fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Shahd Wadi

Um cheiro de guerra pela manhã

“e pelas ruas o sangue das criançascorria simplesmente, como sangue de criança”Pablo Neruda Cedo, Isabel…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

“e pelas ruas o sangue das crianças
corria simplesmente, como sangue de criança”
Pablo Neruda

Cedo, Isabel responde à minha mensagem com outra nada relacionada: começou a guerra. Há demasiado pouco tempo tive um acordar parecido com este, também com cheiro a chumbo. Um acordar que me dizia: bombardearam Gaza outra vez. Não é de espantar, as guerras começam quase sempre pela manhã. São tão cobardes, que se iniciam enquanto dormimos. Distraímo-nos com um sonho que nos convida a fechar o olhar e, precisamente por detrás das pálpebras trancadas com cansaço, atacam.

Na minha infância a guerra, qualquer uma, também sempre se anunciava de madrugada. O bafo da morte fedia na nossa pequena televisão da cozinha, acordando primeiro a minha mãe. Enquanto bebia o seu café amargo, sacudia os cadáveres para longe do seu corpo para poder depois ir limpar as remelas dos nossos olhos enquanto dava a notícia sobre a morte. Com a arte de ser a minha mãe, misturava bem as palavras dadas às crianças com aquelas que trocava com pessoas adultas. Disso, nasce-lhe uma fala político-infantil homogénea. Na verdade, bastava-nos ver o cheiro da guerra refletido nos seus olhos para entender as implicações da guerra do Golfo, do Líbano e sobretudo da Palestina. Percebíamos perfeitamente (o que não é nada perfeito) que houve um massacre em Hebron e que não haverá festa.

Também esta manhã sinto o cheiro da guerra vindo de um lugar bem distante da minha memória, bem próximo do meu presente. Procuro os bombardeamentos de notícias como faço habitualmente em qualquer guerra. Encontro a mesma imprensa, com as pessoas que não estão a ver mesmo estando e aquelas que se esforçam para se tornar no próprio lugar. Perco o fôlego entre as televisões, os jornais, os podcasts e as redes sociais de línguas e lugares diferentes. Sigo as novidades com um ponto de interrogação. É a minha vez de confundir os nomes, as razões, as estratégias, os lugares e os mapas. A palavra “refugiados” soa-me tão familiar, a imagem parece-me quase idêntica. Entendo que não é assim para toda a gente. Vejo fronteiras a fecharem-se a uma tonalidade de pele e abrir os braços a outra, como se o racismo invadisse a própria invasão. Vejo que quem aponta para mim chamando-me “terrorista” é a mesma pessoa que, a quem, como nós, defende a sua terra, apelida de “herói”. Ouço jornalistas a distinguir entre uma guerra e outra. Entre uma pessoa a fugir e outra, como se qualquer guerra fosse capaz alguma vez de se tornar normalidade. Vejo a solidariedade a tornar-se seletiva, como se houvesse vidas que merecem o choro e outras não.

Não encontro o rasto do fogo enquanto o tento seguir, mas não desisto. Fico mais perdida, mas ainda mais perseguida por um idêntico cheiro a morte que me esbofeteia em cada ecrã. Curiosamente era o mesmo podre que nos cegava a partir do pequeno televisor da cozinha dos meus pais. Podem todas as pessoas que protestam, comentam e analisam esta guerra dizer outra coisa, mas as minhas narinas não me enganam, cá e lá, o cheiro da guerra é um cheiro de guerra. Vejo os mesmos estilhaços a atingir a cara, mas não a força, de uma mulher. Vejo a mesma sabedoria que faz nascer o mundo numa criança que cresceu antes do seu tempo. Vejo as mesmas lágrimas, aquelas que desaparecerão em breve e as outras que aprisionarão alguns rostos para o resto da vida. Ouço o mesmo som de bombas. Percebo que as botas do invasor são botas de invasor. Uma vida perdida é uma vida perdida. Não faço análise política, tantas são as direções para onde os dedos podem ser apontados, não entro na complexidade cinzenta de uma guerra, mas não fico indiferente, não fico indiferente, não fico indiferente a um acordar em mim de um lugar meu e de outro que nunca me tinha passado pela cabeça. Dois lugares que se encontram numa palavra maior que as próprias letras: guerra.

Falo com quem partilho uma guerra e uma amizade nesta também minha cidade. A guerra?, pergunto-lhe. Percebe que não me estou a referir à nossa. Responde: acordei com o odor que conhecemos tão bem, tapei o nariz, o meu corpo está demasiado furado com as balas que o atravessaram e as outras que estão a caminho, já não me cabem mais guerras. Já não me cabe mais morte.

Tem razão. Com tantos muros e bombas, afogados são os nossos corpos que nasceram do ventre dos escombros das guerras. Desligo o seu som. Já me basta uma. Desvio o olhar. Finjo que não há nenhuma guerra, nem aqui, nem ali, nem dentro de mim. Leio um poema ao meu amor enquanto me toca uma música. No entanto, nenhum vinho triunfa no levar para longe de nós aquela vida que se perdeu entre o meu olhar e o seu ouvido. A sua partitura é assombrada por uma memória de uma guerra passada e o meu poema não é nada mais que a penumbra de um eu que existe a partir de guerra. Todas as guerras matam o poema, a música, a papoila e o beijo. Logo pela manhã.

- Sobre Shahd Wadi -

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010).  Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua. 

Texto de Shahd Wadi
Fotografia de Iman Simon
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

4 Julho 2024

Exames nacionais? Não, obrigado

3 Julho 2024

Carta do Leitor: Programação do Esquecimento

2 Julho 2024

Mérito, PIB e Produtividade: a santíssima trindade em que temos de acreditar

27 Junho 2024

Carta do Leitor: Assim não cumpriremos abril

25 Junho 2024

A culpa e as viagens

20 Junho 2024

Carta do Leitor: André, cala-te só um bocadinho…

18 Junho 2024

Tirar a cabeça da areia

18 Junho 2024

Carta do Leitor: O argumento romântico para a participação política

13 Junho 2024

Ansiedade Política: Como Lidar com a ascensão da Extrema Direita?

11 Junho 2024

Sobre o Princípio de Reparação do Dano Ambiental (e a Necessidade de Tutelar o Direito ao Ambiente)

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [para entidades]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0