Vivemos tempos de tensão constante. Guerras prolongadas, deslocamentos forçados, crises humanitárias, avanço da extrema-direita, degradação ambiental, inflação, incerteza, tudo a acontecer ao mesmo tempo, em todo o lado. E no meio deste caos global, a resposta do sistema continua a ser a mesma: apontar o dedo ao indivíduo.
É como se a desorganização do mundo fosse culpa de quem não consegue manter a casa arrumada, pagar as contas a tempo, dormir oito horas por dia e ainda sorrir nas redes sociais. A dor coletiva é tratada como falha pessoal. A ansiedade, o cansaço, a apatia, o medo — tudo rotulado, diagnosticado, medicado. Mas raramente contextualizado.A saúde mental tornou-se o novo campo de batalha onde o capitalismo reforça o seu poder. A patologização dos indivíduos é a forma mais eficiente de desviar a atenção daquilo que verdadeiramente nos adoece: um sistema que exige produtividade ininterrupta, precariedade como norma e resiliência infinita em troca de quase nada.
Não conseguimos respirar, mas o diagnóstico não fala da qualidade do ar. Fala do pulmão. Não conseguimos dormir, mas o diagnóstico não fala do medo do futuro. Fala da mente. Não conseguimos pagar renda, mas o diagnóstico não fala do mercado imobiliário. Fala da ansiedade. Estamos a ser esmagados por exigências estruturais — jornadas extenuantes, ausência de tempo livre, insegurança constante — e a única resposta que nos dão é: "é preciso aprender a gerir melhor o stress."
A medicalização das reações humanas ao sofrimento social transforma sintomas em defeitos. A dor, que devia ser sinal de alerta coletivo, torna-se motivo de vergonha individual. E com isso, o sistema lava as mãos.Enquanto o mundo se reorganiza politicamente em direções cada vez mais autoritárias, a pressão para nos adaptarmos silenciosamente, funcionalmente, produtivamente, só aumenta. Mas a pergunta que se impõe não é "como é que eu posso continuar a funcionar neste sistema?", mas sim "por que raio é que este sistema continua a exigir aquilo que adoece toda a gente?"
A resposta nunca esteve apenas dentro de nós. Está também à nossa volta. Está nas políticas que nos atravessam, nos discursos que nos moldam, nas estruturas que nos oprimem. E enquanto não olharmos de frente para isso, continuaremos a tentar curar individualmente uma dor que é, desde sempre, coletiva.