Rita recebeu-nos no seu lar, acompanhada por Ôlinda, a sua cadela. Naquele espaço, nasceram canções, gravações para programas de rádio, versos ou textos dramáticos. As paredes colecionam quadros, a prova de impressão do seu último disco ou o eco das deixas das peças de teatro em que participou e que, ali, estudou dias, meses, a fim.


O seu percurso na área do teatro ganhou solidez quando, entre 2016 e 2019, estudou com os atores João Reis, Lígia Roque e Margarida Cardeal, em Portugal. Já no Brasil, Rio de Janeiro, estudou e representou no teatro O Tablado, com os atores Pedro Kosovski e Marco André Nunes. Assim, em 2020 estreou-se na peça de teatro Silêncios e Tanta Gente. Em 2022, fez parte do elenco de Diz-me como a chuva. Dos palcos, em que deu voz a diferentes personagens, saltou o desejo antigo de neles contar as histórias que povoavam a sua mente e, em 2022, começou a preparação de uma peça de teatro da sua autoria.
Porém, a sua estreia na escrita enquanto autora publicada deu-se em 2019 com a edição do livro de poesia, O Encontro do Tempo Ternário, com o pseudónimo Ana Dalma, no Brasil. Em Portugal, o livro foi editado em 2020. Entre 2019 e 2022, escreveu ainda para os jornais online Gerador e A Mensagem.
Já na música, conta com dois discos editados – com os pés na terra, em 2013, e Morremos tanto para crescer, em 2022. Junta-se ainda um EP, Gosto de ti, assim!, 2016, e três singles – Se bem me lembro, hino da RTP Memória, 2016; Com gosto amigo, Festival da Canção, 2018; e Disse que sim, 2022.
Dando, a sua voz, corpo a vários desígnios, colabora, desde 2021, no programa de rádio David Ferreira a contar... Consigo, na Antena 1, ao lado de David Ferreira.
Foi a pensar neste percurso colorido por várias artes que nos sentámos a falar, numa manhã chuvosa, em Sintra. Ôlinda senta-se connosco no sofá e o gravador começa a registar as palavras de Rita. Conheçamos a sua história, repleta de mortes que a permitem sempre crescer.


Gerador (G.) – O que trazes de Coimbra para a tua arte?
Rita Dias (R. D.) – Debato-me sobre isso: o que posso trazer das terras onde estou? No meu primeiro disco, honrei as minhas terras, Portugal e Brasil, e Coimbra não esteve propriamente por lá. E acho que mesmo a minha formação musical não passou muito pela música de Coimbra. Neste último disco, senti necessidade de trazer essas origens, a ligação a Coimbra. Já com outra idade e quase 10 anos depois de lançar o primeiro disco, senti que havia um grande desligamento entre mim e a minha cidade. E vejo que muitos dos meus amigos e amigas saem e Coimbra vai ficando um bocadinho nua. As pessoas estudam e vêm embora. Então, fiz questão de, numa canção, que é a “Ôlinda”, trazer as referências harmónicas e melódicas do que podia ser a canção de Coimbra. Queria trazer um bocadinho mais de Coimbra, não no seu lado tradicional, mas naquilo que Coimbra tem de belo. Olhando para a frente, e tendo em conta que a canção de Coimbra não pode ser cantada por mulheres – ou não deve, porque poder pode, eu canto-a –, gostava muito de ter um projeto, um espetáculo, onde as canções de Coimbra pudessem ser todas cantadas por mulheres.


G. – “Até ao dia em que talvez algo nos pare para que nos paremos a nós”, escreves em “Princípio, meio e fim” do teu último disco. Houve um momento em que decidiste dedicar-te à tua arte a tempo inteiro. Podes falar-nos um pouco de como tudo isso aconteceu?
R. D. – Esse momento aconteceu depois de eu ter decidido que ia deixar de fazer música. Trabalhei cinco anos num banco, quando percebi que estava na altura de sair, despedi-me e estive um ano a tentar fazer o segundo disco, isto em 2016. Não consegui, o meio é pequeno, e para uma artista independente as coisas tornam-se todas muito mais exigentes. Zanguei-me com a música e achei que o meu caminho estava feito, já tinha lançado o meu primeiro disco e, agora, a minha vida seria outra. Isto levou-me a morar no Rio de Janeiro e, a segunda temporada em que lá vivi, fez com que tivesse música, teatro e muito mais coisas do que alguma vez imaginei. Então, percebi, nesse contraste, que, no momento em que decidi que ia deixar de a fazer, a música aparece, tal como o teatro. Nem sequer estava a dar conta das coisas que apareciam. De facto, essa minha temporada, em 2017, no Rio de Janeiro, foi muito proveitosa. [Percebi que], se de facto a música está em mim, ela não vai sair. O mesmo com o teatro. Ou seja, se a arte e a expressão artística estão em mim, não há forma de as tirar de dentro de mim, por muito que seja uma profissão mais exigente no nosso país, e não só. Foi aí, em 2018/2019 que decidi que me ia dedicar à arte a tempo inteiro, fazendo vários trabalhos para o conseguir. Mas, na verdade, precisei de ter um desencantamento para perceber que, afinal, não era uma paixão, mas sim um amor declarado e que queria continuar com ele.


G. – Como já referiste, depois de 19 anos a morar em Coimbra, viajas para o Rio de Janeiro, onde ficas um ano. O que destacas da cultura brasileira que trazes para a tua arte e vida até hoje?
R. D. – Morei duas vezes no Rio de Janeiro. A primeira em 2009 e, a segunda, em 2017. Quando cheguei ao Rio pela primeira vez, vinha de Coimbra, uma cidade mais formal. E quando cheguei ao Rio de Janeiro, as pessoas que não me conheciam cumprimentavam-me com um abraço. Isso, para mim, foi o primeiro choque positivo em relação à cultura brasileira. Sacudiu um bocadinho a minha formalidade. Essa simplicidade, essa proximidade com aquilo que o ser é, é o que mais trago da cultura brasileira. Isso também se nota na música – a simplicidade com que, do nada, fazes parcerias, e isso senti mais na segunda vez em que morei no Rio. Foi muito simples. Na primeira vez, estava a estudar Gestão e conheci o Brasil através da música, da poesia e de alguns escritores. Depois, na segunda temporada em que morei no Rio, percebi que, artisticamente, falar português de Portugal ajudou, mas a parceria era fácil. Aqui em Portugal, por vezes, parece que a coisa não pega e é demorado. No Rio de Janeiro nem precisavas de estar no sítio certo à hora certa, as coisas aconteciam. Não é por acaso que tenho parcerias nos dois discos, gosto de convidar pessoas, de juntá-las. Acho que acrescentamos mais se estivermos juntos do que se estivermos separados e acho que trago isso do Rio, essa simplicidade e a parceria.
G. – Estreaste-te na música com o disco com os pés na terra, em 2013, em que, tal como disseste, honravas duas das tuas terras. O que te trouxe este disco, até ao momento em que sentiste o tal desencantamento?
R. D. – Foi uma edição independente e, portanto, do ponto de vista de projeto, o que me trouxe foi pensar que ter o curso de Gestão fazia sentido porque consigo erguer um trabalho do princípio ao fim e isso foi muito importante – perceber que, mesmo que seja muito exigente o caminho de um artista independente, esse caminho é possível. Agora, precisamos de saber o custo da viagem. E acho que foi isso que me faltou, a preparação em relação ao lugar para onde ia. Estamos habituados a uma cultura de mérito, em que fazes uma coisa, ela fica bem feita e, depois, tens o reconhecimento pelo que fizeste. E, na música e na arte as coisas não funcionam assim. Não é um caminho linear. Não há uma evolução na carreira. Não estava nada de errado com o disco, os músicos eram extraordinários, fizemos a promoção, mandámos os emails todos, tive boas críticas, mas depois percebi que esse era o tamanho que tinha e que o mérito e as coisas com qualidade nem sempre têm, na música, uma tradução direta em concertos, em remuneração e que, às vezes, é preciso fazer um longo caminho até que consigas ter essa autopreservação. A segunda coisa que [consegui] com esse disco foi ter trabalhado com ótimos músicos. A dada altura, o Filipe Almeida, que foi a pessoa com quem compus a maior parte das canções, dizia-me achar que não tinha noção da qualidade dos músicos com quem eu tocava. E, na altura, não tinha, de facto. O meu primeiro projeto autoral foi em 2012, lançado depois em 2013, e estava a tocar com músicos na ESMEL, íamos ensaiar para lá e, de repente, lá estavam os músicos todos, que já tinham acabado os seus cursos. Senti que estava a trabalhar com bons músicos quando chegava ao momento de gravar e eles faziam aquilo, se não à primeira, à segunda, e nos concertos, porque nunca se falhava. Aí, pensei que teria algum mérito, porque para primeiro disco, de repente, estou a tocar com estes músicos e compositores. E não foi o disco em si que trouxe este descontentamento, foi o meio e as suas exigências. Mas o disco foi uma experiência maravilhosa.


G. – Por falar em grandes músicos com quem trabalhaste nesse disco, tens uma música com o Paulo de Carvalho. Como se deu esse encontro?
R. D. – Essa canção, “Gente humilde / Os Meninos de Huambo”, é uma conversa entre duas canções que liricamente fazem sentido, dão resposta uma à outra, e achávamos que a pessoa capaz de honrar aquela canção seria o Paulo de Carvalho. Eu sabia que o Paulo de Carvalho estava a dar um concerto na Fábrica do Braço de Prata, fui vê-lo e fiquei à espera do fim do concerto. [Falei com ele] e disse-me que queria ouvir a minha canção. E foi tão simples quanto isso.
G. – Seguiu-se o EP Gosto de ti, assim! (2016), com três canções para crianças. Enquanto compositora, que preocupações tens quando escreves diretamente para crianças, ainda que essas mesmas canções possam adoçar o coração das pessoas adultas?
R. D. – Como escrevi essas canções para fazerem parte de uma peça de teatro, tinha uma narrativa. Então, nesse momento, estava preocupada em que a canção fizesse sentido na narrativa da peça de teatro e a minha única ligação em relação ao público que a estaria a ouvir tinha mais que ver com a escolha das palavras, a sua simplicidade. Não trazer muita poesia e que as coisas fossem mais simples de identificar. Mas a narrativa da história ajudou-me, que falava sobre gostar independentemente daquilo que sejas – se tens uma deficiência, se és gorda, ou magra, se és alta ou baixa, se foges da norma, se estás dentro da norma, gosto de ti assim, como és. Cheguei a fazer música para mais duas peças, que não editei, e as próprias histórias foram a minha alavanca, o meu guia.


G. – Em 2018, participaste no Festival da Canção com o tema “Com gosto amigo”. Esta participação foi, para ti, uma afirmação tua enquanto música e compositora?
R. D. – Não foi necessariamente uma afirmação. Quando percebi que compunha, isso, para mim, foi uma afirmação, e ainda nem sequer havia o disco planeado. Lembro-me que quando estávamos no projeto “Seis em ponto”, em 2012, o Filipe dizia-me que bom era conseguirmos ter canções originais. Que, se queria ter uma carreira, o mais importante era ter canções originais. O momento em que percebi que conseguia fazer uma canção, que se deu com a “Choraminguice”, foi, uau, a partir daqui, vou fazer [canções]. Então, o que o Festival da Canção significou, para mim, não foi tanto a minha afirmação como cantora e compositora, mas foi [participar] num concurso público da Antena 1 e, de 300 canções, foram escolhidas duas. Esse reconhecimento, para mim, foi importante. De repente, são outros que validam o que fiz e esse reconhecimento externo foi muito importante.
G. – Quase 10 anos após o lançamento do teu primeiro disco, surge o teu último – Morremos tanto para crescer (2022). Nele, ofereces-nos a “banda sonora de uma vida, do nascimento à morte”, havendo espaço para a leveza, os ciclos de amor, a reflexão e o sonho. Escreveres estas músicas ajudou-te a cimentar os teus vários crescimentos pessoais ao longo desta década?
R. D. – Sim. Decidi, neste disco, ser um bocadinho mais verdadeira, expor-me um bocadinho mais. Não que os outros não o tivessem sido, mas os outros trabalhos eram sempre a observação de alguma coisa. O primeiro disco foi para honrar as terras, a música para o Festival da Canção foi para honrar as pessoas que nele participaram, as músicas do EP de teatro infantil observavam a história e senti que, como artista, ainda não estava apresentada e que as minhas histórias também tinham essa validade, simplesmente porque as queria contar. Fui percebendo, à medida que ia mostrando as canções e cozendo o disco, que aquela história dizia respeito a uma coisa que tinha vivido com alguém. A primeira canção foi o momento em que escrevi para alguém que queria ser pai e mãe e, depois, pensei: mas eu também quero ser mãe. Quantas pessoas podem querer ser pais e mães e quantas pessoas têm canções para poderem cantar aos seus filhos? De repente, cada história me pareceu poder ser a história de outra pessoa e é por isso que falo na banda sonora de uma vida. Percebi que as minhas experiências são, não as mesmas, mas que se encontram no mesmo tipo de sentimentos na história das outras pessoas. Há muito espaço para a identificação e senti que essa verdade aproximava. Os amores bem resolvidos, os não tão bem resolvidos, o nascimento, o sonho, alguma revolta, e senti que isso me aproximava das pessoas e que estava na altura de o fazer. Por isso, digo que esta é uma banda sonora que é minha, mas que, na verdade, pode ser de qualquer pessoa.
G. – De que forma as várias cores que cada música assume, no disco, ajudam a compor essa história de uma vida?
R. D. – As cores têm um significado. Também tenho um lado espiritual que tendo a trabalhar, portanto uma das coisas à qual me ligo e que interiorizo são as cores dos sete chacras principais e todos eles têm um significado. Ao trabalhar com o designer, percebi que o significado dos sete chacras aos quais corresponde uma cor era muito semelhante aos significados das próprias cores. Portanto, o degradé que vemos no disco é precisamente essa progressão. Começas na base, com o vermelho, onde estás mais ligado à terra e às necessidades mais básicas e é o início. Depois, passas para o laranja e para o amarelo, onde encontras o teu lugar de força e revelação. De seguida, passas para o verde que é onde trabalhas mais o amor e é a tua passagem para os chacras mais do topo. Posteriormente, vais para o chacra da comunicação, que é o azul, onde há uma música que é declamada e outra que reivindica. Daí, vais para os sonhos, em que vais para um lugar mais roxo. O disco também está em roxo porque é uma cor associada ao nascimento e à morte. Então, toda essa ligação está lá e o disco vai do nascimento à morte, como os chacras vão desde a base à coroa, como as cores têm um significado também. Tudo isso cozinhado deu este disco.


G. – Como foram crescendo as várias peças deste teu disco? Foram canções que nasceram ao longo dos 10 anos?
R. D. – Durante 10 anos não digo, mas talvez durante cinco anos. Não fui para um estúdio compor, foram sendo [escritas]. E fui percebendo que havia uma linha. Houve duas canções extra que, quando me juntei à Valentim de Carvalho, achámos que podia haver mais canções, então fui buscar canções que já estavam feitas, porque já andava a querer fazer um disco há muito tempo. Curiosamente, das canções do segundo disco que queria fazer anos antes, acho que não ficou nenhuma.
G. – Neste disco tens três colaborações: Noiserv, Ana Moura e Pedro Miranda. Porque decidiste chamar estas pessoas para ajudarem a contar a tua história?
R. D. – Começando pelo Pedro Miranda, é um grande amigo. Quando estive no Brasil a segunda vez, decidimos que queríamos fazer uma canção juntos, mais uma daquelas parcerias fáceis. E, quando lhe mostrei o poema, ele adorou e musicou. Sempre lhe disse que se fizesse um disco, queria que aquela canção [“Ana e o Passarinho”] estivesse, porque remete para uma coisa que aconteceu em 2017 e que me traz muita alegria. Depois, a canção seguinte foi com o Noiserv. Foi uma canção que fiz para a minha irmã como prenda de anos. Para simbolizar o ciclo que ela passou e surgindo como resposta a um podcast que criou baseada na sua história de violência doméstica. O podcast chama-se “A mim, nunca” e a canção chama-se “A Ti, Nunca” por causa disso, é uma resposta. A minha irmã adora o Noiserv, então pensei que a melhor surpresa que podia fazer era uma letra minha e música dele. Chamei-o e foi muito bom entrar no universo dele, que é diferente do meu, e perceber que duas pessoas, ao trazerem os seus universos, não se excluem. Podem conviver por muito diferentes que sejam. A Ana Moura é minha amiga e tive um episódio muito engraçado com ela. Estou habituada a estar com a Ana num contexto de intimidade. Houve uma vez que estávamos juntas em casa dela a tentar escrever uma canção a meias. A dada altura, fazemos esta canção [“Leva o rosário contigo”], e estávamos as duas sozinhas, o pé direito da casa da Ana é alto e quando ela cantou acho que tive, pela primeira vez, noção de que era a Ana Moura que estava ali à minha frente. Ela abriu a boca, o som espalhou-se pela casa toda e eu fiquei – uau! Fizemos esta música em 2019, já conhecia a Ana há dois anos, já devia ter dado [para me aperceber], mas não. Foi ali no silêncio a cantar à capella. Depois, acabei por ser eu a pegar na canção, e chamá-la para a cantar comigo era o óbvio.


G. – “A força que julgaste não teres mais/É a ponte que erguemos para sermos normais” (“A Ti, Nunca”). Esta foi, como disseste, uma canção que escreveste para a tua irmã. De que forma a sua resistência te ensinou sobre ser-se normal?
R. D. – A minha irmã tem mais 12 anos do que eu e digo, a brincar, que já a conheço desde que nasceu. A minha irmã é uma pessoa que me ensina muito pelas suas experiências. De facto, tem tido provas difíceis ao longo da sua vida e supera-se. Este constante renascimento que ela tem é extraordinário, muito inspirador. Por muito que ela vá às profundezas, reergue-se. Essa vulnerabilidade ao lado da força acho que é ser normal. Nós tendemos a assumir que a normalidade na vida das pessoas é nascer, estudar, arranjar emprego, casar, ter filhos e não choramos, não podemos dizer que estamos tristes. Mostras as coisas em que venceste e aquelas em que não venceste não são para mostrar. Esta dualidade constante em que vivemos é que é o normal. Errar é normal, estar mal é normal, estar bem também é normal. Poder renascer duma coisa muito má também é normal. Pedir ajuda é normal e, portanto, mudou um bocadinho o meu conceito de normalidade. Acho que o tornou mais elástico. A minha irmã tem uma posição de libertação daquilo que é a norma, na minha vida. Para mim, foi muito libertador perceber que a vida não é nada linear e que nós só temos de aceitar o que é cada momento.


G. – Em “Espirro”, cantas: “Só ganho tempo a perder”. Que ganhos te têm dado as tuas perdas?
R. D. – Muitos! Estou com 33 anos e gostava que as minhas aprendizagens começassem a ser um bocadinho mais leves [risos]. Gostava de também poder ganhar algum tempo com os ganhos. Mas sou muito agradecida. Olho para a minha vida e vejo que ganhei muita coisa. Mas as perdas fazem-me parar doutra maneira. Nas alegrias vais numa velocidade cruzeiro. Trabalhei muito para chegar àquela alegria e, entretanto, já quase me esqueci. Desejamos muito as coisas e, depois, quando acontecem já entrámos na velocidade cruzeiro. Na perda, não, porque dói. Belisca e tens de parar obrigatoriamente, não é como na alegria em que estás a surfar na adrenalina. O que a perda faz é dar-te um alerta maior e vai-te a um lugar de sombra e, portanto, permite-te olhar para ti de outra maneira. Os lugares de luz são igualmente importantes, mas são lugares de expansão, em que naturalmente abres e segues. Um lugar de sombra é um lugar em que forçosamente tens de te recolher e fechar.
G. – “Tenho só dentro do peito/ O que a vida permite no meio do escuro” (“Ana e o Passarinho”). O que vês quando não te é permitido ver apenas com olhar?
R. D. – Vivo muito em função das coisas que sinto. Gostava muito de filosofia quando era mais nova, porque me dava valor, uma base, uma noção de como a vida podia ser orientada. Agora, percebi, depois de ter encontrado o caminho espiritual e percebido que cada pessoa tem a sua pegada para deixar no mundo e que essas vidas se interligam, que a minha bússola tem sido o que sinto. Claro que o que sinto não está desligado do que foi a minha vida. Portanto, a arte acaba por me deixar expressar [o que está cá dentro], mas as coisas nem sempre acontecem na mesma velocidade. Por isso, acho que vivo muito mais dentro do que aquilo que consigo expressar cá para fora. E de cada vez que vou fazendo mais um bocadinho, vou deixando que isso saia. Posso adiantar-te que escrevi agora uma peça de teatro, que gostava muito de a trazer a público, e que foi quase uma síntese daquilo que vivi nos últimos dois anos. Demoro bastante tempo a processar o que sinto, mas quando o faço é um ponto sem retorno. Não volto ao ponto onde estava, porque entendi, ganhou um sentido.


G. – Pegando nessa peça de teatro que escreveste este ano, o que te levou ao texto dramático enquanto forma de expressão, pela primeira vez?
R. D. – Lembro-me de ser pequenina e de dizer que gostava de ser todas as coisas e ser atriz era a única profissão que me permitia ser todas as coisas. Quando me despedi e senti que estava na altura de apostar nas coisas que realmente queria, o teatro era uma das coisas que queria ter experimentado e que nunca o tinha feito. Quando experimentei, fiquei encantada. Chega a ser terapêutico, o processo, não necessariamente a peça em si. O caminho que fazes até chegares à personagem, os ensaios que tens, as equipas com quem trabalhas, os exercícios a que te sujeitas são terapêuticos. Vais buscar lugares de ti, porque aquela personagem te obriga e isso é um privilégio. De repente, o teu trabalho permite-te ter um grande contacto contigo. E não quis largar mais. Não tenho muita experiência, gostava de ter mais, mas, de facto, ter várias coisas – a escrita, a música, a rádio –, andar sempre a saltar, faz com que não me dedique a tempo inteiro a uma coisa só e, até aqui, a música tem sido mais a minha prioridade. Foi aquela em que investi desde mais cedo, mesmo como estudante. Mas não só é terapêutico, como te permite sair de ti, colocar-te realmente nos sapatos de outras personagens, histórias, e isso deu-me sempre muita humildade, que aliás, é o que a arte mais me tem dado. Ao contrário do que se possa imaginar, sou uma pessoa muito mais humilde desde que entrei neste meio e, quanto mais ando mais percebo que se não for assim não faz sentido, para mim.
G. – “Despi a solidão de não te encontrar” (“E ficámos sem voz”), escreveste. De que formas te cultivas nas várias configurações que existem de solidão?
R. D. – Leio. Não sei se foi por ter lançado um disco há pouco tempo, mas não ouço assim tanta música como já ouvi. E tenho lido mais. Durante três anos, em que passei por um período mais depressivo, não li porque não tinha a capacidade de me concentrar e, agora, recuperada, acho que são os lugares em que me encontro mais sozinha – medito e leio. Mas acho que é por fases, em função dos lugares em que estou e da quantidade de trabalho que tenho, também. Estou numa fase com muito trabalho, com pouco tempo livre e a leitura tem sido a minha maior companhia.


G. – Ainda em 2022, lançaste mais um single, “Disse que sim”, uma “ode aos amores de verão, em que se diz que sim para toda a vida”. Dadas as tuas conquistas ao longo deste ano, consideras que a maior história de amor que viveste neste verão foi a de amor próprio e à tua arte?
R. D. – Sim. Disse-te que sim [risos]. Este ano foi um ano em que vivi muita coisa boa, em que alcancei coisas que desejei durante muito tempo, nomeadamente o lançamento do disco, e houve também coisas de que a vida me deu provas. E olhar para mim, agora, ou olhar para mim há cinco ou 10 anos, não é a mesma coisa. Estou num lugar em que, independentemente daquilo que aconteça, de bom e de mau, ou de aparentemente bom e de aparentemente mau, estou bem. Posso estar mais triste, ou noutros dias mais alegre, mas estou bem. E isso foi uma aquisição nova, para mim. Não sei se é recente, talvez tenha sido um caminho construído a partir de 2019 com uma viagem que fiz à Índia. Foi uma viagem muito transformadora, para mim. Mas nunca me conheci como uma pessoa plena e que está bem. Fui sempre uma pessoa insatisfeita, triste, solitária, mas não porque queria. E, neste momento, sinto-me bem exatamente com aquilo a que tenho acesso.


G. – Para além de cantora e compositora, és também escritora e atriz. De que forma cada uma destas áreas artísticas te auxiliam quando trabalhas individualmente em cada uma delas? Ou seja, de que forma a tua experiência como atriz te ajuda a compor? Ou como é que o teu canto apoia a tua escrita, por exemplo?
R. D. – Durante algum tempo, tentei compartimentar [as diferentes áreas]. Ou sou cantora, ou sou atriz, ou faço rádio. Calma, respira! Porque nas outras tarefas, conduzo, respiro, cozinho, vou passear a Ôlinda e isso não quer dizer que eu seja passeadora da Ôlinda, que seja condutora ou cozinheira. As coisas combinam, tudo flui e está a acontecer ao mesmo, com a mesma pessoa. Portanto, relaxei em relação a isso e ao compartimentar. A relação mais evidente talvez seja entre o teatro, a música e a escrita. O teatro dá-me um à-vontade muito grande na chegada ao palco. O palco nunca me afligiu. Fico nervosa, claro, mas o palco nunca foi uma coisa que me tenha afligido. O teatro dá-me técnicas para chegar a um palco e saber onde estar, saber jogar com as luzes, há um conhecimento técnico que tenho agora, que antes não tinha, e que ajuda. Posso transformar um espetáculo numa coisa muito mais interessante para quem vê. A escrita ajuda-me nas minhas composições. Quanto mais escrevo e mais leio, mais melhoro a qualidade das minhas canções, mas, sobretudo, aquilo que me faz tirar os pés do chão é viver. As experiências que a vida me tem dado, as pessoas com quem me cruzo, ter uma boa conversa como a que estou a ter contigo. Estas experiências mais emotivas é o que liga todas as áreas.


G. – Pensando no teu livro de poesia, O encontro do tempo ternário, que marcas diferenciam o tempo da mulher?
R. D. – Esse tempo ternário foi o encontro de três jornadas. Não as associo tanto à jornada feminina, foi a minha. Não escrevi com essa consciência. Percebi tarde a importância dos feminismos. Foi quando comecei a trabalhar em contexto laboral que percebi porque ouvi e vi coisas que não me faziam sentido. Comecei a ser mais sensível e a ler sobre. Acho que há uma fase fundamental na vida das mulheres que é quando tens o período e acho que nos conectamos muito pouco com a importância que isso tem na vida. É quase como se fosse uma coisa chata, horrível que temos de suportar todos os meses. Há pessoas que têm dores com isso e que isso representa doenças muito concretas, outras têm muito corrimento, outras pouco. E nós ligamos muito pouco a esse momento de criação mensal que temos o privilégio de ter. Essa negligência constante a uma parte fundamental da vida da mulher, acho que é uma das nossas grandes castrações, quase como se não fossemos puras porque o sangue nos escorre, quando, na verdade, é o oposto. Vamos tendo vários tipos de castração. Quando começamos a trabalhar, a conjugação entre o trabalho e a família, ou quando temos de escolher dedicar-nos ao trabalho ou a uma relação. Ainda não consegui evidenciar quais são essas fases da mulher, mas a minha poesia não esteve relacionada com as três fases da mulher, estava relacionada com três fases minhas. Em relação à mulher, acho que é muito relativo a cada uma. Agora, que a primeira grande mudança no corpo da mulher é muito negligenciada e que isso condiciona grande parte das decisões, da forma como ela se vê e olha, acho que isso sim, pode ser uma primeira fase.
G. – “Eu quero crer para ser” (“Espirro”). Em que crês, hoje?
R. D. – Creio no amor. Não necessariamente no amor romântico, mas, no fim de tudo, quando me deito, acredito que esse lugar de luz existe em todas as pessoas. Acho que há quem tenha o privilégio de o sentir de uma maneira mais forte e intensiva ao longo das suas vidas, pelas escolhas que faz, há quem não tenha essa possibilidade. Mas mesmo pessoas que nascem em situações tão duras, por vezes têm esse amor tão gritante. Creio no amor que nos liga e que, muito por detrás dos nossos egos e dores, existe em cada um e cada uma de nós.

