Em 2022 comemoram-se 40 anos da descriminalização da homossexualidade em Portugal. Este marco, que acontece com a publicação do Código Penal de 1982, possibilitou o começo de uma jornada de várias lutas, algumas conquistadas e outras ainda por conquistar. Sabemos que as várias alterações legislativas não são suficientes para eliminar a estigmatização. A homo/lesbo/bi/transfobia ainda existe.
A repressão legal contra homossexuais e lésbicas
A primeira legislação da época contemporânea que reprime as chamadas sexualidades dissidentes remonta ao século XIX. A instauração do Código Penal de 1852 pune, embora indiretamente, a homossexualidade, através de crimes de “atentado ao pudor”.
Com o início do século XX, e a instauração da República, é inaugurado um novo período repressivo contra homossexuais e lésbicas. Falamos da lei de 20 de julho de 1912, sobre mendicidade, que condena “aquele que se entregar à prática de vícios contra a natureza”. Esta lei será a única relativa à homossexualidade que refere o género, permitindo a detenção tanto de homens como de mulheres.
Quando Salazar chega ao poder, a legislação já em vigor contra homossexuais (e lésbicas) é mantida. E apesar das várias alterações que aumentam a repressão, só em 1954 se substituem várias disposições do Código Penal, como foi o caso dos artigos 70º e 71º. O primeiro enumera as medidas de segurança (internamento em manicómio criminal, caução de boa conduta, liberdade vigiada ou interdição do exercício de profissão) a aplicar, entre outros, axs que se entreguem “habitualmente à prática de vícios contra a natureza”, como refere o artigo 71º. Esta legislação só se altera depois da revolução.
O 25 de abril não foi “o 25 de abril dos direitos homoafetivos”
Quando se dá a revolução dos cravos, o clima é de euforia e mudança. Aquele momento trazia a luz da esperança, do nascer de um novo dia que traria consigo valores de liberdade, incluindo a liberdade sexual. No entanto, não é o que sucede. As liberdades ao nível da sexualidade não surgem imediatamente após derrube do regime fascista.
Terminada uma ditadura de 48 anos, o desejo de se fazer ouvir era forte. Ainda durante 1974 assinalam-se algumas tentativas de mobilização: na primeira comemoração do Dia do Trabalhador, na cidade do Porto, na qual surge um cartaz “Liberdade para os Homossexuais” e 13 de maio do mesmo ano, o jornal Diário de Lisboa publica o Manifesto de Ação Homossexual Revolucionária (MAHR), intitulado Liberdade para as Minorias Sexuais. Em agosto, na cidade de Braga, é formado o Gay International Rights (GIR), que se manterá ativo até 1990.
Manifestações públicas insurgem-se contra o texto do Manifesto, nomeadamente o General Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação, que condenou “a ignóbil transcrição em jornais, que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de imoralidade sem precedentes em qualquer país em que a família e a moral existem ainda com valores.”1
Em 1981, surge o GayClub, que lança a revista Orbita Gay Macho em 1982, com conteúdos originais, trabalhos sobre HIV/SIDA, etc. Contaram também com um programa de rádio, em 19882. Anos antes, em 1980, nasce o Colectivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR). No artigo “Diferentes como só nós”, Fernando Cascais afirma que, na reunião inaugural do CHOR na sede da Culturona, foi possível juntar algumas centenas de pessoas. Mas a sua derradeira aparição acontece nos Encontros “Ser (homo)sexual”, que são realizados no Centro Nacional de Cultura, em 1982. Nestes Encontros é lançado um texto de reflexão sobre o movimento no país, “Como quem não quer a coisa”, escrito por Cascais. É também nesse ano que a homossexualidade é descriminalizada em Portugal.
O Movimento e as conquistas legais
O associativismo LGBTI em Portugal nasce a partir de dois grandes momentos: a epidemia da sida e a adesão à Comunidade Económica Europeia (1986). Por um lado, e segundo Cascais, “o movimento ganha impulso no seio de um processo mais vasto de combate à epidemia de sida e em cuja dinâmica começa por se integrar, dela tirando partido de forma notável, antes de se poderem vir a autonomizar dela, constituindo a sua própria.” Por outro, Ana Cristina Santos, em A Lei do Desejo refere que a comunidade LGBTI beneficiou da abertura proveniente de outros países europeus em matéria de sexualidade.
O movimento, apesar de situações embrionárias nos anos 80, surge com toda a força na década de 1990, nomeadamente com o nascimento da associação ILGA-Portugal, surgindo muitas outras depois desta.
Uma das primeiras exigências destas associações é a tentativa de alteração do Princípio da Igualdade, o artigo 13º da Constituição da República, no sentido de adicionar “orientação sexual” aos critérios já existentes. Em 1997 é atribuído um espaço para o Centro Comunitário Gay e Lésbico, hoje Centro LGBT, realiza-se o primeiro Festival de Cinema Gay e Lésbico e o primeiro Arraial Pride, em Lisboa. Nesse mesmo ano, os esforços políticos viram-se para a tentativa de alargar as uniões de facto a todos os casais, lei que só seria aprovada em 2001.
Nestes vinte e cinco anos, muitas lutas foram travadas. Além do alargamento das uniões de facto a todos os casais já referido, outros direitos foram conquistados. Falamos das medidas de proteção contra a discriminação no Código do Trabalho (2003), da alteração do Artigo 13º - Princípio da Igualdade (2004), da revogação do artigo do Código Penal que estabelecia idades diferentes de consentimento e reconhecendo a violência doméstica e crimes de ódio com base na orientação sexual (2007), do casamento civil (2010), da adoção (2016), da procriação medicamente assistida (2017) e do regime de identidade e expressão de género (2018).
No entanto, permanecem situações que, apesar das alterações legais, se vão mantendo ao longo dos anos, enraizadas na mentalidade social, como a homo/lesbo/bi/transfobia, o preconceito, o heterossexismo. No momento em que escrevo este texto, suicida-se Rose, uma jovem de 16 anos, vítima de transfobia. As notícias que saem sobre o caso mantêm o dead name de Rose, persistindo no erro que lhe foi imposto quando nasceu. Não aprendemos nada com a morte da Gisberta. 40 anos depois ainda há muito por fazer.
1 A citação do discurso do General encontra-se no artigo “Breve contributo para uma história da luta pelos direitos de gays e lésbicas na sociedade portuguesa” de Ana Brandão.
2 As informações sobre o Gay International Rights e o GayClub foram gentilmente cedidas pela investigadora Joana Matias, que trabalha o assunto em maior profundidade na investigação Arquivo reparativo: publicações independentes e a historiografia queer portuguesa.
- Sobre Raquel Afonso -
Raquel Afonso é antropóloga, investigadora do IHC-NOVA/IN2PAST e doutoranda em Estudos de Género. É autora do livro Homossexualidade e Resistência no Estado Novo e a sua tese de mestrado sobre o tema ganhou a menção honrosa do Prémio Mário Soares 2020. Atualmente, trabalha sobre homossexualidade, lesbianismo e resistências nas ditaduras ibéricas do século XX.
Raquel Afonso integrará o Clube de Leitura no dia 16 de abril, iniciativa criada no âmbito da programação Idade da Liberdade.