COMUNICADO: A Muralha assassinou de mais de 400 destacados ecomunistas
Ao longo dos últimos cinco dias, mais de 400 dirigentes e quadros do movimento ecomunista foram assassinados em dezassete países, segundo Fazil Tarkan, porta-voz rotativo da Assembleia Global do Movimento Ecomunista. Estes hediondos assassinatos ocorreram através de vários métodos, desde envenenamento a explosões, incluindo abates a tiro na rua. Entre alguns as principais lideranças mortas estão Farah Farrokhzad, heroína da Revolução Iraniana, Amisha Kusuma, comandante moçambicana, Reza Heydari, o Leão de Wrak Zoi, Grimelda Asunción, presidente da Assembleia de Tenochtitlán e Maria García, subcomandante Mexicana do Exército Verde. A maior parte dos assassinatos ocorreu na América Central e do Sul, no Médio Oriente e em África. Bonolo DeViliers, famoso guerrilheiro da guerra contra o Estado Islâmico na Bacia do Rovuma, está em estado grave no hospital do Soweto, depois de ter sobrevivido a um ataque à bomba.
A Assembleia Global Ecomunista identificou a origem dos ataques numa aliança de assassinos da Muralha Reunificada, que tomou a Aliança das Cidades Independentes na Europa, além de uma coligação de sicários do grupos criminais europeus e sul-americanos. O objetivo deles é simples: destruir tudo o que foi construído na última década, recolocar-nos no caminho da catástrofe, tirar ao movimento ecomunista a sua capacidade de continuar a agir e a curar o planeta e as sociedades. As forças contra-revolucionárias, já derrotadas, continuam a insistir na violência sistemática contra inocentes, contra heróis e contra o conjunto da Humanidade. Não nos deixam alternativa a arrancá-los da sociedade como cancro que são.
Mas o momento é de chorar as nossas heroínas caídas, é de celebrar as suas vitórias, as suas batalhas e revoluções vitoriosas. Os nossos panteões por todo o globo hoje enchem-se tristemente de corpos sem vida, corpos das pessoas que se levantaram e levantaram os povos para impedir a catástrofe, que deixaram tudo para trás para lutar pela Humanidade e pelo futuro. Será difícil deixar expresso em palavras a dívida que todas as gerações que vivem e viverão na Terra do futuro devem a elas. As revolucionárias da Grande Mudança hoje caídas fizeram, como os heróis do passado, o que era impossível. Que seja claro para toda a gente que o seu legado para o movimento e para a Humanidade será para sempre recordado. O nosso luto planetário pelas heroínas ecomunistas estará à altura das mesmas. Ya hya chouchada!
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Há algum tempo eu suspeitava do que Dewi me dissera: alguém dentro do movimento tinha traído a minha mãe. Tinha sido para descobrir isto que a Elizandra me tinha enviado aqui? Insisti com ele para que explicasse quem dentro do movimento tinha traído a minha mãe, quem a tinha entregue aos sicários da Muralha, mas ele disse-me que não sabia mais. Como podia não saber mais do que aquilo? Furioso, agarrei-o pelos colarinhos mas ele rapidamente empurrou-me com os seus fortes braços, exigindo-me que o largasse.
- Acalma-te, Alex. Eu não sei mais do que isto.
- Quem te contou? - gritei-lhe, chorando de dores e de raiva.
- O Sukumar.
- Porque é que ele não me contou a mim? - começou a largar-me.
- Isso é algo que deve perguntar a ele.
Porque tinha eu que viajar meio mundo para saber isto? Porque não me tinham as camaradas da minha mãe e do meu pai contado? Porque não tinha a minha mãe percebido o perigo que corria quando tinha estado meses antes de morrer comigo. Porque não me tinha dito nada disto? Será que ela sabia?
Tentei sem sucesso sacar mais informação a Dewi, que insistia que só tinha descoberto recentemente, que Sukumar lhe tinha pedido para guardar segredo das pessoas do movimento, de toda a gente menos de mim.
- Nunca imaginei que um dia virias visitar-me, até há uns meses atrás o Sukumar me ter dito que o tinhas contactado e que não te devia dizer nada online. E há pouco tempo contactaste-me para entrevistar-me.
Nesse mesmo dia anunciei a minha partida para Calcutá. Apesar do mau ar entre nós, Dewi ofereceu-se para me levar no Cerawat até George Town, na Malásia, onde eu podia apanhar um barco até à Índia. Nunca pensei que aquele carrinho conseguisse fazer uma viagem de mais de dois mil quilómetros, mas aceitei. Seria bom não ter de fazer mais uma viagem de comboio. Após um dia de preparações, partimos. A minha ansiedade em chegar ao Sukumar só era ultrapassada pela minha frustração em não conseguir falar por telefone com a Elizandra, que eu sentia que me tinha manipulado para chegar ali. Se Dewi sabia acerca da minha mãe, como podia ela não saber? Como podia Gianni não saber? Em que jogos de poder estava eu a participar? Enviei-lhes vários mails aos quais não obtive resposta. O que quereria ela de mim? Que quereriam eles de mim? De que lado estariam?
Partimos ao cair da noite. Dewi disse-me que seria ideal para evitarmos o pior do calor. A primeira travessia de ferry aconteceu poucas horas depois. Muitas outras se seguiriam: de Java para Sumatra, de Sumatra para Bangka e finalmente de Bangka até à península da Malásia. Em Sumatra, a vegetação era muito verde e parecia que viajávamos entre lagos, com extensos espelhos de água entrecortados por pequenas línguas de terra bem assinaladas. Partilhávamos a estrada com poucas motas elétricas e autocarros. Quando amanheceu no dia seguinte, começaram a aparecer também na estrada algumas pessoas caminhando. Às 11h parámos perto do Porto de Tanjung Api Api, para descansarmos durante o dia. Dewi explicou-me que durante a maré alta no período das monções este porto já não funcionava por ficar quase submerso. No entanto, as monções deste ano pareciam já ter acabado em Fevereiro, pelo que ainda estava aberto e podíamos apanhar aí um barco para a ilha seguinte.
À noite embarcámos rumo à ilha de Bangka e fizemos uma curta viagem pelo interior da mesma, até chegarmos a Pantai Batu, um minúsculo “porto” que não era mais do cinquenta metros de doca e meia dúzia de pirogas, onde teríamos de esperar um dia inteiro pelo ferry. Visitei lindas praias próximas, o Pulau Nanas, onde centenas de crianças brincavam e banhavam-se muito felizes. A temperatura da água atingia os 30ºC, parecendo uma sopa, mais quente do que no exterior. As ondas de medusas e caravelas portuguesas, que faziam das praias voltadas para fora nos oceanos praticamente inacessíveis para banhos, não ocorriam aqui, nesta baía interna, onde até se viam peixes a nadar. Pareceria que os oceanos continuavam extremamente saudáveis, e não cheios de zonas mortas, como acontecia em tantos lugares. Foi um dia em que me senti em paz, ouvindo crianças e adultos brincando e cantando, e senti-me abandonar um pouco a nuvem carregada que pesava sobre a minha cabeça. Lembrei-me do meu bebé. Ao pôr-do-sol, embarcámos no nosso último barco, que vinte horas depois nos deixou em Singapura. Dewi queria levar-me a conhecer algumas coisas da cidade, mas insisti com ele em partirmos o mais rápido possível. Tínhamos descansado durante a travessia e eu ainda tinha de descobrir como iria até Calcutá. De passagem pude ver a famosa “cidade verde de Singapura”, uma cidade-estado agora governada por assembleias ecosociais, depois de ter expulsado as tríades que se tinham refugiado ali uma década antes. Pareceu-me bastante bonita e, de facto, muito verde, com alguns prédios com um ar super-moderno e brilhante, lembrando a construção futurista, embora carregada de vegetação em cada andar, em cada telhado. Penso que era nisto que o movimento Solarpunk se tinha inspirado, ou que Singapura se tinha inspirado nos solarpunks para a sua arquitectura. Indonésia, Singapura e Malásia, todas parte do Tratado Mundial do Clima, não tinham fronteiras entre si.
A viagem de Singapura até Kuala Lumpur demorou pouco mais de seis horas. Com o ambiente mais desanuviado entre mim e Dewi, comecei a fazer-lhe perguntas sobre a melhor opção para chegar a Calcutá. Por terra, já sabia, seria impossível atravessar a Tailândia, Myanmar e Rakhine, territórios em guerra. Dewi desaconselhou-me fortemente a apanhar um barco pelo Mar de Andaman e a Baía de Bengala. Apesar das marinhas combinadas de Índia, Paquistão, Bangladesh e Tripura, existia uma enorme quantidade de piratas no mar, particularmente violentos também por causa da guerra, que deviam ser evitados. Perante a minha relutância em apanhar um avião, o meu companheiro sugeriu-me voar num drone de carga, que voaria mais baixo, mais devagar, mas que me deixaria em Calcutá em dez horas. Incerto sobre a melhor opção, adiei a decisão. A meio do caminho, depois de termos passado longas horas viajando ladeados por selva, parámos numa pequena vila para comer. Enquanto comíamos os já costumeiros gafanhotos e grilos, dos quais me tornado fã desde o Vietname, ele falou-me sobre a situação atual na Índia. Era nesta zona do mundo que vivia a maior população do mundo, e também onde vários territórios se tornavam crescentemente inabitáveis, primeiro dos quais o Bangladesh. Apesar das pulsões independentistas, a Índia apenas tinha “perdido” Tripura e Nagaland, na zona Nordeste do enorme país. Dewi achava que a insurgência que tinha surgido entretanto em outros estados da mesma zona poderia levar à independência de toda aquela parte do país, cada vez mais instável. A queda dos nacionalistas hindus há mais de uma década tinha estabilizado o país. Ocorrera após ondas de calor terem morto mais de quatro milhões de pessoas em Delhi e no Rajastão. Nessa altura, os nacionalistas hindus tinham atacado comunidades muçulmanas e cristãs, matando milhares de pessoas. Em resposta, várias milícias foram formadas, algumas com apoio externo, nomeadamente do Paquistão. No final de verão, na última onda de calor, o primeiro-ministro morreu de ataque cardíaco, levando o partido BJP e a seita Abhinav Bharat a dizerem que o presidente fora envenenado, após o que retomaram a campanha de violência contra outras religiões, incluindo os Sikh no Punjab. O país estava em pré-guerra civil e o novo primeiro-ministro escolhido era uma figura nacionalista hindu, quase tão velho quanto o primeiro, e muito menos popular.
- A 15 de Novembro, os nacionalistas decidiram convocar manifestações para celebrar Nathuram Godse, o assassino de Mohandas Gandhi. Em resposta, milhões de pessoas saíram à rua condenando os nacionalistas. Uma greve geral foi convocada e os agricultores bloquearam as principais cidades da Índia. O nosso amigo Sukumar e o Novo Mundo na Índia fecharam as centrais de gás em Ratnagari e Pragati, além de várias centrais a carvão.
- E seguiu-se um banho de sangue? - perguntei, à espera do pior.
- Não. A dimensão era avassaladora. O governo demitiu-se e chamou eleições. Uma coligação de partidos progressistas - desde o Congresso até aos Comunistas - ganhou as eleições, prometendo acabar com a repressão religiosa e fechar os fósseis em cinco anos no máximo. A Índia juntou-se então ao Tratado Mundial do Clima.
- E os nacionalistas hindus simplesmente aceitaram?
- Houve tumultos em vários sítios, mas a obsessão com o antigo líder tinha sido fatal para os nacionalistas hindus. O novo governo desmantelou várias das políticas nacionalistas de Modi e estabilizou o país.
- E os ecomunistas?
- Só surgiram na Índia mais tarde, e estiveram inicialmente em bons termos com o governo. Tornaram-se muito relevantes nos meios rurais e ligaram a luta contra o sistema de castas com a distribuição de terras agrícolas, em particular no Sul. Os Dalit acorreram massivamente ao movimento ecomunista.
- Os Dalit?
- Os intocáveis. A casta mais baixa da sociedade indiana. O ecomunismo na Índia advogava pelo abandono de todas as religiões e de facto tanto hindus como muçulmanos e sikhs abandonaram as suas religiões pelo movimento. Tornou-se um movimento com dezenas de milhões de militantes, muito influente na política indiana.
- E agora, como está a situação? Quem governa?
- É uma mistura entre progressistas e ecomunistas. O Sukumar saberá dizer-te mais do que isso, com certeza. Como sempre, as coisas não estão tranquilas.
Aceitei a sugestão de Dewi em ir no drone de carga, mas apenas depois de confirmar que era um drone tripulado e não sem piloto. A ideia de fazer uma longa viagem sozinho numa máquina controlada a partir de uma sala a milhares de quilómetros de distância, que podia a qualquer momento perder a conectividade ou ser hackeada era simplesmente inaceitável. Assim, encurtámos a nossa viagem algumas centenas de quilómetros, parando na capital da Malásia, Kuala Lumpur. Dewi levou-me diretamente ao hangar da sua amiga, Dhia Ooi, que também seria a piloto do drone. Apesar de ser jovem (não imaginei que tivesse mais de vinte e poucos anos), garantiu-me ser muito experiente, já tendo voado mais de 60 mil kilómetros por toda a região, inclusivamente em cenários de guerra.
A minha despedida de Dewi foi bastante cordial. Eu desculpei-me pela minha reação intempestiva em Jakarta e pelo meu silêncio no início da nossa viagem, ele contemporizou.
- Eu compreendo, Alex. Perdoa-me por não ter mais informação para te dar, mas seguramente que o Sukumar te poderá dizer o que queres saber. Além disso, há uma vantagem em ires de drone: a Dhia pode deixar-te mesmo perto da casa do nosso poeta. Manda-lhe um grande abraço meu.
- Mandarei. - Dewi abraçou-me e beijou-me as duas faces. - Boa sorte Alex. Que encontres todas as respostas que procuras. Narju 'an takun al'ard maeak!
Que seria aquilo? Será que Dewi também era Ardista ou um das novas religiões que tinham surgido na última década? Despedimo-nos e entrei na cabine do drone de Dhia, já numa plataforma exterior. Parecia uma carrinha de carga branca das antigas, mais achatada, aerodinâmica e arredondada, como se tivesse sido espalmada, com oito hélices protegidas por círculos. Enquanto Dhia ligava o painel e preparava a nossa descolagem, eu pensava nas palavras de Dewi. Que respostas procurava eu agora? A Grande Transformação de repente não me parecia tão importante quanto saber tudo sobre a minha mãe. Estava tão perdido nos meus pensamentos que nem ouvi quando ela me disse que íamos levantar, de tal maneira que a rápida subida a pique de centenas de metros me deixou colado à cadeira e com o estômago pressionando para baixo. Finalmente a pressão aliviou e seguimos velozmente para frente, vendo por cima alguns dos poucos arranha-céus que a capital malaia ainda tinha, incluindo a torre Merdeka, reduzida aos seus últimos 300, em pleno processo de desmantelamento depois de ter sido parcialmente destruída por um tufão.
Em poucas horas o sol pôs-se e Dhia sugeriu-me que dormisse.
- Não precisas companhia?
- Não, estive o dia inteiro a descansar, tenho de deixar estas cargas em Chittagong depois de te deixar em Calcutá.
- Que materiais transportas?
- Impressoras 3D e impressoras alimentares.
- Impressoras alimentares?
- Sim, processadoras para proteínas e hidratos de carbono sintetizados localmente a partir de insetos ou madeira. Há muitas por aqui.
Eu já tinha ouvido falar das impressoras alimentares mas não sabia que eram comuns.
- Então, é tranquilo eu dormir?
- Sim, claro. Tenho um bom áudio-livro para ouvir.
Só acordei quando Dhia me tocou no ombro, horas depois. Olhei para baixo e estávamos sobre um grande delta, que começava a brilhar. No horizonte, uma ténue linha anunciava o dia seguinte.
- Olá, Alex. - sorriu para mim e apontou para baixo - aqui começa o Delta do Ganges, os Sundarbans. - Desceu o drone para mais próximo do solo e pudemos ver claramente a imensa zona verde acastanhada, no meio da qual saíam da água edifícios, florestas, torres elétricas, turbinas eólicas. Distinguiam-se em algumas zonas as estradas submersas, que Dhia me explicou que em alguns casos não estariam a mais de um metro de profundidade. - As zonas mais próximas do mar aqui no delta agora inundam todos os dias durante a maré alta. - eu via alguns barquinhos navegando abaixo, provavelmente pescadores.
- Vivem aqui muitas pessoas?
- Agora vivem no Delta uns 100 milhões, mas há pouco tempo eram quase 300 milhões de pessoas.
- Uau. E para onde foram as restantes?
- Estão todas espalhadas pelas regiões à volta: foram para Dhaka, para o Norte de Bengala Ocidental, Calcutá, Krishnanagar, para outras zonas da Índia, e para mais longe, para outros países. Para o Tibete, o Butão. Antes da guerra, muitos também migravam para Myanmar e Tailândia. Agora, as pessoas não migram mais para o leste.
A paisagem submersa durante a maré alta continuou durante as duas horas seguintes, intervalada por milhares de pequenas ilhas que não eram mais do que zonas uns poucos metros mais altas. Além das centenas de milhões de pessoas que tinham abandonado a região, pensei na quantidade de comida produzida ali que simplesmente tinha acabado. Pouco depois da terra começar a predominar sobre a água, a paisagem mudou rapidamente para uma zona altamente urbanizada, com milhares, milhões de casas, incluindo gigantes bairros de lata.
- Kolkata.
Ainda sobrevoámos a cidade durante mais dez minutos de casas, parques e estradas de terra e asfalto, até finalmente Dhia me anunciar a chegada. Pousámos num campo de futebol. As pessoas que andavam pela zona afastaram-se e taparam a cara para se protegerem da poeira levantada pelas hélices do drone. Saí do veículo e trouxe as minhas coisas. Dhia despediu-se rapidamente e levantou a grande velocidade, subindo centenas de metros em meros segundos, levantando nova nuvem de pó onde a anterior ainda não tinha sequer pousado. Quando o pó começou a assentar e peguei as minhas coisas para procurar a casa de Sukumar, comecei a reparar em várias sombras que se aproximavam de mim. Assustei-me com a quantidade, uma figura alta no meio. As primeiras gargalhadas aliviaram a minha tensão. Eram crianças, o que mais haviam de ser? No meio delas um homem, muito mais velho, cujos traços do rosto reconheci de imediato: Sukumar Battacharaya. Ao ver-me, caíram grossas lágrimas pela sua cara. Agarrou-me pelo braço.
- Que bom que chegaste. Que bom. Vem.
Pediu a duas crianças que levassem as coisas e guiou-me, agarrado ao meu braço. Apesar de ser alto, parecia muito frágil e sentia o seu peso sobre mim. Este homem não teria mais do que sessenta anos, mas parecia ter oitenta. Atrás de nós seguia uma pequena excursão de cerca de quinze crianças.- São sobrinhas e netos. - Sorri-lhes e sorriram de volta. - São boas pessoas. Têm de ser. - a sua voz também era de uma pessoa muito mais velha.
Andámos menos de trezentos metros até chegarmos à casa de Sukumar, um pequeno edifício de três andares, do meio dos quais se via erguer a copa de uma grande árvore. Uma das miúdas abriu-nos a porta e entrámos. A temperatura interna era muito mais fria, embora na rua o calor fosse suportável. Descalçámo-nos e deixámos à porta mais dezenas de sapatos, somando-se aos que já lá estavam. Senti o chão de madeira sob as minhas meias e fiquei preocupado sobre o meu próprio cheiro.
Sukumar levou-me pelo braço a uma copa cujas paredes estavam decoradas com lindas pinturas de árvores e animais. As crianças desapareceram aos risinhos pelos corredores da casa. Serviu-me um copo de água de uma jarra transparente - Água da nascente do Ganges, nos Himalaias. A água da cidade ainda continua demasiado poluída, não a deves beber a não ser que seja estritamente necessário. - Puxou de uma cadeira e mandou-me sentar, sentando-se à minha frente, do lado oposto da mesa de madeira. Uma janela dava para o jardim interior, onde se via o tronco da enorme árvore cujas folhas tapavam o telhado. Era um local muito agradável. - Queres comer algo? - Aceitei e o homem apontou-me um lavatório. - Podes lavar as mãos aí, Alex. - Saiu e quando voltou trazia um prato com naan, um pão da região, arroz e caril. Comecei a comer enquanto Sukumar me observava, sorrindo. Deixou-me comer uns minutos, até finalmente falar.
- Não sabes há quanto tempo desejo falar contigo, meu querido. Ainda te lembras de mim?
- Sim, lembrava-me de ti na nossa casa em Lisboa. Eu teria uns dez, doze anos?
- 2021. Antes do Mundo Novo, antes do movimento, antes da ORCA, da Descarbonária, dos Neolludistas, da Muralha, do Exército Verde, dos Catastrofistas, dos Apocalípticos…
- Das Asas de Borboleta…
- Sim, Alex, antes das Asas de Borboleta. Embora a ideia já existisse dentro da minha cabeça. O Covid estava a passar e eu só pensava como podíamos voltar com a mesma energia de antes, com mais energia do que antes. Pouco menos de um ano atrás tínhamos tido milhões de pessoas nas ruas. Era só uma questão de tempo até metermos tudo a andar de novo. Passei esse verão viajando para encontrar aliados, perseguir pequenas pistas, conhecer movimentos, ter conversas, ouvir sugestões, ler textos e manifestos, procurar revolucionárias para travar o caos.
- Portanto, foste tu que fundou as borboletas?
- Seria arrogante falar de um fundador, mas sou um dos fundadores, sim.
- Os meus pais também?
- Os teus pais sabiam, mas demorou algum tempo até se juntarem. O teu pai nunca quis estar muito por dentro, não como a tua mãe. Foi assim com muita gente. Precisaram ver coisas novas a acontecer para finalmente se juntarem.
- Sukumar, eu estou aqui porque tu me chamaste. O Dewi disse-me que tu sabes quem mandou matar a minha mãe. Que a ordem veio de dentro do movimento. - Ele estendeu a mão e agarrou a minha, levantando-se. Levou-me pelo corredor, o soalho rangendo sob os nossos pés, uma corrente de ar trazendo o barulho das crianças que estariam em outros lugares da casa. Sukumar rodou a chave de uma porta vermelha e abriu-a. Estávamos no seu escritório. Uma série de dossiers estava em cima da secretária. O homem abriu uma das caixas e tirou lá de dentro um ficheiro, que me entregou para eu ler. Era uma ordem interna de Janeiro de 2036, das Asas de Borboleta, autorizando a fuga de informação sobre a localização da minha mãe no México. Não tinha assinatura, mas estava identificada como “O secretariado”.
- Quem era o secretariado?
- Está assinalado como S.
Sukumar mostrou-me uma outra folha, com uma tabela com a lista completa de membros das Asas de Borboleta desde a sua fundação:
2026-2028: EM (Chile), GF (Ita), LB (Bra), SB (India), AK (Moz), JZ (China), AS (USA) |S: EM, GF, SB
2028-2030: GF (Ita) , LB (Bra), JZ (China), AS (USA), JA (Bru), FI (Morroco), HS (Nigeria), MG (Portugal) | S: GF, JZ, JA
2030-2032: GF (Ita), LB (Bra), AS (USA), HC (Colombia), YP (Russia), MS (Germany), FH (France), DR (Argentina) | S: GF; LB, FH
2032-2034: LA (USA), HC (Col), MG (PT), CG (China), EL (Chi), BD (OAR), NS (Russia), FF (Iran)
S: HC, MG, LA
2034-2036: GF (Ita), BD (OAR), CG (China), LA (USA), FT (Turquia), CW (Congo), GG (Sweden), HC (Col) |
S: CG, HC, GF
2036-2038: LF (Ita), BD (OAR), DM (China), LG (Kurdistan), FL (Congo), EM (Chile), BP (Spain), HW (Australia), CA (Brasil), MV (Cuba), BG (Vietnam), DM (Morroco) | S: DM, EM, LG
2038-2040: LF (Ita), OS (Egypt), DM (China), JA (Bru), LG (Cur), FL (Congo), HW (Australia), CA (Brasil), MV (Cuba), BG (Vietnam), LQ (Wallmapu), CC (Amazonia), AY (India) |S: DM, LQ, JA
- O secretariado eram estes três: DM, EM, LG. EM é Elizandra? - Fiquei estupefacto.
- Não, Alex. É o secretariado do mandato anterior, a ordem é do início do ano.
- CG, HC, GF.
- CG é Chen Gongsun, da China. HC é Hector Crespo, da Colômbia.
- Oh não… Gianrocco Fatin. GF.
Sukumar pôs a mão sobre o meu ombro.
- Porquê?
- Terás de perguntar-lhes diretamente. Aos que ainda estão vivos. Mas não pode haver dúvidas que foi uma questão política. A tua mãe era das principais líderes da ala mais radical do movimento. Crespo liderava o campo que se opunha. O dos chamados “pacifistas”.
- Mas o que significava isso?
- A tua mãe e Grimelda Asunción lideravam o campo da Justiça Histórica. Da Rota do Futuro que não pode parar até o clima estabilizar. Também defendiam a repressão violenta até à dissolução do crime organizado. Para elas, os pactos táticos com as máfias tinham tido consequências catastróficas para o movimento. Chen Gongsun, o terceiro membro do Secretariado, suicidou-se após a explosão da barragem das Três Gargantas.
- E dos restantes membros das Asas, quem sabe disto?
- Pouca gente. Por questões de segurança, eu apenas falei sobre isto com pessoas ao vivo. Algumas delas suspeitavam de algo parecido. No massacre de ’36, das quatrocentas dirigentes mortas, a maior parte eram Justiça Histórica. Incluindo as duas principais líderes.
- Quem mais sabe?
- Dewi, Elizandra, Bao Giap. A Josephine.
- Porque é que elas não me contaram?
- A Josephine achou que era um perigo contar-te e que o mais seguro seria que o soubesses o mais longe possível de Gianni, e fora da sua influência.
- Vocês acham que o Gianni vai fazer alguma coisa? Ele é muito menos influente, muito menos poderoso do que a Josephine ou a Liz.
- O Fatin ainda tem poder real dentro do movimento. O Crespo ainda é influente. Se eles mandaram matar alguém tão importante quanto a tua mãe, tu estás muito mais vulnerável.
- Sukumar, eu mandei mails ao Gianni sobre isto, depois de falar com o Dewi.
- Eu sei. Não há nada a fazer. Temos de pensar nos próximos passos com cuidado. Temos aliadas importantes, em particular a Elizandra.
- Sukumar, e a Lia, o António? Eles estão em perigo?
- Tenho a certeza que a Liz já pensou nisso há muito.
- Preciso ligar-lhes, preciso falar com ela.
Deixei-me cair na poltrona. Peguei o telefone. Ninguém me atendeu. Nem sabia que horas seriam em Portugal. Liguei para Elizandra.
- É madrugada na Colômbia, Alex. - lembrou-me Sukumar.
- Mas ela pode atender.
Ninguém me atendeu. Tentei acalmar-me. O velho poeta trouxe-me um cálice de vinho do Porto que eu engoli de um trago.
- Foram os teus pais que me deram esta garrafa, há mais de uma década. Tens de acalmar-te. Não vai acontecer nada neste momento. Mesmo que eles saibam que nós sabemos, tenho toda a confiança de que a Liz planeou tudo. Tu sabes que ela é presidente do Tratado Mundial, não sabes? - Acenei que sim. - Isso significa mais ou menos que ela é a presidente do mundo. Deixei sair uma gargalhada. Sukumar riu-se comigo.
- Vai descansar um pouco, Alex. Ao fim da tarde voltamos a tentar falar com a tua família.
O velho levou-me até um quarto onde já estavam as minhas coisas no pé da cama. Apontou-me a um quadro onde estava escrito um poema. Ele apontou para o quadro e disse-me - É sobre ela. Saiu e fechou a porta atrás de si. Tirei o quadro da parede e li-o, já deitado na cama.
Texto de João Camargo