A minha viagem de Nova Shangai a Pequim demorou 10 horas. O percurso, que em tempos seria feito nos famosos “comboios-bala”, agora levava uma composição ferroviária com passageiros e carga. O comboio ia cheio de gente, que passava a maior parte do tempo a comer. Com o meu Babel com bateria, metia conversa com as pessoas que me respondiam a tudo, rindo-se de quase tudo o que eu dizia. A minha impressão de que as pessoas da China eram muito sérias estava a ser destruída pela viagem, em que toda a gente me parecia muito simpática. Confesso que não percebia se as pessoas se estavam a rir de anedotas ou de mim, mas era tudo muito amigável… Um velho sentou-se à minha frente e esteve vários minutos falando sem parar.
- Um palito andava pela rua quando viu um porco-espinho passar. O palito gritou alto, correndo na sua direção: Pára, autocarro! - Toda a gente se ria e eu também me ria para não destoar.
- Um bife de seitan mal passado e um bife seitan cozido encontraram-se na rua mas não se cumprimentaram. Porquê? - perguntou-me o homem. Encolhi os ombros, sem saber o que responder.
- Porque não são familiares! - gritou alto, com a carruagem inteira gritando em êxtase perante a anedota que eu não não percebera. Podia ser um erro do Babel, com traduções literais e significados diferentes das palavras e caracteres, mas continuei a sorrir.
O homem falou até ser finalmente levado por outros passageiros que o chamavam de “mestre”. Perguntei a uma senhora quem era e explicou-me ser o responsável por manter o bom humor no comboio. Havia “mestres” destes um pouco por todo o lado, uns contando anedotas, outros fazendo malabarismos, dançando, cantando ou tocando instrumentos musicais. A diversão era muito incentivada na China.
Acabada a refeição, a carruagem acalmou-se e pude retomar a leitura dos meus mails, os terríveis artigos enviados pela Lia e também a informação da Elizandra. Era essencial encontrar as Zheng e falar com elas.
Cheguei a Pequim às 10 horas da tarde. O sol começava a pôr-se. Tomei a decisão errada de procurar a sede do Movimento Ecomunista para descansar. Quando cheguei ao edifício, depois de uma já longa viagem de metro suspenso, a porta estava fechada. Era um antigo hotel perto da Praça de Tiananmen. Bati à porta durante longos minutos. O barulho que a minha mão fazia na porta metálica era ensurdecedor. Como era possível um sítio tão grande, com tantos andares, não ter ninguém? Passado algum tempo, os arrepios ligeiros que eu tinha sentido a meio da tarde voltaram. Senti-me febril e fraco. Para onde iria? A temperatura começou a descer e o frio começou a subir pelas minhas pernas. Eu estava bem equipado na cabeça, tronco e braços, mas as minhas calças e sapatos eram demasiado finas. Fiquei a culpar-me por ter recusado a oferta de calças e botas das camaradas de Nova Xangái. Foi então começou a chover… Primeiro pequenas gotas, que se com um vento forte horizontal se tornavam pequenos projéteis. As gotas foram engrossando até formarem um som contínuo. Abriguei-me debaixo da pala da entrada do antigo hotel. Na parede ainda se podiam ler as letras arrancadas, soletrando “M-E-R-C-U-R-E”. Apesar de estar coberto, a chuva atingia-me, empurrada pelo vento cada vez mais forte. O barulho intensificou-se - tinha começado a cair o granizo. O frio tornava-se agonizante e aninhei-me no chão, tentando tapar as pernas com as minhas bagagens e esfregando as mãos para as manter quentes. O nariz e olhos molhados ardiam sob o vento e a água que se misturava com as lágrimas que caíam. A minha cabeça pesava e tinha de fazer força para manter olhos abertos. Não sei quanto tempo fiquei ali, sem a tempestade abrandar. De repente, um clarão atingiu a minha visão. Pensei que fosse um relâmpago, mas a luz manteve-se. Um homem gritou. Depois outro. Levantei a cabeça e o mais alto segurava uma lanterna na mão. Aproximaram-se de mim, cobertos com casacos amarelos de chuva, falando sem parar. Tinha o Babel algures nas malas e não percebia o que diziam. Gritavam cada vez mais alto. O mais pequeno começou a agarrar as minhas malas, e eu segurei-me a elas, resistindo. O outro tocava-me no ombro, chamando-me para vir com ele. Tentei levantar-me, sem sucesso. Finalmente, os dois agarraram-me por baixo dos braços e não resisti. Apontei na direção das minhas coisas, encostadas à parede, e um deles sorriu-me, acenando que sim com a cabeça. Levaram-me para dentro de um veículo branco, sentando-me num banco vermelho coberto de plástico. O mais pequeno e gordinho trouxe as minhas malas e enfiou-as ao lado do meu assento, enquanto o mais alto falava muito rápido para mim. Apontei na direção da minha boca, fazendo que não com a cabeça e dizendo:
- I don’t speak mandarin.
Ligou uma luz e começou a procurar numa caixa transparente. Atrás de mim comecei a ouvir vozes:
- Guanmen!
- Gun shangmen!
O homem alto tirou um aparelho de dentro da caixa e gritou para trás de mim:
- Zhukou! Zhukou. - meteu o aparelho à volta do pescoço e saiu uma tradução em inglês.
- Shut up! I’ll close the door, don’t worry. - dizia ele, enquanto punha o fone no ouvido. - English?
- Português. - respondi-lhe. No aparelho acendeu-se uma luz azul.
- Certo. Senhor, nós somos da comissão de calor de Pequim. Somos a patrulha por causa do frio. Porque está na rua? Onde é a sua casa?
- Queria ficar na sede do movimento ecomunista… - apontei na direção da rua enquanto ele fechava a porta.
- Acho que esta já não é a sede, mudaram-se para outro lado.
Fechei os olhos. O homem pôs a mão na minha testa.
- O senhor está doente. Esteve em contacto com gado bovino ou suíno?
- Não… - Perdi os sentidos.
Quando acordei, estava num bonito quarto pintado a tons de pastel. As representações na paredes eram toda uma história. Um grupo de senhoras olhava desolada para um lago seco, com chuva à distância. Atrás, numa mesa de refeição com tigelas cheias de arroz e garrafas de vinho, um grupo de homens gordos comia, com crianças chorando no fundo. Era um pouco perturbador. Uma mulher toda vestidade branco, de máscara na boca, entrou no quarto e dirigiu-se a mim.
- Bom dia, senhor. Eu sou Ai Jun Jie. - não conseguia ver o seu Babel.
- Onde estou?
- Está no centro médico Leída de weiduolia.
- Centro Médico?
- O senhor foi resgatado na rua por uma equipa do Comando de Cuidados e mostrava sintomas de possível doença infecto-contagiosa. Fizemos-lhe vários exames e posso informá-lo que está com a tensão alta, falta de peso, tem parasitas intestinais, o seio nasal desviado, fungos nos pés e nas unhas, clamidiose e início de um sopro cardíaco. Ainda não conseguimos esclarecer os seus sintomas todos, mas já começámos tratamentos para várias destas questões desde que nos chegou.
- Desde que cheguei?
- O senhor está connosco há quatro dias.
- Quatro dias? - a minha surpresa foi enorme, para mim não tinha passado nem um. - Onde estão as minhas coisas?
- Inspeccionámos os seus pertences e estão colocados dentro do armário. - apontou para um pequeno roupeiro branco atrás de si. - Lamento informá-lo de que não poderá sair do centro enquanto não ficar claro seu diagnóstico. Estamos à espera de resultados amanhã e posso já tranquilizá-lo sobre pelo menos um assunto: Não tem Covid nem MersCovid. Mas a sua febre persistente preocupa-nos. Há quantos dias entrou na China?
- Posso ter acesso às minhas coisas?
- Sim, está tudo no armário. Há quantos dias está na China e de onde veio?
- Estou há seis dias? Isto é, há dez dias.
- De onde veio?
- Vim do Chile, cheguei a Xangai.
- Como veio?
- De avião.
- Como, de avião?
- Um avião médico de transporte de doentes.
- E estava doente com quê? E como veio de Xangai para Pequim?
- Não estava doente, só aproveitei a boleia. Vim para Pequim de comboio. - Ela anotava tudo o que eu ia dizendo numa prancheta eletrónica.
- Os outros doentes também vieram para Pequim?
- Não. Ficaram no hospital em Nova Xangái, um hospital internacional. Vim para aqui num comboio, sozinho.
- O Hospital Ecosocial Internacional. - pressenti que ela lançou um esgar de desagrado debaixo da máscara. - E esteve em contacto com quantas pessoas desde que entrou na China?
- Dezenas, talvez uma centena.
- Quem?
- Fui de autocarro do avião até à cidade. Dormi na sede do movimento ecomunista em Nova Xangái. Estava lá um grupo de antigos revolucionários lá também para uma comemoração. No comboio até aqui havia dezenas de pessoas na minha carruagem. Um animador, outras pessoas…
- Está a falar das comemorações da revolução dos jovens? Esteve com o comité revolucionário? E depois apanhou o comboio Nova Xangái - Pequim? De há quatro dias atrás? A que horas?
- Cheguei ao fim da tarde. E sim, estive com o comité.
- E o seu nome?
- Alex. Alex Águas.
- Alexandre, não é? Chileno?
- Não, sou português.
- Vive no Chile?
- Não. Em Portugal.
- OK. Vou precisar mais informação acerca de como chegou de Portugal até ao Chile.
- Para quê?
- Para fazer o mapa caso esteja infectado.
- Mas vocês já não confirmaram que não tenho nenhuma Covid?
- Sim. Mas há novas doenças por aí, especialmente vindas dos pólos, que têm potencial para serem muito problemáticas. O senhor não vai poder sair do quarto até termos a certeza sobre o seu diagnóstico.
- E isso vai ser quando?
- Assim que pudermos. Faremos o nosso melhor para que seja rápido, para o bem de toda a gente. Está na casa de quem, aqui em Pequim?
- Não estou em casa de ninguém. Estava a tentar dormir na sede ecomunista.
A mulher abanou a cabeça enquanto se dirigiu para a porta. Saiu e abriu-se uma pequena janelas retangular na porta, onde foi colocado um tabuleiro com comida. Levantei-me e peguei-o, pousando-o numa mesinha. O quarto tinha uma porta que dava para uma pequena casa de banho com chuveiro. Tentei ver a rua, mas janela era baça, não permitindo ver para fora mais do que ligeiros contornos de edifícios. Apesar de ter as minhas coisas, sentia-me um prisioneiro.
Peguei no meu telefone e liguei para Elizandra, que ficou preocupada com a minha saúde. Apesar disso, insistiu para que após a minha recuperação, procurasse Jieling e Biyu Zheng, seguindo para as Filipinas para entrevistar Dewi Rahmawati. Passei o resto do dia lendo documentos no meu computador. No dia seguinte a mesma enfermeira voltou e informou-me que tinham excluído outras doenças do meu diagnóstico. E voltou a pedir-me informação sobre as minhas viagens, que eu relutantemente lhe dei. Isto repetiu-se durante quatro dias, até que simplesmente deixei de lhe responder. Que tinha ela que ver com as minhas viagens? Neste período, outras pessoas também entravam no quarto mas mantinham-se em silêncio. Geralmente vinham com fatos cirúrgicos azuis claros e caras tapadas, trazendo-me medicamentos, unguentos e comida (em geral bastante boa). Mas todos eles se mantinham em silêncio, apesar de eu tentar falar com eles. Sentia-me um prisioneiro, mas estava a ser bem tratado. Consegui recuperar peso e lentamente fui ganhando energia, enquanto aproveitava para rever documentos. Quando os dias continuaram a passar, comecei a sentir-me bastante ansioso. A enfermeira continuava a explicar-me que não podia sair, e eu comecei a exigir-lhe falar com um médico, que ela negava com protocolos de contenção de doenças (poucas pessoa deveriam estar em contacto comigo, explicava ela - apesar de várias outras entrarem ali). No dia de Natal, entregaram-me um bolo. Quando voltei a falar com Elizandra, passados cinco dias, e ela percebeu que eu continuava no centro médico, disse-me que eu tinha de arranjar maneira de sair dali.
Essa tarde, quando a enfermeira entrou para repetir que ainda não sabiam o que eu tinha, eu estava preparado para deixar a minha atitude passiva. Quando começou a repetir as frases de sempre, cortei-lhe a palavra.
- Parece-me que você só quer que eu fique aqui a perder tempo, Ai Jun Jie.
- Não, sr. Águas. Mantemo-lo aqui para sua segurança e para segurança do povo chinês.
- Já não tenho febre, já não tenho quaisquer sintomas. Estou aqui preso há doze dias. Quero ir-me embora. Hoje. - apontei para as minhas malas, já arrumadas.
- Prometo que nos próximos dois dias terminaremos todos os despistes.
- É o que me diz desde meus primeiros dias aqui.
- Lamento, sr. Águas. Garanto-lhe que é verdade. - virou-se de costas e caminhou para a porta, que estava sempre trancada, excepto quando alguém entrava. Quando abriu a porta, eu já estava com as minhas malas às costas, empurrando para sair com ela. Dois homens com máscara, que eu não conseguia ver de dentro do quarto, agarraram-me bruscamente e colocaram-me dentro do quarto, enquanto a enfermeira se recompunha. Saíram, batendo a porta. Do lado de fora, enquanto trancava a fechadura, ela gritou:
- Comporte-se, sr. Águas.
Sentei-me na cama, frustrado. O meu plano era fraco mas pensei que conseguiria sair pelo menos para os corredores. Se havia homens do lado de fora da minha porta não havia dúvidas: eu era um preso. Peguei no telefone e procurei o cartão de Deng Ming, que tinha guardado. Devia ter feito isto logo que me tinha sentido recuperado, recriminei-me. Atendeu-me e contei-lhe o que se passava. Ouviu em silêncio e passado uns segundos respondeu-me, calmamente: “Vou ver o que é possível fazer”. Passei essa noite em branco, desesperado com o que me poderia acontecer de seguida. O meu próximo plano incluiria partir a janela com a cadeira. Também não era um plano muito bom, mas poderia atacar os homens que estavam de vigia à porta quando entrassem, e desta vez escapar. Vesti a minha roupa de rua debaixo das roupas de hospital. Não sei se passaria despercebido no exterior, mas tinha de tentar.
O meu coração palpitava no pescoço quando na manhã seguinte ouvi os passos no corredor. Quando Ai entrou no meu quarto, não tinha máscara. Fiquei surpreendido com a sua beleza, com lábios carnudos e um nariz fino mas marcado, olhos castanhos claros e pele macia. Tinha construído na cabeça que era uma mulher horrível, mas tinha rosto magnífico.
- Bom dia, Alex. - Sorriu. - Acabámos os despistes. Pode sair hoje. - Fiquei surpreendido. Ela aproximou-se de mim e estendeu-me a mão, cumprimentando-me de forma muito formal. Reparou que eu estava vestido por baixo da bata. - Não precisa levar as nossas roupas. Eu espero por si lá fora enquanto se prepara. - Peguei nas minhas coisas e dirigi-me à casa de banho. Vesti-me apressadamente e encontrei-a já fora do quarto, que cuja porta estava aberta. Caminhou ao meu lado pelos longos corredores do Centro Médico, sem sinal dos homens que antes tinham guardado a minha porta.
- Lamento que isto tenha demorado mais do que esperávamos. Se o pudermos ajudar com mais alguma coisa na sua viagem, por favor peça apoio à entrada do centro.
- O-Obrigado. - Entregou-me uma botas e calças azul escuras, que aceitei.Estendi-lhe novamente a mão e cumprimentou-me, unindo os pés num saltinho quase militar. Tinha-me passado um papel para a mão, onde estava escrito “Universidade de Pequim, Faculdade de Ciências do Clima, Departamento de Calor”. Seria esta a informação que me levaria a Jieling Zheng ou Biyu Zheng?
Já no exterior, fui logo para a faculdade (onde mais iria eu, senão lá?). Caminhei pelas ruas da cidade, fugindo das zonas de bicicletas, onde literalmente milhares de pessoas circulavam em todas as direções. O centro médico não era muito longe da sede ecomunista. Cinco minutos de caminhada e já estava a atravessar a Praça de Tiananmen, contornando os lagos da Cidade Proibida no caminho. Conseguia ver o os lagos, já sem a proteção dos antigos muros onde se tinha dado a tensão com a polícia na Revolução dos Jovens. Uma das primeiras decisões do novo Comité Central tinha sido simbólica: derrubar os muros. Agora, centenas de pessoas sentavam-se nas margens do lago e, não fosse o frio, imaginei que muitas também se banhassem naquelas águas. Em quase todas as ruas bicicletas circulavam em todas as direções, sobre as faixas vermelhas alcatroadas, enquanto as faixas verdes de peões eram a principal zona de segurança para peões como eu.
Aproximei-me dos enormes edifícios da Universidade e da Academia do Futuro, os primeiros em pedra escura e os segundos construídos num mistura de bambu e tijolo vermelho. Encontrei a Faculdade com muita facilidade, muito mais do que estava à espera. O famoso símbolo da nuvem de tempestade dentro do sol com um termómetro não deixava dúvidas. Quando cheguei ao Departamento de Calor, dirigi-me diretamente à recepção, pedindo informação sobre o gabinete da Dr. Zheng. O recepcionista, que devia ter a idade dos estudantes, respondeu-me brusca e rapidamente.
- Zheng? Qual Dr. Zheng? Há três doutores Zheng. - Enguli em seco e arrisquei.
- Não é Biyu, é Jieling.
- Ah! Sim, a Doutora Jieling. É no andar de cima, gabinete 12. Quem devo anunciar?
- Alex Águas.
- De onde vem?
- Do movimento ecomunista.
Pegou num telefone e colocou-a ao seu ouvido, começando a falar. Ouvi o que dizia, traduzido pelo meu Babel. “Um say han está aqui para falar consigo, comissária. Águas, diz que é ecomunista.”. Depois de alguns momentos em silêncio, dirigiu-se a mim.
- A Doutora não está disponível hoje, senhor.
- Quando poderei falar com ela?
- Não tenho a certeza, talvez seja melhor voltar outro dia.
- Estive retido vários dias. Tenho urgência em falar com a Drª Jieling Zheng.
- Não posso resolver o seu problema, senhor. Queira retirar-se. - o homem fez menção de sair de trás do balcão na minha direção, pelo que decidi não insistir. Agradeci e retirei-me. Ao caminhar para o exterior, reparei em algo. Se não tivesse tido tanta pressa quando entrei, teria conseguido ver as fotos de todas as professoras. Jieling Zheng estava na fila do topo, com uns 50 anos, morena e magra. Poderia reconhecê-la na rua se ficasse à sua espera. Fiquei perto da entrada umas duas horas, olhando para professores e estudantes que entravam e saíam. Eu destacava-me, com o meu fato de macaco azul e chapéu amarelo, tão diferente das cores dominantes dali, o amarelo e o vermelho.
Ao final da manhã, percebendo que a minha estratégia de esperar não ia funcionar, aproveitei a entrada de mais uma multidão de jovens e misturei-me com eles enquanto subiam as escadarias do departamento. Coloquei-me do lado contrário à recepção, para esconder-me do diligente funcionário. Alguns dos estudantes olharam-me de lado, mas na maioria ignoraram-me enquanto passávamos a entrada. Mais à frente, entraram para as portas de diferentes auditórios, e eu separei-me deles, subindo as escadas. Um corredor muito clássico, de chão, teto e portas de madeira, numerando os gabinetes. Ali estava o 12. Bati à porta e sem esperar por resposta abri-a.
Com ar surpreso, a Jieling Zheng olhou zangada para mim.
- O que faz aqui? Hoje não é dia de receber ninguém. Você é estudante?
- Não, o meu nome é Alex Águas, eu vim cá para falar consigo. - lançou-me um olhar furioso e pegou no telefone.
- Vou chamar a segurança.
- Não. Espere. Eu estou aqui para falar consigo sobre a minha mãe, Marta Garrida.
- Segurança, tenho um homem aqui a incomodar-me…
- Venho falar sobre as Asas de Borboleta. - os olhos dela arregalaram-se ainda mais.
- Venha depressa.
- Foi a Elizandra Márquez que me enviou. - de repente, acalmou-se.
- Esqueça, foi um mal-entendido. Já sei quem é o camarada. - um peso saiu do meu peito.
- Drª Jieling, sou Alex Águas. - estendi-lhe a mão e ela relutantemente respondeu.
- Comissária Zheng.
- Comissária Zheng.
- Como soube onde encontrar-me? - decidi mentir.
- Pesquisei até encontrar informação sobre si. - Atrás dela estava o quadro que Deng Ming me tinha mostrado em Nova Xangái. - Você é uma revolucionária importante no movimento dos Jovens Marxistas, fez parte das Asas de Borboleta e é uma das fundadoras do comunismo ecológico. - disse-lhe apontando para o quadro. - Acabei por chegar à Faculdade e ao Departamento. - Eu sabia tão pouco sobre ela que acabei por dizer tudo o que sabia de uma só vez, para tentar convencê-la de que sabia mais do que aquilo.
- Porque não me procurou no comissariado de calor?
- Pensei que seria mais provável encontrá-la aqui.
- OK. Tenho de ir embora em cinco minutos. Faça as suas perguntas. - manteve-se em pé, enquanto arrumava papéis, olhando para mim a espaços.
- Queria pedir-lhe se me podia ajudar a encontrar Biyu Zheng.
- Não sei dela há muitos anos. - respondeu-me secamente.
- Sou filho de Marta Garrida, do Exército Verde.
- Aqui só temos Exército Vermelho.
- Ela fez parte das Asas de Borboleta, como a Comissária.
- Eu não… - hesitou.
- A Comissária Zheng não fez parte do primeiro grupo de Asas de Borboleta? - Endireitou as costas, olhando-me de frente.
- Quem lhe deu essa informação?
- Gianrocco Fatin.
- O Gianni contou-te que estivemos nas primeiras Asas de Borboletas?
- Sim.
- Porquê?
- Estava a ajudar-me a descobrir o que aconteceu à minha mãe.
- E descobriu?
- Ela foi assassinada em 2036 no México.
- Pois, uma tragédia. - disse ela, sem expressar grande emoção.
- Sabe o que aconteceu?
- Nos meios do partido ecomunista soubemos que foi o crime organizado, o cartel de Sinaloa, se me lembro bem.
- Você é ecomunista? Conheci a minha mãe?
- Conhecia-a de reputação e uma ou outra vez cruzam-nos em algumas reuniões. E sim, fui ecomunista durante muitos anos.
- Você é uma das fundadoras das Asas de Borboleta.
- Isso já foi há uma vida atrás.
- Pode contar-me sobre a fundação das Asas?
- Foi como qualquer outra fundação. Alguém me convidou para uma reunião. Eu era uma Jovem Marxista exilada na Malásia. Alguém me disse na minha cara exatamente o que eu pensava.
- E o que é que pensava?
- Que era preciso fazer uma revolução ecomunista à escala global, que era preciso desmantelar os impérios, travar a catástrofe global e salvar a humanidade. E que estas coisas não eram não fenómenos independentes mas uma só tarefa.
- Quem é que lhe disse isto na cara?
- Sukumar e Gianni.
- E como funcionavam as Asas?
- Olhe, Alex, eu tenho mesmo de ir.
- Por favor, dê-me um pouco mais de tempo. Pode falar-me sobre a Revolução aqui na China?
- O que queres saber? - reparei que passara a tratar-me por tu.
- O que se passa com a revolução agora?
- Como assim?
- Que problemas existem agora? Com as tríades?
- OK. Senta-se. - disse-me ela, enquanto se sentava. Alguém bateu à porta e meteu a cabeça dentro. Era o recepcionista. A comissária mandou-o embora e ouvi-o afastar-se, batendo os pés e abanando um pouco o chão. Jieling tirou um cigarro do bolso e começou a fumar.
- Então, imagino que saibas que antes da revolução o comité central usava várias tríades para reprimir a atividade política indesejada. Isso incluía-nos a nós. Além disso, usavam as tríades como força bruta em vários campos de ação económica.
- Sim, sei.
- Bem, uma das coisas que fizemos foi uma aliança com algumas dessas tríades para conseguirmos depôr o comité central sem um banho de sangue. E defendemos essa aliança perante outros movimentos ecomunistas, que a denunciavam publicamente. Na altura, era o que estava correto. A Revolução dos Jovens não teria acontecido sem isso. No entanto, pouco depois da revolução, as tríades começaram a ocupar vários espaços da sociedade chinesa. Eles tinham redes de escravos por toda a Ásia, e passaram a tê-las também na China. Várias das fábricas chinesas, geridas por criminosos autorizados pelo comité central, eram das tríades. Eles possuíam impérios financeiros e de criptomoedas. Controlavam grandes fatias da Rota da Seda. Produziam e distribuíam drogas sintéticas pelo país e para outros locais. Quando o nosso novo comité central introduziu as políticas para acabar com o capitalismo de Estado e descarbonizar totalmente a economia, o conflito começou. A primeira coisa que as tríades fizeram foi uma aliança com as Forças Armadas para retomar o conflito no Mar da China.
- Como resolveram esse conflito?
- Através do que nós chamámos shandianzhan.
- O que significa?
- Ataque rápido. Com base na experiência do movimento ecomunista na Europa e América, atacámos a jugular - comunicação. Em três semanas destruímos a maior parte da infraestrutura de comunicação das tríades: acabámos com os seus call centers e datacenters, cortámos cabos terrestres e submarinos e fechámos os portos e aeroportos que eles controlavam. Ao mesmo tempo, desmantelámos as suas fontes de energia. Do outro lado, prendemos o comando da nossa Marinha e desviámos os navios que tentavam retomar o conflito no Mar da China. Enviámo-los para ocuparem o Estreito de Malaca em conjunto com ecomunistas malaios e filipinos. Afundámos as embarcações das tríades e precipitámos revoluções na Malásia, Filipinas e Singapura. Eles estavam em pânico e nós aproveitámos esse pânico para atacá-los diretamente, detendo e executando vários líderes das principais tríades.
- Isso parece quase uma segunda revolução. Funcionou?
- Desmantelámos a quase totalidade da sua infraestrutura. Mas é claro que não acabámos de vez com eles.
- E como ficou o conflito no Mar da China?
- Imediatamente de seguida, retirámos a nossa frota da zona e apresentámos a nossa visão para um Tratado dos Mares: gestão partilhada de todos os oceanos além das 20 milhas, fim das zonas económicas exclusivas, uma marinha internacional com objetivos de proteção contra piratas e conservação dos recursos marinhos e interdição da exploração dos fundos marinhos.
- Os outros países aceitaram?
- Nesse momento, o nosso país era o maior interessado em ter uma posição de domínio e éramos a maior ameaça aos nossos vizinhos. Estávamos no meio de uma onda revolucionária na Ásia, com um grande sentimento optimista. O Tratado foi aprovado por mais de 50 países e agora é ele que guarda os oceanos Índico e Pacífico. Estamos a tentar negociar expandir para o Atlântico.
- E o que aconteceu com as tríades que restaram?
- Oferecemos um acordo a mais de um milhão de membros das tríades para abandonarem as suas atividades, mudarem de local e integrarem-se no algoritmo do trabalho. A grande maioria aceitou.
- E os que não aceitaram?
- A Aliança Celeste. Eles tentaram reconstruir a sua estrutura criminosa mas não lhes permitimos regressar. Em resposta, esses monstros fizeram o maior atentado da história da humanidade. Explodiram a Barragem das Três Gargantas, que matou mais de 40 milhões de pessoas.
- 40 milhões?
- Sim. Uma catástrofe sem paralelo. A partir dessa altura, perseguimo-los sem misericórdia. Embora ainda haja tríades, exterminámos a Aliança Celeste. - Apagou o cigarro, levantou-se e fechou uma mala de pano grosso. - E agora, tenho mesmo de ir. - Estendeu-me a mão - Adeus sr. Águas.
- Uma última pergunta: como está a situação com refugiados e migrações na China? - disse-lhe eu, enquanto ainda estávamos de mãos dadas.
- Alex, isso significaria ficar aqui mais meia hora. Digo-te apenas que a independência do Tibete e o independentismo em Xinjiang não permitem estabilizar as migrações na zona, e que os conflitos na Tailândia e Myanmar estão sempre a mandar mais gente para aqui, mas que temos conseguido gerir a coisa. Agora vou-me embora. - Largou-me e mão.
- Obrigado, Comissária.
Depois da entrevista, passei uma semana a procurar Biyu Zheng, a outra militante do movimento ecomunista chinês. Ela era uma antiga estudante de medicina nos Estados Unidos, que tinha sido ativa durante a Revolução dos Jovens, mas que tinha desaparecido há mais de uma década. Não consegui encontrar-me novamente com Jieling, embora tenha ido mais duas vezes à Faculdade, sendo escorraçado pelo recepcionista do Departamento de Calor. No final acabei por informar Liz da minha falha e seguir viagem. A meio de Janeiro, embarquei no comboio rumo ao Sudeste Asiático.