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Opinião de Manuel Luar

A Gastronomia das estações do ano (quando as havia…)

Nas Gargantas Soltas de hoje, Manuel Luar aborda a sinergia entre meteorologia e gastronomia, contemplando as suas mudanças ao longo do tempo.

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Ora temos seca no retângulo, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, ora pode haver perigo de inundações.

Trata-se, pois, de uma "seca" no sentido queirosiano do termo, que tem trazido chuva fora de tempo, com temperaturas a condizer.
Ninguém sabe ao acordar se está tempo de esticar a toalha na praia ou de ficar em casa a olhar para a chuva nas vidraças e ver passar as horas.

Ontem amanheceu cinzento na grande Lisboa. E chuviscava.  Nada garante que pelo meio-dia não estivesse já o sol a brilhar... Ou que, pelo contrário, aquela chuvinha se intensificasse.
Há alguns anos que se acabaram as certezas mais antigas que garantiam as estações do ano e as suas características. Será do aquecimento global, fenómeno que muitos contestam, ansiosos para que os deixem continuar o desenvolvimento sem sustentabilidade. 

Já tinha lembrado S. Mateus (15:14): “Cegos são e tentam conduzir outros cegos. Ora se um cego conduzir outro, acabam por cair ambos numa cova”.

Temo que seja por aqui que a civilização, tal como a conhecemos, vai acabar...

Quem se recorda de ir brincar ao Santo António à chuva? Ou de estar disponível para aviar uma sardinhada também à chuva?

Há comezainas que exigem tempo metereológico adequado, não tenham dúvidas. Desde o cozido à portuguesa de Inverno, ou a lebre e perdiz no Outono, até aos grelhados de Verão. 

Por isso acontecia antigamente darmos descanso ao palato e ao estômago, preparando o corpo na estação estival para o "pesadelo" dos pratos invernais, carnais (e infernais).

Quando o mundo era um local mais simples, onde grande parte da população ativa de Portugal ainda lavrava as suas leiras - ora para vender nas feiras o produto da terra ou mais habitualmente para subsistência e complemento dos fracos rendimentos mensais - estas coisas das Estações do Ano tinham preceito.

Dava o tom o velho "Borda d'Água" que era o almanaque do campo. Hoje é o único que ainda resiste e é vendido sobretudo nas estações de serviço automóvel e quiosques.

Havia o TV Rural - com o saudoso Engº Sousa Veloso - e combinava-se na rádio o "Piquenicão". Um antepassado do atual “Festival da Comida do Continente”, mas na altura organizado pelo Radio Rural, programa da manhã do antigo Radio Clube Português, que durou entre 1964 e 1993. 

Recordo o anúncio (falado com sotaque) de um desses “Piquenicões”:  “Lá num bai haber xede, carago!”

Atualmente tão politicamente incorreto, em tantas dimensões, que acaba por ter alguma graça.

Os maiores patrocinadores dos programas de radio da tal manhã que era “madrugada”, eram os produtores de adubos e fertilizantes, com a CUF à cabeça. 

Nesses programas - que ainda presenciei porque sempre gostei de me levantar muito cedo para estudar - falava-se de coisas que hoje parecem no mínimo estranhas para o indígena citadino que se dirige todos os dias para o trabalho: as doenças da fruta, o míldio e o oídio na vinha, a “lixiviação” (mobilidade dos adubos para as camadas profundas do solo devido à chuva), o avanço ou o recuo do ano agrícola, etc...

Com a atual confusão sazonal, sem sabermos se há que enfiar as galochas ou o fato de banho, não sei como aquela gente antiga reagiria. Tenho alturas em que penso que mudariam de atividade, por já não conseguirem ter ginástica física e mental para acompanhar tanta esquiva da meteorologia.

Na prática, e aqui só para nós, mudar de atividade já (quase) todos mudaram, que a agricultura de subsistência foi chão que já terá dado mais uvas.

Vem isto a propósito de não ser hoje incomum existirem restaurantes que todo o ano apresentam “cozido à portuguesa” nas cartas. Ou “cabrito” (enfim, menos preocupante dada a conhecida importação dos antípodas) ou até pratos mais pesados como a “feijoada à transmontana” ou o “lacão” (pernil de porco fumado e cozido com grelos).

Para já não falar da "perdiz " em julho, obviamente de aviário. Tanto podiam marcar na carta perdiz como frango que era igual em quase tudo, exceto no preço.

Manda o cliente, manda o marketing!

Se ao Cliente lhe apetece o cozidinho, mesmo que feito com lombardo em vez das couves portuguesas, porque é que não se lhe vende o dito cujo?

Ora couve-lombarda é para quem gosta de salsichas frescas guisadas...

Estimo que dentro em pouco, e logo que a lei o permita, vão-nos propor lampreia em agosto e sável em maio... Tudo graças à moderna tecnologia de aquicultura e refrigeração. Se até já existem - e começa a ser obrigatório por lei - mangas de alta congelação nos restaurantes que no espaço de minutos congelam profundamente qualquer alimento.

Há anos era uma festa (de duvidosa legalidade, já se sabe, mas com o sabor picante de tudo o que era pecado...) quando algum amigo nosso - normalmente trabalhando em coutos - nos presenteava com duas perdizes, ou até com uma braçada de coelhos bravos, uma ou duas semanitas antes de abrir a época.  

Hoje não há nada mais simples, é só dirigir-se ao supermercado especializado mais próximo: desde o faisão ao veado, tem lá tudo e em qualquer mês do ano.

Onde fica a gastronomia com isto tudo?

Sem querer parecer "velho do Restelo" sempre lhes digo que não só da técnica culinária e da arte do "queima-cebolas" à frente dos fornos vive a boa cozinha, mas também - e sobretudo - da qualidade da matéria-prima.

E quem se esquecer disso - sendo cozinheiro- pode trabalhar na confeção, sim, mas de colheres de pau, que é ofício correlacionado.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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