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42: As colunas revolucionárias contra os bispos brasileiros

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 19.º episódio, Alex descobre mais sobre o papel revolucionário da mãe no Brasil; entrevista figuras-chave do movimento ecomunista e testemunha os impactos das revoluções, crises ambientais e alianças indígenas na América Latina.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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A minha busca nos novos caixotes do pai do Alex continuava a render resultados. Eu e Mei já tínhamos separado tudo: materiais sobre a Marta (poucos), materiais do António separados em Mundo Novo (a maior pilha) e finalmente materiais impressos que não eram de qualquer um deles em específico. Nos materiais do António havia várias agendas e cadernos de apontamentos. Algumas tinham tanto informação do dia-a-dia como atas de reuniões ou pequenas frases que talvez fossem reflexões do António. O material mais antigo tinha ficado em Lisboa. O António pertencia desde a fundação às estruturas principais do Mundo Novo, a nível internacional como nacional. Muitos dos seus documentos eram programas de transformação industrial e técnica: quantas pessoas estavam empregues em que fábricas e centrais elétricas, qual a produção de cada uma delas, quantas famílias estavam diretamente relacionadas com as infraestruturas, quanto recebiam e a quem pertenciam as fábricas. Tinha isto para Portugal, mas também para países tão variados como a Alemanha ou a Austrália. Além disso, outros documentos indicavam que participava em outras organizações, embora não se percebesse quais. Algumas notas indicavam datas e locais, mas não quem estava presente ou de que organização era, provavelmente por razões de segurança. Muitos dos rascunhos eram indecifráveis, mas em alguns casos havia uma espécie de resumo posterior, escrito também pela mão do próprio António, provavelmente anos mais tarde.

De entre esses documentos, chamaram-me particular atenção umas notas preparatórias do lançamento do movimento ecomunista e do pronunciamento.

©Nuno Saraiva

Programa

L Mil: Montar um programa que possa explicar às pessoas exatamente aquilo que queremos fazer, essa é a melhor maneira de conseguirmos disputar a narrativa.

K Sto: Sim, programa internacional faz sentido, mas é a ação que disputa a narrativa. Programa deve ser pouco mais que revolução. Programa é para o movimento, principalmente.

P Lis: Não faz sentido falar de revolução se não tivermos massas do nosso lado

K Sto: Estamos a falar disto de novo? Em que ano estamos? A secessão do Texas já aconteceu. Há uma greve geral no hemisfério norte, hiperinflação. Quem está aqui que ainda não foi preso?

E Bra: Já há um tratado mundial do clima, ainda está fraco, só vai piorar se não avançamos…

P Lis: Não é assim. Há transportes públicos gratuitos na maior parte dos sítios, distribuição pública de comida, tiraram a presidente do Banco Central Europeu…

O Man: As petrolíferas já têm os seus próprios exércitos, os avanços são remendos. Há fome. Crianças que nunca vão recuperar das ondas de calor. E continua a piorar.

J Rio: Não percebo porque voltamos à discussão de programa.

J Lua: O que vamos apresentar é o programa. Programa é o lançamento.

K Sto: E o braço armado.

P Lis: Já? Para quê? Para irmos todas presas?

A Bue: Já há descarbonária, ORCA, Clodo, qual o motivo para lançar braço armado?

L Mil: Temos de lançar braço institucional, o velho partido, e braço armado para não haver dúvida que não vamos aceitar repressão física.

A Bue: OK, mas quem é que monta braço?

K Sto: Não esta reunião. Quadros mais experientes em conflito.

P Lis: Quem?

L Mil: Não é para falar aqui

P Lis: OK, então o anúncio é com um programa internacional. E o que se faz com o programa?
M Joa: Porque esta pessoa está a fazer estas perguntas sem sentido nesta altura? Há um tratado mundial, uma parte do programa é isso.

K Sto: Esta é a altura de clarificarmos. Um pouco mais de calma, companheiras. O programa serve para agitar dentro e fora, mas a ideia é montar os movimentos e radicalizar à escala local com uma adaptação do programa ao contexto local. E pôr imediatamente o braço armado em ação.

M Joa: Onde está o texto?

K Sto: Quase pronto

L Har: Ninguém pôs na cloud, espero

K Sto: Não, está na nossa aplicação. Para ser claro, é um programa revolucionário para derrubar governos em vários países. Mas o plano de cada país será cada país que decide, claro. Mas acontece nos próximos 18 meses.

P Lis: Nós não vamos entrar.

M Mos: Nós também não.

M Joa: Não percebo então o que estão a fazer nesta reunião, o que andaram a discutir durante os últimos 10 meses. Não percebo quem montou esta reunião assim? K?

K Sto: Quem não vai entrar tem de sair da reunião. Para nossa segurança e vossa.

L Har: Sim, fazemos uma pausa e quando retomarmos começamos a falar dos prazos do grupo de redação e do lançamento do movimento, mas já só com quem fica.

Notas: Uma vez mais quem devia ter preparado a reunião achou que era só dar linhas gerais e que aqueles que resistem há anos a avançar não iam voltar a apresentar a mesma discussão de sempre. Tornaram a revolução numa profecia. Quando vives com uma profecia durante tanto tempo, a concretização também se torna uma fantasia. Ahhhh, como conseguimos ganhar?… O que nos valeu foram as borboletas. Nota - os membros permanentes das borboletas na altura eram EM, GF, LB, SB, AK, JL, AS

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De: alexaguas@voo.com 
Para: liavgoms@voo.com
Data: 25 de nov. de 2042, 09:20
Assunto: Sampa

Olá, Lia

Como estás? E o António? Finalmente cheguei a São Paulo. A viagem pelo Brasil tem sido monumental. É outro país que nunca mais acaba. Está a ficar calor por esta altura e tenho de tomar muitas precauções por causa do calor do sol e da dengue. O calor em Manaus era insuportável, só mesmo com ar condicionado consegui dormir. Por outro lado, não sei se foi por causa da língua ou por ser outra fase dela no movimento, mas aqui a minha mãe não é uma desconhecida. Muitas das pessoas sabem quem ela era pelo nome (Maria, claro) e já me contaram algumas histórias novas. Ainda assim, não encontrei ninguém além da Liz que a conhecesse pessoalmente. Muita gente da geração dela morreu nos conflitos e de doenças. Já vi retratos dela em vários sítios, especialmente nas sedes que visitei: ela foi uma das fundadoras do Exército Verde daqui, formou a escola de quadros do movimento ecomunista e ajudou a preparar o contragolpe que lançou a revolução no Brasil. A mulher fazia tudo, era incrível. Entrevistei a Comissária de Transportes e Habitação aqui da cidade, envio-te o ficheiro áudio e a transcrição feita pelo Babel. Foi uma bela entrevista. Apesar dela ser jovem, conseguiu explicar-me super bem o que aconteceu no Brasil durante anos e o que se passa em São Paulo agora. Pena que não conhecesse a mãe. Planeias voltar para Lisboa em breve? Vou falar hoje com o Gianni, porque daqui a duas semanas está a chegar ao fim da minha viagem por aqui. Podemos falar logo?

Até breve, Alx

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Entrevista com Mirabelle Smith

- Olá Mirabelle!
- Oi.
- Como falámos, eu estou a fazer uma pesquisa sobre a Grande Mudança e é óptimo poder falar sobre o que aconteceu aqui no Brasil. Obrigado.
- Não sou historiadora, mas vou dar o meu melhor. Eu posso falar melhor sobre o que aconteceu aqui na cidade, mas também sei o que aconteceu em geral no Brasil. Como você sabe, eu sou do movimento ecomunista e fomos nós que levamos essa revolução pra frente.
- Eu sei, eu sei.
- Talvez pudéssemos começar com a Revolução Brasileira e depois avançamos pra São Paulo?
- Valeu. Bem, como você sabe, a revolução aconteceu aqui no mesmo ano que na França e na Califórnia, no Ano do Leão.
- Sim, eu sei.
- Vou pegar um pouco mais pra trás, para dar uma enquadrada. É sempre difícil perceber quando exatamente está a raiz de uma revolução. Mas como foram tantas raízes no mesmo tempo, talvez o enquadramento de catástrofe climática possa ser útil. A pandemia e as grandes queimadas da Amazônia pioraram muito com o governo do Bolsonaro, e tragédias como Brumadinho, São Sebastião e Rio Grande do Sul abriram um tempo de destruição ambiental e degradação da situação política. As ondas de calor no ano 1.8 abanaram muito o governo federal e também os estaduais.
- Foi aí que se deu a independência do Sul?
- Não. Os incêndios, especialmente na Amazônia, mas também na mata Atlântica e nas Araucárias, começaram a ser usados como arma política, primeiro por bolsonaristas e depois pela Monarquia dos Bispos.
- Monarquia dos Bispos?
- Sim, um conselho de 14 bispos de igrejas pentecostais e neopentecostais: Assembleia de Deus, Maranata, Igreja Universal, Igreja Mundial. Depois do bolsonarismo, eles lideraram a extrema-direita em aliança com as milícias e com alguns narcopentecostais.
- Narcopentecostais?
- Sim (ri-se). Traficantes de drogas pentecostais, grupos armados importantes nas principais cidades. Estes grupos tiveram influência crescente na sociedade no fim do bolsonarismo. Nas ondas de calor globais morreram entre 6 e 8 milhões de pessoas no Brasil. Manaus, Belém, Cuiabá, Rio, aqui… Morreu muita gente. Apesar disso, o governo conseguiu responder a algumas demandas e houve um grande esforço para melhorar as cidades. São Paulo era a definição de ilha de calor, precisava desalcatroar, tirar carro, encher a cidade de árvores, desencanar os rios…
- Esse era o governo Lula?
- Sim, o último. Foram anos de catástrofe após catástrofe. Foi aqui que apareceu o novo covid bovino, na Amazônia e no Mato Grosso. 24 pessoas morreram logo no início, mas a pandemia não espalhou. O novo confinamento foi curto, mas bem difícil. Abateram 150 milhões de cabeças de gado no Brasil. Isso acabou com a indústria e lançou totalmente todos sectores do agro na radicalização de extrema-direita. Teve muito atentado terrorista contra escola, contra jornalista e contra político. Penso que só não teve golpe nessa altura porque os surtos de dengue atiraram metade do país pra cama.
- A Febre, não é?
- Foram três anos, mais de 200 milhões de infetadas na América do Sul. Aqui no Brasil, pelo menos uns 80 milhões, 250 mil mortes, milhões de internamentos.
- Como terminou A Febre?
- O golpe aconteceu mesmo no meio. O que acabou com a dengue aqui foi uma mistura de política contra plástico e água parada, e por outro lado a criação da indústria dos mosquitos modificados.

©Nuno Saraiva


- Os que são infetados para impedir o contágio da dengue. Como funciona?
- Os mosquitos modificados são inoculados com uma bactéria que impede o mosquito de transmitir dengue, zika e chukungunya. Você liberta as fêmeas nas cidades, que vão transmitindo esta características às novas gerações.
- Que interessante.
- É bem legal. E simples. Claro que a ultra-direita acusou de ser um veículo de espalhar dengue. Eles se tornaram uma máquina de mentira sem parar. E usaram essa, como todas, pra alimentar o golpe.
- OK, voltamos ao golpe.
- Sim. A Monarquia dos Bispos fez uma aliança com as milícias e com uma parte dos militares. Tomaram o congresso e prenderam todo o mundo, menos o Presidente, que conseguiu fugir pra África do Sul. Se eles tivessem pegado ele dessa vez, iam matar. O golpe aconteceu bem no meio de um período de fome. Eles mobilizaram as igrejas, falavam que a fome, a dengue e o fumo dos incêndios eram castigo de Deus contra o pecado LGBT e o aborto, contra esquerdista e petista. Falaram que precisava um país governado por Deus. E teve muita gente que apoiou. Além dos desesperados, os saudosistas bolsonaristas, os liberais. Eles tentaram dar golpe também na Colômbia, mas lá foram travados. Aqui não.
- Podes descrever-me o golpe?
- A gente tava esperando de um banho de sangue, então teve muito povo que fugiu para outros países. Houve assassinato e prisão de vários políticos, de lideranças trans, indígenas, de grupos de esquerda, apanhados ainda no país. Nós, ecomunistas, ainda éramos residuais, então não foi fácil apanhar a gente. Mas já tinha grupos formados para a luta armada. Armas vinham sendo trazidas para o Brasil desde o México e de França, outras fabricadas em impressoras 3D ou roubadas de unidades militares. E começamos treinando muito mais gente, que queria lutar. Os bispos tomaram as televisões e rádios, mas é preciso ser honesto, já ninguém levava muito a sério imprensa nessa altura.
- E havia Descarbonária? Neolluditas?
- Nessa altura não. Mas surgiu um grupo, a “Lança”, que assassinou um dos generais do golpe, um fantoche que fazia de presidente. Noutros países, nessa altura a Descarbonária já tava matando CEO de petrolífera. Não sei se não era a mesma coisa com outro nome.
- E o que fez o governo golpista?
- Além de nos perseguir, introduziu a lei cristã, nacionalizou a indústria petroleira, tomou conta dos armazéns alimentares e anunciou a reabertura de toda a mineração e indústria pesada…
- E quanto tempo ficaram no poder?
- Cinco meses. A revolução não perdeu tempo.
- Como tão pouco tempo?
- Poucas semanas depois de eles tomarem o poder, o Sul declarou independência.
- Quem fazia parte do Sul?
- Rio Grande do Sul e Santa Catarina. E logo começou a agitação no Nordeste. Motins, ataques contra a polícia e milicianos, as igrejas evangélicas dos bispos do golpe queimadas. E já tinha Exército Verde atuando. O governo respondeu tentando mobilização militar, mas não tinha como. Em cima disso, teve uma quebra global das colheitas de cereais.
- Mas o Brasil tinha muito, não tinha? Ainda é um dos maiores produtores de cereais do mundo.
- Tinha. Mas em vez de usarem a comida para consolidar o poder, os bispos decidiram exportar para aumentar receita. Nos portos, vários grupos roubavam a comida e montavam distribuição. Tanto grupos de esquerda como os grupos criminosos. A diferença é que nós dávamos. A popularidade dos ecomunistas subiu muito e muito rápido. O recrutamento também.
- Explica-me então como aconteceu a revolução?
- Várias colunas saíram de diferentes locais do país e marcharam sobre Brasília. A primeira saiu do Ceará, liderada pela Lúcia Benildes, liderança trans, depois começaram as colunas do Maranhão, da Bahia, do Mato Grosso, do Pará, de Pernambuco, do Paraná, de São Paulo.
- E quem estava nessas colunas?
- Nessa altura não havia muitos ecomunistas, mas estávamos em todas as colunas. A composição variava, mas eram jovens, estudantes, mulheres, trabalhadores, movimentos, sindicatos, uma misturada de povo. Todo o mundo tinha visto a revolução em França poucos meses antes. Da Amazónia vieram mais de 300 mil indígenas. Os sindicatos convocaram uma greve geral. Ilegal, claro.. As colunas foram engrossando e os aliados do governo dos Bispos começaram fugindo de Brasília. Em várias cidades, o Exército Verde tomou conta dos celeiros públicos e outros grupos ocuparam as prefeituras. Aqui em São Paulo foi até tomada a Bolsa de Valores e o Banco do Brasil, mas foi muito simbólico, porque já não tinha nenhum poder real. Em Brasília, só tinha uma multidão que eles tinham chamado para defender o “Governo de Jesus” no gramado dos ministérios, mas estava ficando cada vez mais pequena enquanto as colunas se aproximavam.
- Me fala mais do papel do Exército Verde.
- O Exército Verde estava atacando várias estruturas do governo com táticas de guerrilha faz vários dias, sabotando as linhas de abastecimento dos militares com os famosos “drones kamikaze”. Quando as colunas entraram no Distrito Federal, já tinham mais de 4 milhões de pessoas. O país estava paralisado. Do lado dos golpistas só restavam as milícias fundamentalistas e algumas unidades do exército. As colunas ocuparam o Aeroporto e o Parque Nacional. Duas colunas foram armadas e avançaram pro embate. O Exército Verde e outros grupos armados da resistência entraram em combate contra os Cruzados de Cristo, Tropa de Arão, Liga da Justiça e o famoso Escritório do Crime na zona do Teatro Nacional. As colunas armadas ficaram atrás.
- E o que a polícia fez nessa altura?
- A polícia fugiu. Nesses dias não teve polícia. Os ministros liberais e evangélicos se barricaram dentro do Congresso, esperando um levantamento do povo a favor deles ou um milagre. Quem sabe o que eles esperavam?
- E não havia um presidente deles?
- Não. Eles tinham decidido governar democraticamente entre si. Ahahah.
- Então pelo que você me descreve, só dava para se aproximar dos edifícios do governo vindo de um lado?
- Sim. Você conhece Brasília? Do outro lado tem água. As colunas que vinham do Sul tentavam atravessar as pontes, mas os militares bloqueavam o caminho. O Exército Verde estava fazendo os milicos recuar, mas com forte resistência. Os ministros acabaram fugindo pro Palácio do Planalto.
- Quanto tempo durou tudo isto?
- O combate em Brasília durou três dias. No final eles se renderam e as colunas tomaram o Planalto, depois de já terem tomado o congresso. Alguns bispos tinham fugido e se preparavam para resistir no Rio. Mas ainda durante o cerco ao Planalto, duas colunas já tinham ido para lá. E eles acabaram por fugir de avião pra Europa. Nessa mesma noite de Setembro, ao mesmo tempo em Brasília, São Paulo, Rio, Salvador, Fortaleza e Manaus, foi declarada a República Ecosocial do Brasil. Em Roraima e no Acre, os golpistas ocuparam o governo durante vários dias mais, mas acabaram fugindo.
- Foi nessa altura que o Lula voltou?
- Voltou e foi muito bem recebido. Mas não voltou para governar. A República Ecosocial não é presidencialista. Ele ainda era uma figura importante, apesar da idade, e o seu campo político, também radicalizado, apoiou a revolução. Politicamente o tempo tinha mudado, o programa político era outro. Estávamos no início das revoluções por todo o mundo, assistindo ao colapso do capitalismo todos os dias.
- OK. Bom, já tenho uma ideia mais clara da revolução. Como foi a governação depois?
- Eu posso passar mais material pra você sobre a revolução também. Nos dois anos seguintes governou uma assembleia emergencial, composta pelas várias forças revolucionárias.
- Liderada pelos ecomunistas?
- Nós estávamos na frente da execução. As nossas propostas se tinham tornado hegemónicas, e também estavam incluídas na política do Tratado Mundial do Clima, embora não fôssemos a maioria dos elementos da assembleia emergencial. Mas no início foi uma assembleia extremamente pacífica e representando os oprimidos e seus aliados. O problema era fora. A probabilidade de uma guerra civil após a revolução era muito elevada, e foi piorando. Se não tivesse havido revoluções noutros países, acho que isso teria acontecido. Felizmente nos anos seguintes, ecomunistas participaram em revoltas e revoluções por todo o mundo.
- E como foi aplicado o programa no Brasil?
- De forma confusa (ri-se). As igrejas evangélicas que participaram no golpe foram dissolvidas. Os grupos políticos e industriais que apoiaram também, com seus bens sendo apreendidos. Muita gente fugiu, as lideranças golpistas principalmente para o Sul, que teve muitos problemas por causa disso. Começamos com a reforma de terras, uma reforma agrária mas não só, planeada para integrar as necessidades do povo e reconhecer a gravidade da crise climática. A capacidade produtiva agrícola no Brasil estava em queda. O colapso da indústria de gado tinha deixado muita área vazia. Mas células dos golpistas continuavam botando fogo no Mato Grosso e Amazonas. E nas cidades tivemos de nos confrontar com o crime organizado, que ocupou muito do espaço deixado vazio pelas milícias.
- Mas houve uma divisão no movimento.
- Não foi bem uma divisão, porque nunca tinha tido a união absoluta sobre o assunto da crise climática e crise ambiental.
- Podes explicar?
- Sim. Tinha uma parte do movimento, próxima ao ecomunismo, promovendo o desmantelamento imediato da indústria fóssil pra impedir a catástrofe e baixar a temperatura.
- E a outra defendia o quê?
- A outra parte falava que era preciso ter mais calma com esse desmantelamento, porque isso ia ser muito caro pro povo, porque ia faltar energia, desindustrializar.
- Caro como?
- Você pode tirar a pessoa do capitalismo, mas tem mais de dois séculos empurrando todo o mundo pra pensar em preço como realidade objetiva. Uma parte do movimento não entendia que o preço agora era decidido por nós. Que a nova distribuição de poder implicava decidir o valor de muita coisa. Que os preços não eram naturais, mas só uma medida de poder de quem mandava sobre quem obedecia.
- E o que aconteceu com essa divisão?
- Houve uma paz meio que podre. Por um lado, o Brasil tinha deixado de emitir muito por causa do fim do gado, mas por outro, a Amazônia tava sendo destruída e emitindo muito, por causa dos calor e da seca, e por causa dos fogos políticos. Teve um acordo político para fechar a indústria fóssil nos anos seguintes, mas era insuficiente pra nós, ecomunistas. O Brasil era um dos três países mais emissores do mundo na altura.
- É, mas historicamente o Brasil tinha pouca responsabilidade…
- Isso eram os argumentos que todas as burguesias do sul tinham usado durante décadas para destruir a natureza aqui. Que tinha que industrializar e destruir aqui igual o que tinham feito Europa. Mas não tinha tempo pra fazer essa “transição” lenta. Nem sabemos ainda se chegamos a tempo de travar a catástrofe, né?
- Mas também tinha de conseguir ter o povo do lado da revolução.
- Sim! E isso se fazia e se fez transformando a economia para satisfazer as necessidades do povo, não adicionando mais capacidade produtiva capitalista para produzir coisa inútil pra população. Foi urgente distinguir necessidade de desejo. Acabando com o lixo da publicidade comercial, criámos muito mais espaço pra cultura, pro esporte, pra viver, para coisa útil pra cabeça que não implica destruir tudo. E acabamos com o trabalho inútil, distribuindo trabalho e dando um sentido pra vida das pessoas.
- Embora não tenha havido guerra civil, vocês tinham de lutar contra muita resistência. Alguma armada.
- Sim, aqui em São Paulo principalmente o PCC. Alguns grupos criminosos passaram a representar um regresso ao passado, mas diferente. Era uma espécie de progressismo conservador, que aceitava uma mudança, mas não queria ficar completamente privado dos seus negócios e do seu poder, ainda mais quando o negócio do tráfico de drogas também tava desaparecendo. A base da sua força não eram tanto as ideias, mas sim as armas e o hábito da violência fácil. Eles estavam espalhados por todo o país. Noutros locais como o Rio, o problema era o Comando Vermelho, que cresceu muito depois da revolução e com a expulsão dos golpistas. A relação com estes grupos quase quebrava a assembleia emergencial no meio. Foi nessa altura apareceu Descarbonária aqui também. Começou muita sabotagem de plataforma petrolífera, muito acidente industrial. Todo o mundo estava preparado pra uma guerra começar a qualquer momento. Mas não começou.

©Nuno Saraiva


- O que aconteceu para evitar que a guerra começasse?
- As grandes cheias de São Paulo pararam tudo. Cinco dias de chuva intensa e imparável. O rio Tietê e o rio Pinheiros subiram quase dez metros. Vários bairros foram arrasados. 50 mil mortos no centro da cidade. Dois milhões de desalojados. Nas periferias, o número de mortos é incalculável. Houve favelas que deslizaram inteiras pra dentro da lama, em Tiradentes, em Paraisópolis. Houve uma pausa importante e grande união pra parar a tragédia. A divisão não foi sarada, mas não chegou a conflito. Mas levou a mudanças dentro do movimento ecomunista, e a questões sobre a relação com o crime organizado.
- Mas os grupos criminosos estavam com a ultra-direita, não era? Nos outros países onde estive até participavam na Muralha…
- Pois, mas aqui não era assim tão simples. Uma parte do movimento passou a definir o crime organizado como um grupo social para a reinstalação do capitalismo, mesmo que nem todos fossem iguais. E mudava de país para país. Que eu saiba, a Garrida estava muito ativa nesses debates…
- A minha mãe?
- Sim, ela defendia que não devíamos fazer nenhuma concessão ao crime organizado, que eles sempre iam empurrar de volta pro capitalismo e para a violência cruel. Eu acho que ela tinha razão… Na reconstrução de São Paulo, enquanto nós tentávamos reorganizar a cidade para reduzir ilha de calor, para aumentar a resistência a cheias, eles montavam enclaves, prendiam as pessoas dentro de determinadas áreas, obrigavam elas a trabalhar para o crime… Isso afastou o movimento deles. Após as eleições constituintes, houve um mandato para acabar com eles. Que ainda não está completo, mas eles estão na defensiva há muitos anos, expulsos quase totalmente dos seus negócios. Não vou mentir, teve um momento em que eles eram a maior ameaça ao movimento, e podiam inclusive ter tomado conta de territórios, como fizeram em outros países. Mas conseguimos empurrar eles pra trás. Continuam a ter armas, continuam explodindo bomba, mas têm muito menos pessoas e muito menos poder. O seu braço econômico tá muito fraco. Temos tentado fazer um processo de reabilitação, ao mesmo tempo que desmantelamos as cadeias. Que era onde eles recrutavam mais gente.
- E como está São Paulo hoje?
- Opa, é outra cidade. Mais pequena. A população da zona metropolitana ainda tem dez milhões de habitantes, mas tem havido uma resposta positiva à conciliação urbana-rural e as pequenas cidades rurais têm aumentando, as pessoas têm ido viver para o interior. A cidade está muito mais segura, mais tranquila. As zonas indígenas no Estado têm florescido, também como resposta à Federação Internacional dos Povos Indígenas.
- E tu és responsável pelos transportes e habitação?
- Sim, da cidade.
- Como estão os transportes da cidade? E a habitação?
- A habitação está muito bem. Não tem mais gente vivendo na rua, as últimas favelas estão sendo reassentadas em casas recuperadas e reconstruídas. Estamos reutilizando muitos materiais reciclados da própria cidade, o asfalto do chão, o metal de alguns prédios demasiado altos que estamos desmantelando, e materiais novos como hidrocerâmicas ou bio-carvão. As novas casas agora estão construídas para aguentar muito melhor o calor. Não sei se posso falar isso, mas a questão da habitação está, pelo menos no momento, resolvida. E a energia doméstica já é produzida localmente em 80%.
- E transportes?
- É mais complicado. Teve uma grande tensão na cidade. Tinha mais de nove milhões de carros e o transporte público era muito incipiente. As quadrilhas dominavam os circuitos das vans, algumas até com dinheiro público, pra lavar dinheiro, mas faziam parte da infraestrutura. Tivemos de tirar todos. Expandimos o metrô, com mais duas linhas e chegando a 150 estações. E adicionamos um tram de superfície que corre 70km da cidade. Tentamos eletrificar a frota de ônibus, mas foi muito além da nossa capacidade industrial. Ainda estamos no processo de reciclar os carros, que têm sido transformado principalmente em trens. Como levantámos várias estradas para reduzir o risco de cheia, tem zonas em que os acessos não são ideais. Dá pra andar bem na cidade, mas tem algumas comunidades que ainda estão um pouco isoladas. Temos tentado aproximar as populações mais periféricas do centro também, naturalizar mais áreas, fazendo vários círculos verdes à volta da cidade, que baixa o calor, combate a seca e trava cheia - e é bonito! Temos suprido alguma necessidade de transporte com bicicleta elétrica, mas nem sempre resolve. Então, se eu comparar com a situação antes da revolução, é incrível. Mas se eu comparar com a situação na habitação, ou se comparar o sistema de transporte com cidades mais pequenas como Ribeirão Preto, ainda temos muito trabalho pela frente.
- Obrigado pela explicação, Mirabelle! Agradeço muito.
- Foi um prazer, Alex.

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A entrevista reveladora que o Alex me enviou tinha-me deixado algumas dúvidas, nomeadamente sobre as grandes alianças indígenas. Em todo o continente americano houve revoltas de comunidades indígenas, que conjugadas com a desagregação capitalista e nacionalista, levou ao surgimento de novos “países” (embora eles não se intitulassem países, mas mais nações ou povos, incluindo territórios nessas definições), alguns dos quais se tinham mesmo autonomizado. Kalaallit Nunaat, a antiga Gronelândia, era de longe o maior e mais famoso, mas Wallmapu e Patagonia, na ponta Sul da América, tinham-se tornado também conhecidos. Na Federação Internacional dos Povos Indígenas tinha havido uma forte resposta à destruição ambiental, afirmando-se uma aliança espiritual de conexão com a água, de restauro da qualidade da água, e a ideia de fazer a paz com água. Do lado americano, este movimento chamou-se “Igui, Yaku, Ko”, unindo vários povos. Uma das mais fortes correntes do movimento desenvolveu-se nas fronteiras dos desertos da Patagónia e do Atacama. Estes movimentos ligaram-se ao outro lado do Atlântico, diretamente com o movimento “Ma”, nas fronteiras Norte do Sahara. Ma e Ko tornaram-se parte de uma cosmovisão crescente sobre a ameaça do grande deserto, favorecendo os modos de vida itinerantes e frugais. A Federação Plurinacional dos Povos Indígenas tornou-se uma grande proponente desta nova visão, conhecida como MaKo.

Falei com Alex por Zoom por esses dias, quando ele partiu do Brasil rumo à Argentina e aos tempestuosos desertos de sal. Senti-o menos tenso. Fizemos as pazes depois da confusão por causa do Ettore. E preparei-me para voltar para Lisboa, também para preparar o seu regresso, embora não percebesse ainda como ele regressaria. Se calhar devia ligar ao Gianni também, embora não soubesse como é que ele reagiria à minha situação com o seu marido. Em Portugal, a Mei tinha-me confortado num momento difícil, e estava-lhe muito agradecida, mas já estava a abusar da sua hospitalidade. Além de me ajudar com os documentos, tínhamos começado a conversar acerca dos eventos no Sudeste Asiático, mas infelizmente Mei não tinha muita informação física com ela. Apesar do seu esforço para arranjar materiais na comunidade, a informação circulava mais boca a boca, pelo que acabei por fazer várias entrevistas sobre o que aconteceu na Vietname, nas Filipinas, Malásia e China, na grande crise do Mar do Sul da China que influenciou diretamente o derrube da liderança do Comité Central do Partido Comunista na Chinês, substituído pela juventude comunista.

Texto de João Camargo

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O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

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