Há uns anos, na sequência de mais uma tentativa do governo polaco de restringir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, nomeadamente no acesso ao aborto, milhares de polacas vieram para as ruas protestarem mais um ataque aos seus direitos. Uma dessas mulheres tornou-se viral ao empunhar um cartaz onde se podia ler “I can’t believe I still have to protest this fucking shit” (“Não acredito que ainda tenho de protestar contra esta merda”). Nos tempos que vivemos hoje, o sentimento desta mulher polaca não poderia descrever melhor tudo aquilo que sinto ao ser confrontado com as tentativas de ataque aos direitos adquiridos que vemos proliferar por toda a Europa.
Os casos de Hungria e Polónia têm sido os mais repetidos para demonstrar a erosão do Estado de Direito e dos direitos fundamentais na União Europeia. De facto, ambos os países recuaram várias posições em diferentes indicadores sociais, que vão desde a medição da igualdade de género, ao reconhecimento de direitos LGBTIA+, passando pelas garantias oferecidas na separação de poderes ou no respeito pela liberdade de imprensa ou de livre exercício da atividade jornalística. Mas, os casos estão longe de se cingir a estes dois países.
Em Itália, o governo de extrema-direita de Meloni tem procurado restringir direitos em duas frentes: no que diz respeito à entrada de requerentes de asilo no país, apresentando cada vez mais práticas restritivas no tratamento e acesso destas pessoas; e nos direitos LGBTIA+, onde tem procurado adotar medidas que visam eliminar os parcos direitos já reconhecidos em Itália nesta área.
Na Finlândia, o recém-nomeado ministro da Economia, pertencente ao maior partido de extrema-direita, foi forçado a demitir-se após ter afirmado que “seria justificável a Finlândia assumir as suas responsabilidades e promover o aborto climático”, numa pergunta parlamentar formulada em 2019 quando era deputado. A ideia de aborto climático serviria para impedir nascimentos em África, de modo a evitar o nascimento de novas pessoas, uma vez que as alteações climáticas “as levaria a procurar uma melhor vida em áreas com uma ainda maior pegada carbónica devido ao agravamento das situações de fome, doença ou condições meteorológicas extremas”.
Em Espanha, na sequência das últimas eleições locais e regionais, em que o Vox (extrema-direita) viu aumentar a sua expressão eleitoral, e onde o PPE (centro-direita) optou por estabelecer diversas coligações entre estes dois partidos para formar governo, têm sido várias as medidas anunciadas ou já tomadas que constituem um ataque às liberdades das pessoas LGBTIA+. É o caso do acordo firmado na Comunidade de Valência, que prevê a proibição de exibição de bandeiras arco-íris nos edifícios públicos e de rejeição do termo “violência machista ou misógina”. Adicionalmente, o Vox tem feito campanha aberta contra estes direitos e contra a igualdade de género, em particular com um cartaz marcante que mostra uma mão a deitar no lixo todos estes direitos caso ganhem as eleições. A possibilidade real de uma coligação entre o centro e a extrema-direita é real, o que nos obriga a uma reflexão, também, sobre qual o papel que o centro-direita quer ter na defesa das questões de direitos fundamentais e de proteção das identidades na Europa.
Os casos sucedem-se um pouco por toda a Europa e o relatório de 2022 da ILGA-Europa revela que este foi o ano mais violento para as pessoas LGBTIA+ na Europa desde que elabora este relatório anual (há mais de uma década). Em 2022, registaram-se dois ataques terroristas — na Noruega e na Eslováquia — à porta de bares LGBTIA+ que mataram quatro pessoas e feriram 22. Também se registou um aumento do número de homicídios e casos de suicídios de pessoas LGBTIA+ em toda a Europa.
Como se pode verificar, o cenário na Europa não está a melhorar. Recentemente, numa comissão parlamentar no Parlamento Europeu, onde estive presente, uma deputada do Vox reclamou maiores incentivos a que as mulheres possam ficar em casa “a cuidar da família e do lar”. As escolhas políticas que fazemos têm impacto e temos de nos sentir, cada vez mais, convocados a escolher e a eleger. Não há nenhuma guerra cultural em curso, nem nunca a conquista de direitos significa uma ameaça ou uma perda de direitos de outros. Pelo contrário: com o reconhecimento afirmativo dos direitos de todas, todos e todes ganhamos enquanto sociedade e fortalecemos a nossa comunidade. Inverter esta tendência de aumento do ódio e da discriminação é fundamental, mesmo que no final tenhamos de voltar mesmo a protestar contra esta merda. Todos os dias.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.