A madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022 ficará para sempre nas nossas memórias pelas piores razões possíveis. À memória desse dia, juntar-se-iam, nos 365 dias que lhe sucederam, as imagens dos bombardeamentos, do desespero, da fuga, da desolação da impotência e da morte dos inocentes, sempre dos inocentes. Por entre toda esta espiral negativa de acontecimentos, fomos tendo alguns vislumbres de esperança, personificados na resistência heróica de um povo que se viu inesperada e barbaramente atacado e invadido. Na forma como, perante as atrocidades, a Europa se uniu e falou a uma só voz na condenação da invasão russa, no acolhimento dos milhares de ucranianos que fugiram da guerra, na tentativa de colocar um fim ao conflito e de apoiar o esforço de defesa enquanto este durar.
Passado quase um ano, e ao contrário do que poderiam ser as expectativas iniciais por parte do invasor, a guerra não durou seis dias e o seu fim não é evidente. Ao contrário, as consequências desta guerra, prolongada no tempo, fizeram-se sentir através de efeitos colaterais com um impacto real na vida dos europeus. Estes efeitos colaterais, em tudo inferiores às consequências diretas de uma guerra, traduziram-se numa pressão real na vida dos europeus, com uma inflação galopante, a decisão do aumento das taxas de juros, e, em muitos casos, numa incapacidade de fazer face ao aumento generalizado dos custos de vida.
É inegável que, após um ano de invasão, o conflito continua vivo e os sinais de retirada da Rússia não se vislumbram. Neste momento, tal como em qualquer momento desde o início desta guerra, o imperativo continua a ser a necessidade de se colocar um fim imediato à agressão. Para isso, urge intensificar as estratégias diplomáticas e procurar ativar as vantagens políticas que se foram obtendo para procurar forçar um fim da invasão russa, negociando as condições para uma paz que possa ser duradoura e garantista da integridade territorial e soberana da Ucrânia. Mas, tal como tem insistido o presidente ucraniano, e como voltou a reiterar esta semana que passou, em Londres, Paris e Bruxelas, a necessidade de continuar a apoiar os esforços defensivos da Ucrânia devem merecer o apoio inequívoco da União e restantes aliados a nível mundial. Apelar à paz negando a capacidade defensiva do lado que é agredido só pode beneficiar a concretização dos objetivos do invasor.
Não obstante estas dificuldades, quer a Ucrânia, quer a União Europeia, têm sido absolutamente inequívocos na sua trajetória de aproximação e na definição de um espaço geopolítico comum e partilhado. Nesse sentido, as declarações de Zelensky no início do conflito, afirmando que «o espaço da Ucrânia é na Europa», a que as autoridades europeias deram como resposta a concessão do estatuto de país candidato à Ucrânia, demonstraram um raro momento em que a política se sobrepôs às métricas. Não raras vezes, a União é acusada de, no seu processo de decisão política, ser orientada pelo rigoroso cumprimento de métricas — como a análise às casas decimais dos défices nacionais — que prevalecem sobre uma eventual necessidade de decisão política. No caso da Ucrânia, a UE deu um sinal claro de que, independentemente do cumprimento dos critérios de Copenhaga — que orientam o processo de adesão de novos países — a orientação política era a de promover a adesão do país ao projeto europeu.
Ora, sem qualquer negação da importância simbólica desta aproximação, ou da ideia de defesa e de promoção do projeto europeu, a abordagem sobre esta adesão não pode deixar de ser, também, pragmática e realista. O projeto europeu, tal como existe neste momento, tem revelado ter algumas insuficiências e falhas estruturais. Qualquer processo de alargamento, seja de que país for, deverá ser acompanhado de um muito necessário esforço de reforma do lado institucional europeu, de modo a garantir que novas entradas aconteçam no contexto de um quadro político sólido e funcional. O risco de criar expectativas irrealistas sobre este processo pode ter consequências dramáticas a três níveis: 1) em primeiro lugar, o defraudar do ideal ucraniano de integrar o projeto europeu pode, como já aconteceu no passado com a Turquia, por exemplo, levar a um afastamento irremediável da dimensão europeísta do país e conduzir a uma procura ativa de outras alianças políticas e económicas que acabem por ser, inclusivamente, contrárias ao interesse europeu; 2) numa segunda dimensão, o defraudar de expectativas dos próprios europeus, que se mobilizaram e pareceram estar unidos no apoio aos ucranianos e à ideia de pertença da Ucrânia ao espaço europeu, pode tornar-se em mais um momento de afastamento dos cidadãos face aos seus dirigentes e de descrença na capacidade de concretização da própria União; e 3) por último, o impacto que isto poderá ter na população e nos governantes dos atuais países candidatos que, durante vários anos, levaram a cabo reformas estruturais profundas — no caso da Macedónia do Norte, inclusivamente na sua dimensão identitária — sem conseguirem, ainda, ver concretizada a sua adesão à União Europeia.
Por todos estes fatores, e reiterando a necessidade de se manter o esforço de apoio à Ucrânia e de criar uma estratégia de aproximação comum, é imperativo que, um ano depois, mantenhamos o lado emocional tão ativo quanto o racional e pragmático. De outro modo, corremos o risco de prolongar ainda mais este conflito e, com — ou apesar da — boa vontade, não sermos capazes de lhe pôr fim.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.