Há uma casa em São Domingos de Rana que diz pouco a quem circula pela estrada. A vedação verde que rodeia o terreno esconde o edifício praticamente descaracterizado, localizado muito perto da conhecida prisão de Tires “Mas o que é aquilo ali? Tantas vezes aqui passo e desconheço”, afirma o taxista que nos levou ao local.
“Aquilo” é a Casa da Criança, um espaço de acolhimento residencial que acolhe filhos(as) de reclusas do Estabelecimento Prisional (EP) de Tires, e outros menores em situação de vulnerabilidade social. Fundada em 2001, é o projeto mais antigo da Fundação Champagnat, organização de cariz religioso com várias áreas de intervenção social. Originalmente era utilizado como casa dos guardas do EP de Tires, instituição que ainda detém a propriedade. Com o edifício vazio, foi acordado que o mesmo seria requalificado e cedido para acolher crianças cujas mães se encontrem privadas de liberdade naquela prisão feminina. O protocolo estabelecido é o único do género no país.


“O que acontece aqui com o EP de Tires é que, quando é identificada uma criança para ser avaliado o seu acolhimento na Casa da Criança, a ligação é direta connosco, e nós depois comunicamos ao sistema central de vagas”, explica Luís Fernandes, diretor técnico da instituição. “Se o mesmo acontecer em Caxias ou em Lisboa ou noutro local, simplesmente a criança vai para o sistema de acolhimento central. Depois pode até vir a ser referenciada para aqui mas não é por ligação [direta]. Por isso é que eu digo que este protocolo que nós temos é muito atípico. Para já é único no país e é muito direto, o que também permite depois que estes processos sejam um bocadinho mais fáceis.”
A ligação ao EP de Tires está na identidade – e na proximidade – da Casa da Criança que, apesar disso, não é exclusiva para filhos de reclusas. Se já houve alturas em que o edifício era inteiramente ocupado por essas crianças, hoje é partilhado com outras, oriundas de diversos contextos de fragilidade social, como maus-tratos, negligência, falta de habitação, etc. “Isto vai variando face à realidade das vagas”, refere o responsável.
A Casa da Criança tem capacidade para acolher apenas 12 menores. Neste momento, metade dos residentes são filhos de duas mulheres que cumprem pena em Tires. Globalmente, têm idades compreendidas entre os quatro e os 13 anos. O facto de se tratar de um número reduzido de crianças permite, segundo o diretor técnico, um acompanhamento muito personalizado da realidade de cada família. “Nós acompanhamos a mãe desde o início [da pena] até que ela sai em liberdade e, mesmo depois”, refere Luís Fernandes.
Isto porque “muitas vezes, as mães saem em liberdade e não levam logo os miúdos. Tem de haver uma estabilização das condições de vida, e do contexto para depois haver essa reunificação familiar”, acrescenta.


A realidade nacional
O acolhimento neste espaço pode ter vários contornos, de acordo com a realidade de cada família. Relativamente aos filhos de reclusas, a lei define que uma criança pode viver com a mãe, dentro da prisão, no máximo até aos cinco anos, porém, aos três anos é habitual começar a fazer-se a transição para outros locais de acolhimento.
Em Portugal, há dois EP com condições para acolher reclusas acompanhadas de filhos até essa idade: Tires e Santa Cruz do Bispo.
De acordo com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), existe, no sistema prisional, um terceiro estabelecimento prisional exclusivamente feminino, em Odemira, mas que não recebe reclusas acompanhadas de crianças. Além disso, “existem secções femininas no Estabelecimento Prisional de Angra do Heroísmo, no Estabelecimento Prisional do Funchal e no Estabelecimento Prisional da Guarda”.
De acordo com os dados fornecidos ao Gerador pela DGRSP, a 31 de janeiro de 2023, havia dez crianças no EP de Santa Cruz do Bispo, sendo que quatro delas tinham menos de um ano. Uma estava na faixa entre um e dois anos, duas na idade seguinte e três entre três e quatro anos.
Em Tires, permaneceram, até ao final de janeiro deste ano, 16 crianças. Sete delas tinham menos de 12 meses, cinco tinham entre um e dois anos, três tinham entre dois e três anos e apenas uma tinha entre três a quatro anos. “Três reclusas que têm consigo filhos menores não são residentes em Portugal”, diz a DGRSP.
No ano anterior, 27 menores viviam com as reclusas nestes dois EP, pelo que o número total de crianças nesta situação se manteve quase inalterado.
No caso do EP de Tires em particular, existe uma ala especial denominada “Casa das Mães”. Ali, as crianças pernoitam dentro das celas e são obrigadas a cumprir os mesmos horários restritos que as progenitoras, nomeadamente no que respeita à hora de recolha.
Segundo a DGRSP, “todas as crianças a viver junto das mães frequentam a creche dos estabelecimentos prisionais, após completarem os seis meses de idade e após avaliação clínica e validação para a referida frequência”. Também a alimentação é assegurada pelos EP, assim como a saúde, sendo o plano de vacinação articulado com os centros de saúde locais e os médicos internos.
Apesar dos benefícios inerentes à manutenção da convivência entre mãe e filho, o crescimento em reclusão acarreta desvantagens que se refletem no desenvolvimento. “Chega-se ali aos três anos e começa-se a refletir nos prós e contras do [facto de a] criança, apesar de estar com a mãe, também estar privada de muitas coisas do exterior e é geralmente aí que acontece a transição para aqui”, diz Luís Fernandes.


Não havendo família no exterior disponível para as acolher, as crianças que estejam em Tires são, então, integradas na Casa da Criança, que passa a ser a sua morada, se o tribunal assim decidir. Após a mudança, podem ver a mãe uma vez por semana. Antes da pandemia da covid-19, as regras eram menos restritas, mas desde então não voltaram a ser o que eram. “Nós achamos que isso é pouco mas [...] tem que ver com a reorganização do EP no pós-covid”, explica Luís Fernandes.
Transição para as descobertas
“Estas crianças têm uma capacidade de integração e de resiliência muito maior do que nós estamos à espera”, diz Vera Pinto, educadora da Casa da Criança.
Apesar de salientar os pontos positivos, a responsável explica que existem muitos desafios inerentes à realidade da reclusão.
“Já tivemos aqui crianças que, numa fase inicial, era muito difícil [para elas] subir escadas, descer escadas, porque os patamares ali [no EP] são muito lisos. Eram crianças que muitas vezes precisavam de algum apoio ao nível de fisioterapia”, conta.


Os responsáveis relataram ainda um caso de um menino que nunca tinha visto um cão até chegar ao centro de acolhimento. A aprendizagem é, portanto, “tardia”, devido ao ambiente muito circunscrito, diz o diretor técnico, Luís Fernandes. “Outras crianças já conseguiram vivenciar aquelas situações muitos anos antes”, refere.
Daí que os próprios procedimentos dentro da Casa da Criança, tanto a nível de definição de rotinas como de relacionamento com a equipa sejam, parte integrante do processo de acolhimento, formulado para dar segurança e estabilidade. “A nossa forma de trabalhar tem toda a questão terapêutica por detrás”, afirma a educadora, Vera Pinto.
Também ao nível da linguagem, os menores podem ter algumas limitações, relacionadas com o ambiente onde viveram. Já houve casos de crianças que “vinham com um vocabulário muito precário”, conforme relata Vera Pinto. “Em vez de [dizerem que] iam para o quarto, [diziam] “vou para a minha cela”. Apesar disso, a nível escolar “adaptam-se muito bem”, assim como no que respeita ao ambiente do centro de acolhimento. “Ficavam felizes com tudo, porque era tudo novidade: ver um cão, ver o mar”, refere a educadora.


“Durante o dia até podem estar a fazer montes de atividades e estar aqui como crianças felizes. Nota-se mais este corte [do contacto com a mãe] à noite, quando é o deitar, quando é o silêncio, quando vem o vazio. Aí nota-se mais esta tristeza”, acrescenta.
A mudança de ambiente acaba por ter também repercussões ao nível da dinâmica da relação entre mãe e filho, que pode ficar fragilizada.
Marisa Alves é assistente social na Casa da Criança de Tires e trabalha regularmente com as famílias. No que respeita às crianças, explica que muitas vezes sucede uma espécie de desautorização das mães, derivado da incompreensão face à realidade da cárcere. “O que acontece é que eles vão crescendo e vão-se começando a aperceber da sua própria história de vida, da [razão pela qual] estão aqui, e as mães estão ali [dentro da prisão]”, refere.
Estes conflitos são um dos aspetos que são trabalhados pela assistente social, que também intervém ao nível das competências parentais das reclusas. Este último é, no entanto, algo que “tem os seus limites” pelo facto de o ambiente de reclusão ser “muito limitado”. “Às vezes é quase [como] tentar fazer sopa sem ingredientes. Há muitas competências que é mais fácil trabalhar quando temos as crianças e os pais juntos. Aqui eles estão juntos uma hora semanalmente. O trabalho base é muito de aproximação, mesmo afetiva, porque muitos estão aqui há muito tempo” e perdem a ligação, conta Marisa Alves.
Liberdade a quanto obrigas
Sendo um momento desejado, o término da pena não significa, necessariamente, o fim do acolhimento das crianças filhas de reclusas. Frequentemente, as mulheres são libertadas sem serem avisadas com antecedência e, por isso, sem grandes chances de ter já algum tipo de vida estruturada cá fora. Na falta de suporte familiar que possa garantir uma habitação digna, o menor permanece na Casa da Criança, até que a situação estabilize.
“Para as mulheres que saem em liberdade, o principal desafio que nós encontramos, na generalidade dos casos, é a habitação”, diz Luís Fernandes. A inexistência de uma rede de suporte, condiciona a vida em liberdade, mesmo quando se trata de reclusas com “competência, capacidade e compromisso laboral”, diz o diretor técnico.


“A questão é que, mesmo com trabalho, não se consegue arranjar casa. Isso é uma dificuldade muito grande em todos os processos porque depois, não havendo casa os filhos não podem reunificar-se com a mãe. Temos tido casos de mulheres em liberdade e que, querendo reunificar os filhos com as mães, não há habitação.”
O caso mais grave registado nesta casa de acolhimento foi de uma criança que permaneceu na Casa da Criança cerca de um ano e meio após a mãe estar em liberdade. Tudo pelo facto de não conseguir ter uma habitação. Esta situação está prestes a repetir-se, já que uma reclusa está na iminência de ser libertada e não tem previsão de como irá conseguir uma casa para viver com os seus filhos. “Vamos ter ali uma mãe competente, que vai arranjar um trabalho, que tinha todas as condições educativas, relacionais, para estar com os filhos, mas simplesmente não tem uma casa. E as crianças não podem ir para um quarto ou para casa de um conhecido, ou um albergue. Para isso ficam cá”, acrescenta.
E não se pense que este problema se limita a mães reclusas, já que é inerente a todas as crianças aqui acolhidas. Até ao final do ano, Luís Fernandes prevê que “duas ou três famílias” não irão reunir-se pelo mesmo motivo.
“Como as mães não conseguem reorganizar-se, porque não têm uma habitação, o que acontece é que isto cria aqui uma certa angústia, porque depois as crianças não percebem porque não podem estar com a mãe, quando ela está em liberdade. E é interessante porque há muitos casos em que os casos parece que se invertem. Agora são as crianças que estão presas numa casa que não é delas.”