Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a solidão uma “preocupação global de saúde pública” e, nesse sentido, procedeu à constituição de uma comissão internacional para a conexão social, propondo-se a endereçar esta crise – ou ‘epidemia’, como é frequentemente retratada – com a maior das urgências. O concreto conteúdo das propostas que irão despontar desta comissão é ainda turvo, mas a sua própria constituição poderá oferecer-nos alguns indicadores. Olhemos, por exemplo, para Vivek Murthy, Diretor-Geral de Saúde norte-americano e cocoordenador deste grupo de trabalho, que à Harvard Business Review descreve o isolamento como prejudicial não apenas para o bem-estar físico e psíquico de todos nós, mas também para o normal funcionamento empresarial (destacando, um pouco bizarramente, a forma como a condição assola, em especial, CEOs, um ponto realçado já em tempos anteriores pela mesma publicação). Ainda antes desta movimentação estratégica da OMS e numa peça a respeito, precisamente, dos vários entendimentos de solidão, e a partir das declarações de Murthy, Amba Azaad escreve, “Uma doença torna-se uma epidemia, e por isso digna de atenção, quando um número significativo do tipo certo de vítimas—homens cis/hétero/abastados/brancos/ocidentais—começa a ser afetado por ela”1.
Não é que a promoção de um diálogo sustentado e global sobre a solidão e as suas sequelas reais e determinantes no nosso equilíbrio emocional e corporal seja algo negativo. Não é que não nos possamos referir ao seu impacto transgeracional como uma verdadeira epidemia, impiedosa e abarcante, que chega a tudo e a todos a ritmos distintos. A cura para a solidão não é ocultá-la, categorizando-a como uma vulnerabilidade singular e indigna e, por consequência, procurar aliviá-la através de recursos internos, em silêncio, à sombra. A solidão é apenas a expressão aguda de uma necessidade basilar: a de proximidade. Falar sobre ela é normalizá-la, normalizar uma experiência tacitamente partilhada e que se aproxima tanto da essência de ser humano, de estar vivo, de desejar estar vivo com o outro. A questão que surge – como realça Azaad – prende-se pela circunscrição da própria conversa sobre solidão: do que falamos, de quem falamos, o que deixamos de fora, o que recusamos pôr em causa na busca por uma solução. Parecemos inclinados a problematizar a solidão de forma fragmentada: focando-nos na disparidade de género, por exemplo, procurando decidir – ainda que com dados difusos – quem é titular do maior sofrimento, e não o porquê de esse sofrimento existir. Parecemos resistentes à noção de que a solidão é um problema supra-individual, cuja resolução terá necessariamente de implicar uma reestruturação profunda do nosso mundo social, e não poderá nunca passar apenas por curas temporárias que privilegiem a potencialização da força produtiva de cada pessoa, ou a margem de lucro de cada empresa, (sempre) o capital ao detrimento da dignidade.
Por muito que o digamos de forma aspiracional, por muito que o digamos a nós mesmos, para poder suportar o peso de uma realidade em que o individualismo predatório é celebrado, porque queremos acreditar que não precisamos de ninguém e que somos donos e autores únicos do nosso destino, das nossas glórias e dos nossos tormentos, não é possível dependermos apenas de nós mesmos. A total autossuficiência – romantizada pelas engrenagens neoliberais que modelam o nosso quotidiano – é inexecutável. Os elos que nos unem uns aos outros não são facultativos; estamos indiscutivelmente conectados ao outro, ao desígnio e ao labor alheios, em teias várias de que não se conhece o início. Precisamos de ajuda, de desafio, de afeto e de contraponto. As nossas ações e omissões – somos responsáveis por elas, e somo-lo não em abstrato, mas perante alguém, sempre alguém. Isto não implica a rendição ao outro sem critério ou cautela. Não implica, por exemplo, abdicar do exercício de interrogar dinâmicas coercivas ou desigualadas que potencialmente informam as nossas relações interpessoais.
Reconhecer que nos podemos sentir sozinhos não é reconhecer que é inevitável ou natural que nos sintamos tão sozinhos, tão agarrados à alienação como se de nós fizesse parte. Antes pelo contrário: reconhecer a solidão permite-nos imaginar o seu contrário, uma realidade alternativa em que temos o tempo e o espaço para fomentar conexões quer românticas quer platónicas livres e intencionais. Permite-nos supor ligações gratificantes não reguladas por algoritmos sem fundo, pela destruição progressiva das nossas cidades, pela carência de ‘terceiros espaços’, por horários de trabalho totalizadores e condições ocupacionais pobres e degradantes. A solidão, tal como a estratificação, existe simultaneamente balizada e impulsionada por circunstâncias materiais. Não é apenas um sentimento e não é individual. É projetada. E, por isso, falível.