A Ambigular assinalou o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, que se celebra esta terça-feira, 17 de maio, com a publicação de uma nova história: a de Karim, um jovem mulçumano, requerente de asilo em Portugal, e natural de um país da África Oriental.
“Sou um requerente de asilo em Portugal, e sou homossexual, parte da comunidade LGBTQ." Assim se apresenta, na primeira pessoa, Karim. “E agora vivo em Lisboa, e trabalho aqui."
A Ambigular – que trabalha técnicas de storytelling com comunidades em situação de exclusão social e cultural – é uma organização que publica histórias, na perspetiva de quem as vive, de forma a cocriar “uma representação mais justa”.
Esta é a história de Karim, até chegar a Portugal:
Tradução para Português:
“Eu chamo-me Karim, há muita gente que não conhece o meu país. É um país pequeno, no este de África. Estou em Portugal desde há cerca de um ano, acho que desde junho.
E sou um requerente de asilo em Portugal, e sou homossexual, parte da comunidade LGBTQ. E agora vivo em Lisboa, e trabalho aqui.
Na família onde cresci... Para mim, era assim uma espécie de tristeza. Posso dizer isso. Assim um bocado... não exatamente uma prisão, mas uma mentalidade, contra tudo o que eu estava a pensar. A infância que eu vivi lá não foi a melhor.
Não nasci numa família grande: duas irmãs, um irmão, eu e os meus pais. Os meus pais, como o resto da família, eram muito presos às tradições, muito religiosos, e eu cresci nesse tipo de ambiente. E na minha infância, não era fácil, porque eu tinha umas maneiras, tipo a maneira como falava, quando era criança, e eles estavam sempre lá para me educar, como devia falar, o que devia dizer... tinha de ficar junto dos meus tios, tinha de ficar com os homens, não com as mulheres.
Lembro-me ainda hoje destas calças que eu tinha, mesmo lindas, com flores e tudo, que tinha comprado com o meu dinheiro, e a minha mãe pegou nas calças e cortou-as com umas tesouras, porque, “não, é para raparigas, como é que podes usar uma coisa destas?”
E a casa não era bem a coisa normal, a mãe, o pai... eles estavam sempre de volta do meu irmão mais velho, porque na nossa tradição, na minha família, os homens valem mais do que as mulheres e, por essa razão, o meu irmão mais velho era o menino dos olhos dos meus pais, e eu era aquele que... não.
A única pessoa de quem era próximo na minha família era a minha irmã. Ela era como uma psicóloga, estava sempre a partilhar coisas com ela, e ela estava lá para me motivar.
Quando estava a crescer, naquela família, eu era sempre aquele que fazia imensas perguntas. Eu sou Árabe, consigo entender o sentido das palavras no Corão. E quando comecei a entender o significado do Corão, comecei a fazer perguntas. Foi aqui que começaram os problemas. Eu era uma criança, 10, 11 anos, e tenho este exemplo, quando rezas, como muçulmano, há uma parte em que se fala das pessoas que vão para o inferno, e eu dizia que isso não tinha lógica, e a resposta deles era “estás a rejeitar as palavras de Deus, estás contra Deus”, e nesse dia a minha mãe deu-me uma bofetada, para me educar.
O que eu vivia em casa era diferente da minha vida na escola, porque quando andava na escola, quando era criança, eu tinha as melhores notas, era o melhor aluno da turma, e assim tinha quase dois mundos na minha vida.
A casa e a escola.
Agora posso dizer que a única coisa que me ajudou, que realmente me ajudou, foram os comentários dos professores, do estilo, “tens sempre ideias”, faziam sempre comentários positivos, não eram como a minha família.
Desde a infância que sei que não sou como os outros homens, que dizem, “ah aquela rapariga, que bonita”. Lembro-me que o meu irmão mais velho tinha um melhor amigo, e ele era atraente, e eu adorava brincar com ele quando era pequeno, e não era bem uma amizade como as outras para mim. Talvez ele tenha sido o meu primeiro amor.
O sentimento que eu tinha quando via rapazes era um bocado estranho, não era um sentimento normal, não era como na amizade, e então é claro que me questionava, o que é este sentimento, e comecei à procura. Descobri que há outras pessoas como eu no mundo. Descobri que há gays, uma coisa que se chama gays.
Foi assim que fiquei a saber que a homossexualidade existe e percebi que a homossexualidade não é um crime. Sempre me disseram que os homossexuais são “gente de Lut”*, que vão ser mortos por Deus, que cometem um crime grave. Não acredito nisso.
No meu país, ser homossexual, tu nem sequer podes dizê-lo, não podes pronunciar essa palavra. É mais ou menos proibido ser homosexual, e a palavra homosexual não existe nas bocas deles, é sempre, como é que posso dizer, tipo paneleiro, palavras muito homofóbicas. E se tu falares como as raparigas falam, e alguém te insultar, te magoar, te bater, te fizer mal, tu não podes ir fazer queixa e dizer, por exemplo, “ele é homofóbico, ele fez-me isso”, vai ser a pessoa, vai ser o homossexual que vai acabar preso. Porque deves ser um homem, e não deves dizer estas coisas. Talvez a própria polícia te bata na esquadra.
Eu conheci um rapaz quando andava na escola e éramos amigos, tornámo-nos amigos. Por essa altura, eu tive de adotar uma maneira diferente de falar. Torna-se cansativo estar sempre a ouvir, “não fales dessa maneira”, então tens de te conformar, para viveres em sociedade.
Mas o Hasan, o nome dele era Hasan, ele não conseguia fazer isso, era a sua maneira de ser, a sua maneira de falar. Eu lembro-me que na escola estavam sempre a chamar-lhe “Hasna”, a versão feminina de Hasan, só para o insultar. E quando nos tornámos amigos, foi quando fui falar com ele, e ele ficou uma bocado... foi estranho, eu respeitei-o, do tipo, “porque é que estás a falar comigo?”, ao contrário dos outros.
Quando o conheci, eu entendi, e é claro que ele também entendeu.
Lembro-me de uma vez em que ele foi à minha casa, como um amigo normal, e lembro-me de a minha mãe e toda a gente dizerem, “como é que tens um amigo destes?”, ya, foi mau.
Depois disso ele teve grandes problemas. A família dele vinha de uma vila muito, muito pequena, e levaram-no para lá, se calhar para mudá-lo. Depois disso, nunca mais o vi.
Eu estava só a tentar encontrar uma maneira de ir embora e não voltar, não viver mais aquela situação. Porque podes respirar, mas não há oxigénio. Quando eu vivia lá, para mim era assim.
Fui estudar para a Turquia. Foi o melhor dia da minha vida.
Quando me mudei para a Turquia, comecei a viver um bocado a minha sexualidade. A primeira coisa que procurei no google foi encontros com rapazes. E a coisa boa, posso dizer que é mesmo uma coisa boa, é que eu não era muito religioso, não como a minha família. Na minha vida, conheci muçulmanos homossexuais que não se aceitam completamente a si próprios. Estavam sempre a rezar, conheci muitos rapazes assim na Turquia, por exemplo, quando fazíamos sexo, depois perguntavam-se, “mas por que é que fiz isto”.
E eu não era assim porque a cada ano que passava, eu percebia melhor a religião, e que não é um pecado ou errado, ou alguma coisa que me vai levar para o inferno, por ser “de Lut”. Percebi que eles é que estão errados, eu não. E expliquei isto a todos os gays muçulmanos que conheci, e alguns deles sentiram algum conforto e viram que aquilo que eu dizia tinha alguma lógica.
A minha melhor amiga, na Turquia, andava comigo na universidade, e depois de dois anos de amizade ela continuava a perguntar-me, “não estamos nos nossos países, porque é que não tens uma namorada, sê livre”, e eu olhava para ela, digo, não digo, digo, não digo, e um dia disse-lhe.
Ela ficou muito tipo “wow”, e fez-me imensas perguntas, do estilo, o que é que sentes quando vês uma rapariga, o que é que sentes nanana, esse tipo de perguntas, porque para ela era uma coisa nova, porque falávamos o mesmo dialeto. Ela estava assim, “um que fala como eu, com as mesmas tradições que eu, e é assim, existe mesmo?”
Conheci um rapaz quando estava na universidade e comecei uma relação com esse rapaz. Nessa altura, a minha família não sabia com clareza que eu era homossexual. Quando as coisas não deram certo com o meu ex-namorado, e ele também era um rapaz Árabe, e conhecia bem as tradições de famílias Árabes, como a situação é... e para me magoar... não fui eu que fiz o meu “coming out” à minha família, foi ele.
E desde esse dia, há talvez dois anos, que não falo com nenhum deles, com a minha família. A última frase que me lembro de ouvir a minha mãe dizer - nesse dia, eu falei com a minha mãe, não falei com o meu pai, foi algo assim, “preferia que não tivesses nascido”, “preferia ver-te morto”. Foi uma coisa assim. Desliguei o telefone e continuei com a minha vida.
É claro que nessa altura eu não era muito forte psicologicamente, mas era como estar num ringue de box, e levas um murro da pessoa à tua frente, e aguentas, mentalmente. Eu era assim.
Sempre tive a motivação de que tudo vai correr bem, de que tudo vai correr melhor, como quando tinha a minha irmã, e ela dizia-me que um dia tudo ia ficar bem, para não me preocupar.
Quando tinha uns 18 anos, perdi a minha irmã para as tradições da família, ela foi casada, sem escolha, foi a minha família que escolheu.
Depois da Turquia, vim para Portugal, mas passei uns meses no Luxemburgo. Foi lá que conheci o psicólogo errado, era um homem mais velho, nunca me vou esquecer dele. Ele disse-me “o teu país é como o Irão, há pena de morte para homossexuais?”, e eu disse “não, é um crime, mas podes ir para a prisão”, e ele disse-me “talvez a prisão seja um bom lugar para ti”.


Eu olhei para ele e fui-me embora daquele psicólogo, e quando não consegui resistir a esta situação, tudo na minha vida... Comecei a pensar em suicídio. Nunca penso nisso a sério, às vezes na escola secundária pensava nisso, mas não era a sério. Lembro-me que naquele dia foi a sério. E passei um mês e uma semana no departamento de psiquiatria para tratar da minha depressão.
Esse mês foi um dos bons momentos da minha vida, conheci muitas pessoas, e muitos bons enfermeiros, que me entendiam, que estavam do meu lado. Estava a descobrir pessoas que eram boas. Não viam nada de errado em mim.


Esse sentimento, quando explicas uma coisa, e tens a sensação de que não és uma pessoa errada no mundo, é a melhor sensação que um ser humano pode ter.
Depois do departamento psiquiátrico, conheci uma psicóloga, uma mulher mais velha, às vezes ainda falo com ela, ela foi boa para mim, e ajudou-me muito.
E em junho do ano passado, quando vim para Portugal, também comecei a conhecer esse tipo de pessoas, por exemplo no CPR [Conselho Português para os Refugiados]. A psicóloga não era como uma psicóloga, era como uma amiga.
A coisa nova é, todas as pessoas, todos os gays que conheci, portugueses, eles dizem “tinha um ex-namorado que ia lá casa, blablabla, e a minha mãe sabia.” Para mim isto foi estranho. Tipo, como assim? A tua família sabe que és gay? Foi uma coisa nova. Mas ao mesmo tempo boa e tranquila. Porque até hoje, quando digo que sou requerente de asilo, ou que sou homossexual, e eu digo isso abertamente, nunca tive uma reação mesmo má.
Quando vives com pessoas que não são tóxicas, que têm mais ou menos a mesma mentalidade, isso é o que significa viver tranquilamente.
Hoje tenho 24 anos. Descobri alguns talentos ao longo disto tudo, por exemplo, consigo entender os outros, ajudar pessoas que têm problemas.
E hoje, ao contrário de antigamente, quando alguém que não me conhece diz, “aquela rapariga é bonita”, eu consigo dizer facilmente, “não gosto de raparigas”. Antigamente eu não imaginava que um dia viria a dizer esta frase facilmente, ser abertamente homossexual.
Ao longo da minha vida, quando saía com rapazes do médio oriente, que conhecia nas aplicações, nas gay apps, e quando falávamos, eu via e sentia que não era o único a viver esta luta, com a nossa comunidade e família. O que eu quero fazer um dia, é fazer alguma coisa pelos homossexuais destes países. Porque os homossexuais de países abertos, Portugal, a Europa, não é bem a mesma coisa, não é a mesma luta que é a oriente. E eu desejo vir a ajudar todas estas pessoas LGBT um dia, e desejo que elas não percam a esperança.
Não devia haver um único homossexual na Terra a sentir-se triste. Todos os homossexuais deviam ser felizes. Toda a comunidade LGBTQ+-. É tudo.”
*Lute ou Lut no Alcorão é considerado um mensageiro e profeta de Deus. Na tradição islâmica, a sua história é usada como referência pelos muçulmanos para demonstrar desaprovação de Deus pela homossexualidade.