África Ocidental e na vegetação do Sahel, o colapso das bacias subglaciais da Antártida Oriental, a perda da Floresta da Amazónia, o colapso do permafrost boreal, o colapso da Circulação Termoalina Meridional do Atlântico (AMOC), a perda de florestas boreais (mais a sul), a expansão de florestas boreais (mais a norte) para a tundra, o colapso do gelo do Ártico no inverno e o colapso da camada de gelo da Antártida Oriental.

Longe dos 4ºC (graus Celsius) estimados no início dos anos 2000, a ciência aponta agora para intervalos de possibilidade bem mais próximos. Os investigadores escrevem que “o atual aquecimento global de ~1,1°C acima do pré-industrial já está dentro da extremidade inferior de cinco faixas de incerteza de CTP” (pontos de viragem climáticos, da sigla inglesa de climate tipping points), ou seja, as temperaturas atuais já se sobrepõem com as temperaturas mínimas estimadas para que cinco pontos de viragem sejam desencadeados. “Seis CTP tornam-se prováveis (com mais quatro possíveis) dentro da faixa do Acordo de Paris de 1,5 a < 2°C de aquecimento […]. Um CTP adicional torna-se provável e outros três possíveis nos ~2,6°C de aquecimento esperados pelas políticas atuais”. Assim, a equipa conclui que os próprios limites previstos no Acordo de Paris não são seguros, já que ultrapassar o patamar dos 1,5°C de subida global de temperatura “corre o risco de cruzar vários pontos de viragem”, e cruzar esses pontos “pode gerar feedbacks positivos que aumentam a probabilidade de cruzar outros”.

Acreditam que “a Terra pode ter deixado um estado climático seguro” quando ultrapassou o limite de 1ºC acima dos valores pré-industriais, e que a sua “avaliação fornece fortes evidências científicas para ações urgentes para mitigar as mudanças climáticas”, já que, “na melhor das hipóteses, se todas as promessas de emissões líquidas zero e as contribuições nacionalmente determinadas” (as NDC do Acordo de Paris) forem implementadas, o mundo pode chegar a pouco menos de 2°C, o que também não chega. “A nossa avaliação atualizada dos pontos de viragem climáticos fornece forte apoio científico para o Acordo de Paris e esforços associados para limitar o aquecimento global a 1,5°C”, concluem.

É importante relembrar que todos estes estudos se baseiam em modelos climáticos que tentam prever a evolução dos vários sistemas do sistema terrestre que, independentemente dos esforços da comunidade científica, não são infalíveis, já que a imprevisibilidade é imensa – e muita dessa imprevisibilidade é humana. No seu famoso livro A Terra Inabitável, o jornalista David Wallace-Wells aponta que a questão “quanto mais quente vai ficar?” até “pode soar científica”, mas “a resposta é quase inteiramente humana – ou seja, política”. “A ameaça das alterações climáticas é inconstante; a incerteza torna-a numa ameaça que muda de forma. Quando vai o planeta aquecer dois graus, e quando três? Quanto é que o nível do mar vai aumentar em 2030, em 2050, em 2100, na altura em que os nossos filhos estão a deixar a Terra para os seus filhos e netos? Que cidades vão inundar, que florestas vão secar, que regiões cerealíferas se vão transformar em palha? Essa incerteza está entre as metanarrativas mais importantes que as alterações climáticas trarão à nossa cultura nas próximas décadas – uma estranha falta de clareza sobre como sequer será o mundo em que vivemos apenas daqui a uma ou duas décadas”, desenvolve.

O norte-americano destaca que “embora existam algumas coisas que a ciência ainda não sabe sobre como o sistema climático responderá a todo o carbono que bombeamos para o ar, a incerteza do que acontecerá – essa incerteza assustadora – surge não de ignorância científica, mas, de forma esmagadora, da questão aberta de como respondemos”, o que se traduz, essencialmente, na quantidade de gases com efeito de estufa (GEE) que a humanidade ainda vai emitir para a atmosfera, “o que não é uma questão para as ciências naturais, mas para as humanas”.

A este ponto, é interessante pensar na definição de sistema climático. No seu livro Alterações Climáticas, Filipe Duarte Santos explica que “o sistema climático é um sistema complexo formado por vários subsistemas interativos: atmosfera, hidrosfera (oceano e massas de água superficiais e subterrâneas), criosfera (as partes geladas da superfície da Terra, incluindo o gelo oceânico, os glaciares e os campos de gelo polares), litosfera (a parte rígida e mais externa da Terra) e biosfera”. “Estes cinco subsistemas”, escreve mais à frente, “são abertos, isto é, trocam entre si massa e energia”. Tudo no planeta está ligado e se comporta segundo certos padrões, o que torna o ser humano a variável mais instável. Os climatologistas conseguem usar os modelos atuais para prever com precisão fenómenos meteorológicos porque os inputs já são conhecidos, exemplifica David Wallace-Wells; “quando se trata de aquecimento global, os modelos são igualmente bons, mas o input principal é um mistério: o que será que vamos nós fazer?”.

Antes de se aprofundar alguns dos pontos de viragem, no entanto, é importante referir que a comunidade científica se divide em relação a diversos aspetos dos mesmos. A imprevisibilidade já referida é, sem dúvida, um fator muito importante. Os estudos desenvolvidos apenas conseguem apontar possibilidades e probabilidades, não certezas, tanto a nível temporal como a nível de impacto; ninguém consegue prever quanto carbono seria libertado se o permafrost boreal colapsasse, por exemplo, porque ninguém consegue prever com certeza quanto carbono está armazenado no mesmo, nem o marco temporal exato para isso acontecer. Também existe bastante divisão quanto ao que pode ser considerado um ponto de viragem ou não, tendo já vários sido considerados e, entretanto, reanalisados e desconsiderados, ou considerados apenas por alguns cientistas. Ainda assim, a divisão surge maioritariamente associada à comunicação. Há quem discorde do próprio termo, tipping point, ou ponto de viragem, por considerar que a sua interpretação é demasiado definitiva; um ponto de viragem não se trata de um abismo abrupto, mas sim de uma escada, algo que, ao ser desencadeado, irá evoluir de forma progressiva, ainda que de forma muito mais rápida do que estaria até então – pode acontecer em apenas algumas décadas, mas também podem ser precisos milhares de anos.

Por outras palavras, ser irreversível não significa que seja imediato ou que não possa ser impedido, parado ou atrasado. O próprio líder do estudo de 2022, David L. Armstrong McKay, aponta ao The Guardian que a equipa não está “a dizer que, porque provavelmente vamos atingir alguns pontos de viragem, tudo está perdido e o jogo acabou. Cada fração de grau que paramos além de 1,5°C reduz a probabilidade de atingirmos mais pontos críticos”. Isto toca num ponto referido repetidamente por cientistas e que também foi explorado nesta grande reportagem: o catastrofismo climático não ajuda ninguém. Assustar com o colapso civilizacional não inventiva a agir – pelo contrário, só gera apatia e inação. A comunidade científica já identificou diversos possíveis pontos de viragem, sim, e esses pontos têm sido inclusive analisados a fundo nos relatórios mais recentes do IPCC, mas não há nenhum iminente que desencadeie impactos tais que torne o planeta inabitável por si só num futuro próximo. Desencadear uns pode desencadear outros como uma fila de dominós, e cada um deles tem o potencial para fazer disparar a quantidade de GEE na atmosfera e, consequentemente, a temperatura na Terra, mas o ser humano continua a ser o maior agente de emissões, o que significa que o ser humano ainda pode determinar muitos fatores nessa trajetória consoante as decisões que toma daqui para a frente.

 

Os vários pontos de viragem

 

Filipe Duarte Santos é das principais figuras associadas às alterações climáticas em Portugal. Atual presidente do CNADS (Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável), do qual faz parte desde 1998, tem participado como delegado de Portugal em diversas COP (Conferências das Partes) da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas) e tem desde os anos 80 integrado (e liderado) inúmeros organismos nacionais e europeus dedicados ao ambiente e às alterações climáticas. É professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa com vasta carreira na investigação científica nacional e internacional, tendo dedicado a sua atividade à física nuclear teórica e à astrofísica nuclear e, a partir de 1987, às ciências do ambiente, às alterações climáticas e à sustentabilidade.

Em entrevista ao Gerador, começa por referir que “os tipping points são situações em que sistemas do sistema Terra não respondem a estímulos ou perturbações de uma forma linear, o que quer dizer que a resposta não é proporcional ao estímulo. Para dar um exemplo, é como se tivéssemos um elástico, e se formos esticando o elástico, evidentemente estamos a criar uma certa tensão, e o elástico vai esticando, esticando, esticando, até que se parte. É o que chamamos uma resposta não linear, e nessas circunstâncias em que há respostas não lineares há uma transformação profunda nesses sistemas”. Em que sistemas pode isto acontecer, e como se pode desencadear essa transformação? O cientista explora em detalhe os principais pontos de viragem.

Camadas de gelo: Gronelândia

“Se a Gronelândia não tivesse gelo era uma série de ilhas relativamente baixas, mas como tem uma camada de gelo que, em certos sítios, atinge cerca de 2 quilómetros de altura, as ilhas são praticamente montanhas de gelo. Ao ter começado a sofrer as consequências do aquecimento global, vai havendo uma certa fusão do gelo. Então, temos aqui dois percursos possíveis. Um percurso é o gelo ir derretendo, mas nós conseguimos controlar o aquecimento global, e a certa altura, embora já tenha havido uma perda de massa considerável, há um abrandamento da subida da temperatura, e a Gronelândia reconstitui-se. O outro caminho, que é o de tipping point, é que se o aumento da temperatura for superior a 3°C, a Gronelândia não consegue inverter o seu processo de fusão do gelo. Torna-se num processo irreversível, e daqui a uns milénios acabaríamos por ter uma Gronelândia sem gelo, e isso significa que o nível médio global do mar sobe cerca de 7 metros [se a camada de gelo da Antártida Oriental, a maior da Terra, colapsasse na totalidade, o aumento seria de 52 metros]. Toda a baixa pombalina ficaria debaixo de água, por exemplo, a menos que se contruísse uma muralha colossal. [Outra questão importante é a do albedo. No sistema climático, um exemplo de feedback positivo é o efeito albedo do gelo: ao derreter, a superfície clara do gelo deixa de refletir o calor e, ao mesmo tempo, torna a superfície do mar mais escura, absorvendo mais calor, o que aumenta as temperaturas locais e leva a um derretimento ainda maior.] Lembro que o Acordo de Paris procura que o aumento da temperatura não seja superior a 2°C, e recomenda muito fortemente que seja inferior a 1,5°C, logo, se se cumprir o Acordo de Paris, há uma probabilidade de que eventualmente este processo consiga ser parado. Mas, se o aumento da temperatura atingir 3°C ou mais, já não conseguimos fazer parar o comboio. O comboio vai por ali fora até haver um choque enorme, e esta é que é a ideia dos tipping points.”

Florestas tropicais: Amazónia

“A floresta da Amazónia está a sofrer bastante com as temperaturas mais elevadas (como muitas outras regiões do mundo, na verdade). Como a temperatura da atmosfera é mais elevada, há secas em certas regiões da floresta. Por outro lado, há também impactos humanos, porque se está a fazer a desflorestação de uma parte considerável da Amazónia. Logo, a floresta responde a todas estas perturbações, tentando adaptar-se. Mas, a certa altura, já não consegue resistir a essa pressão contínua cada vez mais intensa, e uma das coisas que acontece é, em lugar de ser um sumidouro de carbono, em lugar de funcionar captando dióxido de carbono da atmosfera através da fotossíntese, passa a ser um emissor de carbono. As árvores (aqui para falar de uma maneira mais simples) não têm saúde, não têm o vigor que tinham, e, portanto, em stress, vão definhando, tornam-se mais vulneráveis a doenças, o seu crescimento é mais lento, e há uma mortalidade elevada. E, portanto, a floresta no seu conjunto, em lugar de captar grandes quantidades de dióxido de carbono da atmosfera, passa a emitir, porque as árvores que morrem dão origem a mais emissões de CO2 – passa a haver aqui um tipping point.”

Permafrost

“O caso do permafrost é um pouco mais complexo. Nas regiões polares, sobretudo no hemisfério norte – no Ártico, na Sibéria, na Eurásia, e também no Norte da América do Norte – existem grandes quantidades de permafrost. O que é o permafrost? Nessas regiões de latitudes elevadas há bastante água no solo e, devido à temperatura, essa água está gelada, de maneira que, de certo modo, é como se fosse uma rocha. É uma mistura de gelo e de terra, terra essa que contém matéria orgânica. É um terreno perfeitamente sólido, o permafrost é muito bom para fazer as fundações de uma casa, por exemplo, só que, com o aumento da temperatura, essa água que está no solo sobre a forma de gelo começa a derreter, e as casas começam a deformar-se. Qual é o problema disto, para além dessas casas que ficam em condições difíceis? O problema é que existe imenso metano capturado nesse gelo, e quando a água passa do estado sólido ao estado líquido, nesse processo de fusão da água, formam-se pequenos lagos à superfície, e esse metano que está sob a forma de hidratos de metano acaba por ficar como um gás a borbulhar, indo para a atmosfera. E, portanto, contribui para o problema gravíssimo que já temos – ao aumentar ainda mais a concentração de metano na atmosfera estamos a provocar um maior aquecimento global. Isto é aquilo a que se chama uma retroação positiva, a positive feedback: estamos a provocar um problema, esse problema tem consequências sobre um determinado sistema, que reage agravando o problema. Podia reagir não agravando o problema, e então seria a negative feedback, uma retroação negativa, mas, neste caso, é uma retroação positiva que leva a que o problema se agrave. Há estimativas de quanto metano estará preso no permafrost, mas ainda não são inteiramente fiáveis, já que há poucas medições da quantidade de metano que está preso e que está a ser emitido. Mas está a ser desenvolvida investigação, e há um enorme esforço para se ter um maior conhecimento sobre aquilo que se está a passar.”

Correntes oceânicas: AMOC

“Existe a possibilidade de uma interrupção da corrente do Golfo. A corrente do Golfo é uma corrente quente que sai do Golfo do México, que passa ao largo da Flórida, depois sobe na Costa Leste dos Estados Unidos, ali naquela zona das Carolina, e depois atravessa o Atlântico, e vai até à zona da Gronelândia, para latitudes mais elevadas, perto da Terra Nova. O que é que acontece? Essas são águas quentes e com grande salinidade (têm um teor de sal muito elevado), e por isso são um pouco mais densas, e em contacto com uma atmosfera mais fria, há a transferência de energia térmica do oceano para a atmosfera, logo, ficam ainda mais densas. Então, as águas da corrente do Golfo tornam-se mais frias, e como são densas por terem uma salinidade elevada, afundam-se. Isso cria uma corrente chamada termoalina, uma corrente que depois vai pelo fundo do oceano. É uma coisa muito interessante. Bom, então qual é o problema que pode acontecer? O problema é que, se continuarmos com tantas emissões de gases com efeito estufa para a atmosfera, há uma tendência para o degelo, e como essa é água não salina (é água potável, não é água do mar), ao ser descarregada sobre o oceano vai diminuir a salinidade das águas que vêm do Golfo do México. Ao mudar a salinidade, as águas já não se afundam na zona habitual, vão-se afundar mais a sul, logo, a transferência de energia entre o oceano e a atmosfera, em lugar de se fazer nas latitudes elevadas, faz-se mais abaixo. Fazendo-se mais abaixo, toda a região da Europa do Norte (de fachada atlântica, em especial a Irlanda, a Inglaterra, também a França), em lugar de a temperatura aumentar, a temperatura decresce. Por exemplo, se compararmos Nova Iorque com uma cidade na Europa que esteja à mesma latitude, que será algures em França, a temperatura de Nova Iorque é muito mais baixa do que em França. Porquê? Por causa desta corrente. Mas se houver uma interrupção da corrente, se esta transferência de energia passar a ser feita mais a Sul, então essa energia térmica que a corrente transporta até ao Atlântico Norte já não se faz, e a temperatura baixa. É algo contraintuitivo, temos aquecimento global, mas temos aqui um tipping point que é a interrupção da corrente termoalina que gera esta consequência que parece ser oposta. E como as correntes oceânicas estão todas interligadas, os efeitos podem espalhar-se. O que é que se sabe neste momento? Sabe-se que a corrente tem estado a enfraquecer, mas ainda estamos relativamente longe deste tipping point.”

Recifes de coral

“Quanto aos recifes de coral, isso é uma transformação que, se quisermos dizer mesmo, é uma morte anunciada. Já se sabia, quando se estabeleceu o Acordo de Paris, que, com 2 °C, os recifes de corais estavam em grande parte condenados. Porque é que eu digo em grande parte? Porque não vão desaparecer completamente, mas vão ser muito mais raros, ficam em certos nichos, e aquela diversidade biológica extraordinária perde-se toda. Estou a pensar no Great Barrier Reef, na Costa Leste da Austrália, que tive a oportunidade de visitar no ano 2000 e depois em 2013 ou 2014. Da segunda vez, foi uma visita a convite do Governo australiano, em que eles fizeram um esforço enorme para mostrar como estavam a cuidar bem dos recifes, mas já não tinha qualquer comparação com aquilo que eu tinha visto mais de uma década antes. Este é o impacto que estava previsto, e resulta da sensibilidade incrível que os recifes de coral têm à temperatura. A temperatura do oceano está a aumentar – há ondas de calor no oceano, tal como há ondas de calor na atmosfera – em certas zonas devido a várias circunstâncias; se as temperaturas forem suficientemente altas, são muito mortíferas para os corais, e ultimamente têm sido suficientemente altas. Depois, nessa costa da Austrália, há agricultura intensiva; os fertilizantes vão para o mar e o mar fica muito rico em nutrientes, sobretudo compostos de azoto, e isso faz com que as águas tenham menos oxigénio. Por outro lado, temos os ciclones tropicais, que, quando ocorrem, são muito destrutivos para os recifes de coral. Depois ainda temos a acidificação do oceano, que resulta de haver uma maior quantidade de dióxido de carbono na atmosfera que se dissolve no oceano – a reação química entre o dióxido de carbono e a água que provoca o ácido carbónico – e, portanto, as águas do mar ficam mais ácidas. E quando os recifes de corais ficam debilitados também há espécies oportunistas, que se dão bem neste novo ambiente e que aproveitam esta oportunidade, comem e destroem os corais. A combinação de tudo isto está a ser muito prejudicial para os recifes. Há recifes de corais em águas muito mais quentes do que essas do Great Barrier Reef, que é o caso, por exemplo, dos do Mar Vermelho, entre a Arábia Saudita e o Egito, mas com o aumento da temperatura aí também há limites, não é? É um tipping point no sentido de que são ecossistemas muito ricos, logo, a sua perda representa uma perda enorme de biodiversidade que é irreversível.”

Tipping points sociais

“Também se tem falado muito e escrito muitos artigos científicos sobre uma coisa que são os tipping point sociais. Agora já não estamos a falar do sistema Terra, nem das suas várias componentes e dos seus vários tipos de ecossistemas, estamos a falar das sociedades humanas, e nas sociedades humanas também há tipping points em relação às alterações climáticas.

Por exemplo, o aumento da temperatura afeta muito os países mais pobres, porque, em geral, têm uma grande dependência na agricultura, e a agricultura é vulnerável às alterações climáticas, em especial à seca e também às inundações violentas. Portanto, um país, perante impactos das alterações climáticas moderados, consegue ter uma certa capacidade de resiliência e superar essa crise, mas se a crise for muito forte, então chega-se a uma situação que pode ser caótica – que é o que se está a passar neste momento no Paquistão. O Paquistão foi extremamente afetado pelas chuvas da monção extremamente elevadas que houve em Agosto do ano passado: morreram cerca de 1700 pessoas, um terço do país ficou debaixo da água, morreram dezenas de milhares de cabeças de gado, as culturas agrícolas perderam-se. Foi um choque violentíssimo para o país, e, para além disso, o país tinha (e tem) problemas políticos, e também se conjuga o facto de ainda não ter conseguido fazer um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para conseguir um empréstimo. O que isto quer dizer é que houve aqui uma perturbação da sociedade que foi de tal modo intensa que a sociedade não conseguiu ter resiliência, não se conseguiu adaptar e, portanto, entrou num estado que é muito diferente dos estados anteriores, é um estado que tende para ser caótico, o que, no fundo, é a definição de um tipping point.

Outro exemplo, este relativamente a Portugal. Ao analisarmos a precipitação média anual portuguesa, percebemos que há uma tendência de decrescimento. Outra forma de dizer isto é que as secas estão a ser mais frequentes. Isto tem um impacto que começa a ser bastante significativo, sobretudo no sul do país, porque são muitos anos nesta situação. O montado – que é um ecossistema muito interessante, construído pelo homem, e que tem um grande valor económico, ambiental, cultural e histórico – começa a estar cada vez mais em stress. E não é só a diminuição da precipitação, mas também as ondas de calor mais frequentes, o que faz com que, a certa altura, as árvores comecem a ter uma mortalidade mais elevada. E, portanto, se nós não adaptarmos o montado, se não criamos resiliência, estamos a aproximar-nos de um tipping point, porque a sua produtividade baixa, em particular em respeito à cortiça, e as pessoas têm mais dificuldade em viver nessas regiões. Esta combinação do ecossistema e das populações que aí vivem e não têm capacidade para se adaptarem, constitui novamente um tipping point, uma transição mais ou menos abrupta.”

Ainda que os pontos de viragem climáticos sejam previsões algo incertas, Filipe Duarte Santos lembra que “os impactos das alterações climáticas já se sentem bem”. “Aquilo que nós estamos a sentir no sul da Europa em termos de precipitação e de aumento de temperatura, em particular na Península Ibérica e também no Sul de França, é aquilo que estava previsto acontecer daqui a 20 anos, entre 2040 e 2050. Isto significa que há uma aceleração no processo que é incrivelmente preocupante. E é algo que mostra que a ciência não é perfeita, que os nossos modelos não conseguem prever efetivamente tudo o que se vai passar – de modo nenhum. Quando se fala de cenários, são cenários sobre aquilo que irá acontecer no futuro, mas a realidade é que nós não temos capacidade de prever o futuro, apenas temos capacidade de prever tendências. E as coisas estão-se a passar, em termos de alterações climáticas, muito mais rapidamente do que aquilo que a ciência previu e calculou através dos modelos climáticos”, termina o cientista.

 

As alterações climáticas são consideradas a maior crise que a humanidade alguma vez enfrentou. Mesmo com consciência das consequências, a quantidade de gases com efeito de estufa que emitimos para a atmosfera continua a aumentar anualmente; segundo a monitorização da Climate Watch, temos vindo a aproximar-nos cada vez mais das 50 mil milhões de toneladas anuais. Cientistas e ativistas defendem que é necessário repensar, adaptar e restruturar o sistema em que vivemos, e que fazê-lo é urgente, uma vez que o prazo de validade do nosso modo de vida está a esgotar-se. Mas como se repensa o sistema? Por onde se pode começar, quais os caminhos a seguir e quais as possíveis alternativas e soluções? Como poderia ser a vida nas cidades sustentáveis do futuro? E quais os maiores obstáculos para lá se chegar?

 

Esta grande reportagem tem seis partes que serão publicadas ao longo de seis semanas nas datas indicadas em baixo.

Clica em cada um dos círculos para as leres.

 

As alterações climáticas são consideradas a maior crise que a humanidade alguma vez enfrentou. Mesmo com consciência das consequências, a quantidade de gases com efeito de estufa que emitimos para a atmosfera continua a aumentar anualmente; segundo a monitorização da Climate Watch, temos vindo a aproximar-nos cada vez mais das 50 mil milhões de toneladas anuais. Cientistas e ativistas defendem que é necessário repensar, adaptar e restruturar o sistema em que vivemos, e que fazê-lo é urgente, uma vez que o prazo de validade do nosso modo de vida está a esgotar-se. Mas como se repensa o sistema? Por onde se pode começar, quais os caminhos a seguir e quais as possíveis alternativas e soluções? Como poderia ser a vida nas cidades sustentáveis do futuro? E quais os maiores obstáculos para lá se chegar?

 

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