fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Miriam Sabjaly

Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).

A solidão enquanto projeto, a mutualidade enquanto demanda

Nas Gargantas Soltas de hoje e a propósito do Dia Internacional da Saúde Mental, que se assinalou a 10 de outubro, Miriam Sabjaly reflete sobre a solidão como um dos mais prementes problemas do nosso mundo social.

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a solidão uma “preocupação global de saúde pública” e, nesse sentido, procedeu à constituição de uma comissão internacional para a conexão social, propondo-se a endereçar esta crise – ou ‘epidemia’, como é frequentemente retratada – com a maior das urgências. O concreto conteúdo das propostas que irão despontar desta comissão é ainda turvo, mas a sua própria constituição poderá oferecer-nos alguns indicadores. Olhemos, por exemplo, para Vivek Murthy, Diretor-Geral de Saúde norte-americano e cocoordenador deste grupo de trabalho, que à Harvard Business Review descreve o isolamento como prejudicial não apenas para o bem-estar físico e psíquico de todos nós, mas também para o normal funcionamento empresarial (destacando, um pouco bizarramente, a forma como a condição assola, em especial, CEOs, um ponto realçado já em tempos anteriores pela mesma publicação). Ainda antes desta movimentação estratégica da OMS e numa peça a respeito, precisamente, dos vários entendimentos de solidão, e a partir das declarações de Murthy, Amba Azaad escreve, “Uma doença torna-se uma epidemia, e por isso digna de atenção, quando um número significativo do tipo certo de vítimas—homens cis/hétero/abastados/brancos/ocidentais—começa a ser afetado por ela”1

Não é que a promoção de um diálogo sustentado e global sobre a solidão e as suas sequelas reais e determinantes no nosso equilíbrio emocional e corporal seja algo negativo. Não é que não nos possamos referir ao seu impacto transgeracional como uma verdadeira epidemia, impiedosa e abarcante, que chega a tudo e a todos a ritmos distintos. A cura para a solidão não é ocultá-la, categorizando-a como uma vulnerabilidade singular e indigna e, por consequência, procurar aliviá-la através de recursos internos, em silêncio, à sombra. A solidão é apenas a expressão aguda de uma necessidade basilar: a de proximidade. Falar sobre ela é normalizá-la, normalizar uma experiência tacitamente partilhada e que se aproxima tanto da essência de ser humano, de estar vivo, de desejar estar vivo com o outro. A questão que surge – como realça Azaad – prende-se pela circunscrição da própria conversa sobre solidão: do que falamos, de quem falamos, o que deixamos de fora, o que recusamos pôr em causa na busca por uma solução. Parecemos inclinados a problematizar a solidão de forma fragmentada: focando-nos na disparidade de género, por exemplo, procurando decidir – ainda que com dados difusos – quem é titular do maior sofrimento, e não o porquê de esse sofrimento existir. Parecemos resistentes à noção de que a solidão é um problema supra-individual, cuja resolução terá necessariamente de implicar uma reestruturação profunda do nosso mundo social, e não poderá nunca passar apenas por curas temporárias que privilegiem a potencialização da força produtiva de cada pessoa, ou a margem de lucro de cada empresa, (sempre) o capital ao detrimento da dignidade. 

Por muito que o digamos de forma aspiracional, por muito que o digamos a nós mesmos, para poder suportar o peso de uma realidade em que o individualismo predatório é celebrado, porque queremos acreditar que não precisamos de ninguém e que somos donos e autores únicos do nosso destino, das nossas glórias e dos nossos tormentos, não é possível dependermos apenas de nós mesmos. A total autossuficiência – romantizada pelas engrenagens neoliberais que modelam o nosso quotidiano – é inexecutável. Os elos que nos unem uns aos outros não são facultativos; estamos indiscutivelmente conectados ao outro, ao desígnio e ao labor alheios, em teias várias de que não se conhece o início. Precisamos de ajuda, de desafio, de afeto e de contraponto. As nossas ações e omissões – somos responsáveis por elas, e somo-lo não em abstrato, mas perante alguém, sempre alguém. Isto não implica a rendição ao outro sem critério ou cautela. Não implica, por exemplo, abdicar do exercício de interrogar dinâmicas coercivas ou desigualadas que potencialmente informam as nossas relações interpessoais. 

Reconhecer que nos podemos sentir sozinhos não é reconhecer que é inevitável ou natural que nos sintamos tão sozinhos, tão agarrados à alienação como se de nós fizesse parte. Antes pelo contrário: reconhecer a solidão permite-nos imaginar o seu contrário, uma realidade alternativa em que temos o tempo e o espaço para fomentar conexões quer românticas quer platónicas livres e intencionais. Permite-nos supor ligações gratificantes não reguladas por algoritmos sem fundo, pela destruição progressiva das nossas cidades, pela carência de ‘terceiros espaços’, por horários de trabalho totalizadores e condições ocupacionais pobres e degradantes. A solidão, tal como a estratificação, existe simultaneamente balizada e impulsionada por circunstâncias materiais. Não é apenas um sentimento e não é individual. É projetada. E, por isso, falível. 

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

20 Janeiro 2025

“Se não és lésbica, como te chamas?”: mutações e cruzamentos de uma identidade

17 Janeiro 2025

Tempos Livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

15 Janeiro 2025

42: Tempestade

15 Janeiro 2025

Uma esperança mal comportada

13 Janeiro 2025

Sindicatos: um mundo envelhecido a precisar de rejuvenescimento?

10 Janeiro 2025

Tempos Livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

8 Janeiro 2025

42: Odisseia

8 Janeiro 2025

Um psicólogo, duas medidas

6 Janeiro 2025

Joana Meneses Fernandes: “Os projetos servem para desinquietar um bocadinho.”

3 Janeiro 2025

Tempos Livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Assessoria e Escrita de Comunicados de Imprensa

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

20 JANEIRO 2025

A letra L da comunidade LGBTQIAP+: os desafios da visibilidade lésbica em Portugal

Para as lésbicas em Portugal, a sua visibilidade é um ato de resistência e de normalização das suas identidades. Contudo, o significado da palavra “lésbica” mudou nos últimos anos e continua a transformar-se.

16 Dezembro 2024

Decrescer para evitar o colapso

O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0