Maio é mês de Maria, da conscientização sobre saúde mental e da masturbação. Ainda que aparentemente as três celebrações não se cruzem, eu arriscaria a dizer que se tocam — e muito. Servi-me do verbo tocar propositadamente, porque é disso que falarei. Há alguns meses, escrevi sobre a importância do auto-respeito e do amor-próprio. A masturbação é, sem dúvida, uma manifestação de ambas as coisas. Mas, se isto é verdade, por que motivo é a masturbação feminina ainda um tabu?
Recentemente, conversava com uma amiga sobre masturbação. Não falávamos sobre a nossa experiência pessoal. O diálogo era abstracto e impessoal, deixando às claras que é algo importante na nossa sexualidade e bem-estar, mas salvaguardando a nossa intimidade. À medida que íamos conversando, estranhava esta nossa cautela. Sempre falamos de sexo com abertura. Depois, percebi que a exclusão deste assunto não se cingia a esta minha amiga. Olhando para o meu círculo de amizades femininas, acabei por compreender que o sexo (no nosso caso, maioritariamente heterossexual) é tema de conversa, mas o prazer a solo não é. Aquela estranha cautela acabou por nos parecer absurda e lá acabamos a partilhar os nossos brinquedos sexuais favoritos e as marcas mais interessantes que andavam no mercado. Pouco depois, fui convidada para participar num podcast e perguntaram-me por que motivo o feminismo continua a ser necessário. Entre várias razões, mencionei o facto de que o desejo e prazer femininos continuam imersos num jogo de escondidas.
Segundo um inquérito levado a cabo pela Glamour em 2020, 91% das pessoas que se identificam como mulheres masturbam-se, 36% fazem-no de duas a cinco vezes por semana, e 67% usam vibradores1. Do outro lado, entre as pessoas que se identificam como homens, os números são muito similares, chegando aos 92%2.
Apesar das estatísticas serem tão próximas, o acto masculino é socialmente aceite e o feminino continua a ser um tabu. Uma das razões que justifica este secretismo e consequente desvalorização do prazer feminino é a vergonha, que vem arrastada. Este sentimento foi essencialmente fomentado pela religião e pelo patriarcado. Se reflectirmos sobre a tradição judaico-cristã, compreendemos que a mesma antevê a relação sexual como um meio de procriação e rejeita a noção de prazer. Acima de tudo, encara a mulher como uma fonte de subserviência e maior exemplo de moral, castidade e abnegação, sendo Maria o arquétipo desta narrativa. Não esqueçamos que Jesus é, no final de contas, fruto de um milagre. E, se assim o é, como poderíamos nós explorar o clitóris, um órgão estritamente destinado ao prazer, em paz e sossego? Por outro lado, o patriarcado fomentou não só representações femininas duais, dividindo-nos entre santas e meretrizes, como o próprio falocentrismo. O facto de a experiência sexual se centralizar no falo e na penetração, poderá levar não só a uma abdicação e desvalorização do prazer feminino como a uma ideia de que os órgãos genitais femininos existem com a finalidade de atribuir prazer ao homem e não para se servirem a si mesmos.
Devido a este contexto em que nos inserimos, é incomum abordar-se o tema da masturbação feminina na adolescência. É uma viagem na qual embarcamos sozinhas, ficando à mercê deste género de sentimentos negativos. Quando exploramos o nosso corpo nesta fase é comum termos a sensação de que o acto da masturbação não é uma experiência verdadeiramente a solo. Há uma reprovação superior, que não conseguimos explicar muito bem, e que nos vai acompanhando. É a tal vergonha que nos diz que este é um acto interdito. É que nós não queremos ser nem santas, nem meretrizes. Somos uma coisa distinta e real. Somos pessoas, somos mulheres, que têm desejo sexual e um corpo aberto à exploração. Amar o nosso corpo não é um acto impróprio, mas de amor-próprio, de liberdade, de poder e de emancipação. Muitas feministas apelidam-no de manifestação feminista. Apesar de entender, não quero atribuir-lhe esse rótulo, porque deve ser sobretudo um acto natural e a naturalidade de explorar aquele que é o nosso corpo arrecada um grande poder. Não é à toa que, quando conversamos com homens heterossexuais sobre o seu prazer sexual, é frequente recebermos partilhas num tom confiante. Chamamos-lhe virilidade. Devido à opressão histórica da sexualidade feminina, isto ainda não se reflecte do outro lado. Não só existe uma tendência para comunicarmos entre-dentes como a própria linguagem não nos apresenta o equivalente feminino de virilidade.
Além de nos emancipar e reafirmar a nossa independência, a masturbação tem outros benefícios. Por um lado, reduz o stress e a ansiedade, alivia as dores menstruais, ajuda na concentração e foco, melhora a qualidade do sono, aumenta a libido e a diminui o esquecimento. Por outro, sendo a masturbação um acto de self-care, permite-nos explorar e conhecer melhor o nosso corpo, levando-nos a aceitá-lo e a amá-lo, o que conduzirá a um aumento da auto-estima. Também tem um impacto no nosso humor e, tão importante quanto tudo isto, permite que se atinja o orgasmo mais rápido — a solo ou acompanhados.
Conhecer o nosso corpo é saber o que nos dá prazer. Depois disso, resta-nos comunicar o que gostamos. Porque, ao invés do que popularmente se diz, a masturbação regular não reduz a capacidade de apreciar sexo com um parceiro. Isto é mais uma falácia para nos cingir ao sexo heterossexual e bloquear o prazer feminino. Pelo contrário, tem o potencial de melhorar a vida sexual de todos.
1 https://www.glamourmagazine.co.uk/article/glamour-masturbation-survey
2 https://sexualalpha.com/how-often-do-men-masturbate/
-Sobre Cátia Vieira-
Cátia Vieira diz que não tem ídolos, mas chorou quando o Leonard Cohen e a Joan Didion morreram - e até sabe o mapa astral deles. Também diz que não é grande fã de pessoas, mas não pára de ler livros que esmiuçam a mente humana. Por isso, é que estudou Estudos Portugueses e frequentou o Doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho. Como se já não lesse muito (o T1 está a ficar pequeno para as gatas e livros), também escreve. Lola, o seu primeiro romance, foi publicado em 2021, pela Penguin Random House, e encontra-se, neste momento, a escrever a sua segunda obra. À noite, dá-lhe para escrever poesia. Também trabalha como directora criativa na Selafano e fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores. Vive em Braga e publica as suas leituras e ideias sobre a vida e o mundo em @catiavra.