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Opinião de Maria Castello Branco

O perigo do fim da História

Os anos 90, marcados pelo grito de Fukuyama de que a História tinha acabado —…

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Os anos 90, marcados pelo grito de Fukuyama de que a História tinha acabado — devido à queda do muro de Berlim e ao subsequente triunfo do capitalismo e da democracia liberal —, revitalizaram o optimismo ocidental. O pessimismo que se seguiu aos traumas da Segunda Guerra era agora posto de lado, abafado pela crença eufórica de que a modernidade europeia era a peça-chave que promoveria a paz e liberdade universais. Fukuyama revitalizava não só a moral “ocidental”, mas a crença na existência de um padrão evolucionário para todas as sociedades humanas que estaria a mover-se em direção à democracia liberal. Mas, se o optimismo se provou temporário, esta mentalidade universalista, comum a todas as teorias iluministas, continuou presente.

A presente guerra na Ucrânia trouxe o belicismo de volta ao território europeu. O desaparecimento abrupto de um mundo familiar deixa quem o testemunha com a sensação de que tudo é irreal. É difícil não se ouvir, em desabafos sobre a invasão injustificada de Putin, que tudo isto parece pertencer ao século passado; que a iminência de uma grande guerra em solo europeu parece estar nas mãos dos livros de História. O problema é que a compreensão do “Ocidente" sobre si mesmo está alicerçada na crença de que a Europa (e os EUA) são centrais para a história mundial. E este legado intelectual, tipificado tanto nas teorias socialistas como liberais, foi reanimado quando o mundo, em 1989, deixou de estar dividido entre duas filosofias iluministas que almejavam alcançar uma civilização universal. As nações ex-soviéticas voltavam a poder traçar a sua História, e a maior parte dos estados no leste europeu aderiam à democracia. Na Rússia, um novo tipo de autoritarismo surgia, sob a figura de um ex-agente da KGB. Nos Balcãs, o nacionalismo reaparecia, com limpezas étnicas em curso, ignoradas pelos grandes poderes ocidentais. A Ásia central tornar-se-ia um dos centros de poder mundial.

O comunismo colapsou, mas o Utopismo manteve-se vivo sob as mãos de neoliberais no Ocidente. As políticas económicas dos anos 90 tinham uma fé ingénua na sua versão da “razão”, reavivavam uma facção radical do Iluminismo, e vieram a ser aceites devido à prosperidade que traziam. Mas este credo ingénuo estava baseado na certeza de que a História tinha acabado e que a democracia havia vencido. E o mundo pós-Guerra Fria seria marcado não por paz e universalismo moral, mas por mais sangue e guerra no Golfo, no Cáucaso, nos Balcãs, no Médio Oriente.

A direita utópica (neoliberais ou neoconservadores) viu o seu auge no pós 9/11, quando adoptou, sob a figura de Bush, um discurso marcadamente apocalíptico. Os Estados Unidos estavam, segundo o Presidente, sob ameaça de forças “do mal”, e era necessário lançar uma campanha de extinção do terrorismo. Num mundo unipolar, em que a China ainda estava a erguer-se, Bush declarava a sua intenção de exportar a democracia para o Médio Oriente. Estes dois projectos falharam redondamente, mas a visão escatológica de Bush manteve-se, e as suas raízes são antigas. As tradições ocidentais triunfantes foram sempre aquelas que almejavam alterar a natureza da vida humana. A violência não é exclusiva ao “ocidente”, mas a violência com o fim de aperfeiçoar a humanidade é produto das filosofias ocidentais. Os movimentos totalitários do século passado não são anomalias na História, nem pertencem ao passado.

Esta tendência de descrevermos tudo o que não gostamos como pertencente ao passado, desde os Talibãs serem medievais à invasão russa ser um “throwback” à URSS, é profundamente moderna. Traz-nos algum conforto acreditar que estas coisas, com as quais discordamos profundamente, não pertencem à nossa ideia de modernidade e, por isso, são qualquer coisa outra. Putin é um líder muitíssimo pertencente à modernidade, a reagir ao mundo moderno, a usar métodos modernos para atingir um fim que, para ele, significa progresso. É importante clarificar, no entanto, que o facto de Putin querer claramente regressar à Rússia imperial e soviética e, portanto, ao passado, não significa que as suas ideias pertençam ao passado. A URSS foi um projecto claramente moderno, com fins universalistas e de aperfeiçoamento humano. Putin parece-nos anacrónico porque começámos a convencer-nos, tanto na direita neo como na esquerda híper-progressista, de que já tínhamos ultrapassado o modelo de política internacional baseado no interesse do Estado; já estávamos no pós-nacional, com a utopia de um mundo com os nossos valores, com a nossa visão da razão: afinal de contas, não nos achámos sempre os salvadores secularizados?

O problema é que achar que estes movimentos “não-modernos” podem ser resolvidos recorrendo ao “progresso”, ou à fé neoliberal ou neoconservadora, é não compreender a raiz destes movimentos. Movimentos nacionalistas são hoje vistos como potencialmente perigosos no “ocidente”, mas o estado-nação é uma ideia nascida da Revolução Francesa. É um pilar fundacional da democracia ocidental. Putin está a tentar criar o seu próprio mito da nação russa, em que oblitera a nação ucraniana. A questão é que as nações interessam, que não “avançámos” para um tipo de mundo pós-nacional, que o “ocidente” não ganhou, que a História não acabou. A verdade é que a História não chegou ao fim; continua, e não gira em torno do ocidente. Putin representa um mundo que a mentalidade ocidental não consegue compreender. A guerra continuou, infelizmente, a marcar a experiência humana no mundo pós-Guerra Fria. A crença de que a democracia liberal e o progresso moral prevalecerão sempre, e que chegaremos a um mundo pós-nacional, é uma ilusão que não é nova, que marcou as tentativas de libertação da “barbárie”, as tentativas de criação de um “Mundo novo”, o grito de Fukuyama, e as políticas neo. Mas é uma ilusão que a Europa tem de abandonar, sob o risco de não estar preparada para enfrentar as consequências da guerra de Putin.

Sobre a Maria Castello Branco -

Está a fazer um mestrado em Londres, na London School of Economics and Political Science, onde se foca em teoria política, nas críticas ao pensamento racionalista e no pós-liberalismo. Estudou Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da UCP. Fez parte da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal. Feminista. 

Texto de Maria Castello Branco
Fotografia da cortesia de Maria Castello Branco
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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