- Gianni?
- Ciao, Alex. Come stai?
- Cansado, como já te disse. Já sabes como e quando é que eu vou voltar?
- Provavelmente da mesma maneira, desculpa. Sei que foi uma má experiência para ti. - ouvi a alteração de voz, modulada pelo Babel, que aumentou a minha irritação.
- Uma má experiência. Sim, vamos ser muito simpáticos e chamar uma má experiência à minha viagem…
- A próxima oportunidade para voltares é em meados de janeiro ou em fevereiro.
- Isso é muito mais tempo do que aquilo tínhamos falado. Disseste dois meses, não foi Gianni?
- Sim, mas é assim que as coisas são agora. É a primeira janela de navegação no Atlântico.
- E não há uma alternativa?
- Não, lamento.
Fiquei em silêncio, pensando o que ia fazer ali no tanto tempo que ainda faltava. Poderia começar a escrever e ter finalmente ter tempo para ler tudo o que ia acumulando e que a Lia também me tinha mandado.
- Alex?
- Gianni, a Lia encontrou nos documentos dos meus pais, do meu pai, algo que me interessa. É sobre as Asas de Borboleta. O meu pai escreveu que eram o que permitiu o sucesso das revoluções. Ele escreveu uma série de iniciais sobre as Borboletas antes do início a sério do movimento e vi lá escrito GF. És tu, Gianni? - seguiu-se uma pausa de alguns segundos.
- Sim, sou eu. - Porque tinha ele hesitado?
- Boa. Podes dizer-me a quem pertencem as outras iniciais? EM, LB, SK, AK, JZ, AS? Sabes quem são, não sabes?
- Sim, sei quem são, envio-te um mail com os nomes das pessoas.
- Podes contar-me mais sobre as borboletas? Como surgiram?
- Não é uma história simples. Basicamente, nós éramos… Não diria auto-nomeados, mas um grupo de pessoas com ideias semelhantes, de diferentes secções de movimentos em diferentes partes do mundo. Fomo-nos apercebendo através de várias conversas da existência uns dos outros e do nosso alinhamento político. Muitas vezes o alinhamento era até mais pessoal que a nível das organizações. Começámos a procurar-nos uns aos outros para articularmos componentes do movimento e criar um plano geral, não muito rigoroso e rígido, mas tendo em conta o que precisava de acontecer. Pensávamos nos prazos que tínhamos, nas oportunidades que precisávamos de aproveitar, nas oportunidades que precisávamos de criar. E assim tomámos a iniciativa de nos articularmos.
- OK, mas quem é que pensou nisso?
- Várias pessoas, provavelmente conheces algumas delas. Para além de mim, a Liz foi certamente uma dessas pessoas.
- Então vocês eram uma espécie de comité central?
- Não lhe chamaria isso, durante muito tempo nem tínhamos nome. Era tudo muito mais orgânico, éramos um pequeno grupo informal que reunia regularmente e de forma sigilosa para poder pensar nos três meses, seis meses, um ano e dois anos seguintes, para ver o que existia e o que faltava e o que podíamos fazer em relação a isso.
- E as Asas existem há quanto tempo?
- Oh bem. Começámos a reunir-nos muito antes de qualquer das revoluções acontecer.
- E tu estiveste lá sempre? A Josephine também esteve, não foi?.
- Estive algumas vezes, vários anos. Eu tinha uma posição de ligação e era bastante influente na Europa. À medida que a situação avançava em termos de objectivos, eu era muitas vezes chamado de volta às Asas para dar feedback sobre a situação atual e o que precisava de acontecer. Com o início das revoluções tornou-se uma coisa mais oficial, mas nunca completamente oficial.
- E ainda há Asas?
- Sim, acho que sim.
- E já não estás?
- Não, já não estou há muito.
- Eu conheço alguém que esteja agora?
- Eu não sei quem tu conheces, espero que muito mais gente agora, mas a Josephine estava até há pouco.
- O que fazem agora as borboletas, depois da Grande Transformação?
- Isso terás de perguntar a elas, como te disse há anos que estou afastado. A sua missão principal agora deve ser evitar que as coisas voltem para trás. Consolidar as vitórias. E pensar em todos os novos problemas que agora existem. As borboletas já não são só sete ou oito, como há muitos anos atrás.
- Envias-me então a lista dos que estavam contigo nas Borboletas? Das diferentes vezes? - concordou.
- Gianni, quero voltar a uma conversa que tivemos há algum tempo. Tenho pensado muito durante as minhas viagens e quero juntar-me ao movimento.
- Como assim?
- Quero aderir ao movimento ecomunista, tornar-me membro, como os meus pais.
- Mas por alguma razão específica? Ainda há pouco estavas a queixar-te da burocracia dos relatórios…
- Sim, sim, preferia fazer outras. Mas posso fazer o que for necessário. Compreendo que as coisas não estão resolvidas, que há muitas coisas que têm de acontecer. Olhando para os meus pais, para a minha mãe, acho que não posso simplesmente manter-me afastado.
- O teu pai pensou que podias pelo menos ter a opção de não seres atirado para o movimento só porque os teus pais eram ambos militantes…
- Sim, foi essa a escolha dele. Mas eu quero aproveitar este momento para me tornar oficialmente membro.
- Provavelmente isso precisa de acontecer em Portugal.
- Porquê? - Pensei para mim como era estranho o movimento ser internacional e ter que me juntar só nacionalmente. Haveria na história algum movimento mais global do que o ecomunismo?
- Por uma questão organizacional. Não há pressa, pensa sobre isso, também exige muitas responsabilidades e tempo. Acabaste de ter um filho e deixaste o teu país e a tua família por algum tempo. Talvez devesses pensar melhor… Já falaste com a Lia?
- Não. Mas ela vai apoiar, ela sempre foi mais ativa do que eu. Ela vai compreender eu ter de fazer parte disto. Ela já faz. - do outro lado, silêncio. - Gianni, por favor, diz-me o mais rápido possível quando posso voltar a Portugal. Estou na última fase das entrevistas, tenho muitas coisas comigo e parto para a Argentina amanhã de manhã. Seria óptimo saber quando volto para casa e onde ficarei entretanto.
- OK, Alex. Informo-te assim que puder. Arrivederci!
Fiquei três dias na cidade de São Paulo, uma cidade muito verde e animada. Entre as coisas que mais me impressionaram estava o zumbido constante de drones nos céus e os cartazes brilhantes que cobriam vários prédios. Companheiras explicaram-me que estes cartazes, além de embelezarem a cidade, eram construídos com microcélulas fotovoltaicas inventadas na antiga Universidade de São Paulo, agora Academia do Futuro. Tinham sido criadas por uma equipa internacional chamada Jugendstil, mistura de académicos com artistas, parte do movimento futurista Solarpunk. Desenvolveram no Brasil várias soluções fotovoltaicas orgânicas. Como resultado, a cidade tem muito menos painéis solares do que as outras cidades pelas quais eu tinha passado. A sua aplicação em janelas também tem sido muito difundida no país, com vantagens em termos de produção local de energia e com materiais mais simples do que os painéis solares tradicionais. Num passeio no meu último dia pela cidade encontrei-me na zona da estação de comboio, o “trem” brasileiro. Era um bairro muito bonito. Atrás do edifício da Estação da Luz havia um enorme jardim, uma mistura de pomar com hortas, cheios de gente trabalhando. Em conversa por ali revelaram-me que se chamava a Fazenda da Cracolândia. Estranhando o nome, explicaram-me que aquela enorme área se tinha chamado Cracolândia há vinte anos atrás. Naquela zona, e nas ruas adjacentes, grupos de milhares de pessoas viciadas em drogas circulavam sem destino todos os dias. Eram viciadas principalmente no que se chamava de “crack”, um derivado da cocaína. Antes da revolução, várias das igrejas evangélicas vinham recolher os “crackudos” e levavam-nos para fazendas no interior, onde lhes um davam tratamento de choque, tirando-os das drogas e fazendo uma lavagem cerebral intensa para recrutar para as milícias religiosas. Várias pessoas morriam no processo, mas as milícias iam aumentando muito a sua força. Depois a “cracolândia” foi dispersada pela cidade, espalhando uma comunidade extremamente frágil e violenta por quase todos os bairros. Após a revolução, as cracolândias ficaram menores, nessa altura os ecomunistas introduziram um sistema de recrutamento menos violento mas também bastante radical, para impedir que os consumidores de drogas continuassem a alimentar os grupos criminosos que ainda viviam do tráfico.
Continuando a caminhar, deparei-me com um enorme cartaz de uma mulher morena fardada, com o nome “Garrida” por baixo. Não havia dúvidas, era a minha mãe. O edifício pertencia a algo chamado Frota Salva-vidas. Entrei. Pessoas andavam de um lado para o outro, muito ocupadas, transportando caixas e afixando mapas e pôsteres nas paredes. Parei uma jovem com uns vinte anos e perguntei-lhe se sabia quem era a pessoa postada na fachada.
- Sim, claro. Maria Garrida, a revolucionária.
- Porque têm a imagem dela lá fora?
- Ah, cara, isso foi decisão do capitão.
- Capitão?
- Capitão Serna. Você quer que eu vá chamar ele?
- Sim, por favor.
- E você é quem?
- Alexandre Águas.
- De onde?
- De Portugal.
- Portugal? Longe! Vou lá.
Voltou passado dois minutos com um homem. Tinha uns 50 anos, cabelo branco, pele muito escura e enrugada, olhos pretos sobre pesadas sobrancelhas também pretas. Vestia uma macacão azul muito escuro, com estrelas amarelas cozidas na manga. A moça afastou-se, de volta a colar cartazes de baleias e golfinhos.
- Posso ajudar-le?
- Talvez. Aquela senhora lá fora. No cartaz.
- Maria la brava?
- La brava? É a minha mãe.
- Não!
- Sim. Sou filho dela, da Marta Garrida. - o homem sorria, os seus olhos brilhavam.
- Que maravilha. Qual é o seu nome?
- Alexandre. Alex. Você conhecia a minha mãe?
O homem abraçou-me, emocionado. Deu-me palmadas muito vigorosas nas costas, espremendo-me enquanto se ria.
- Conheci, sim! Mujer extraordinária. Conheci no México. Vim para Brasil por causa dela. - estendeu-me a mão.
- Santiago Lopez Serna! Ao teu dispor! Ao teu total dispor! Um prazer!
- Vocês eram amigos?
- Amigos, camaradas, companheiros revolucionários. Era um furacão revolucionário. - Segurou-me pelos ombros. - E tu? Que faces? O que te traz aos Salvavidas?
- Descobri-vos por acaso, por causa da imagem da minha mãe. Estou no Brasil para escrever a história da Grande Mudança e a descobrir a história da minha mãe.
- Ah, que incrível história vai ser, a história de la brava! Foi uma desgracia quando ela foi morta. Precisamos de inspirar mais pessoas, como ela fazia. Estoy aqui por causa dela. Ela recrutou-me no México.
- Recrutou-te? Não eras do movimento, então?
- Eu era da ORCA, tinha comandado navios e botes em ações contra a indústria da pesca e do petróleo. Na altura era preciso enfrentar as guardas costeiras do capitalismo, sempre a defender a catástrofe. Eu ajudei-la algumas vezes a transportar pessoas, na travessia do Panamá. Depois da revolução aqui no Brasil, ela volveu ao México e procurou-me. Eu não era do partido ecomunista, mas a Maria convenceu-me a vir.
- O que vieste cá?
- Vim ajudar a fechar o campo petrolífero Lula, frente à bacia de Santos. Depois acabei por quedar e fazer muito mais coisas por esse litoral, combater as frotas de pesca comercial ilegal e os petroleiros da máfia, do PCC.
- Você pertence ao Exército Verde?
- Não, nunca me convenceram a ser ecomunista. Aceitei o desafio da tua Maria porque ela era admirável e não ia pedir para hacer algo que não fosse importante. Saí da ORCA com outras companheiras e criámos a Frota Salvavidas. Temos um bom acordo com o governo do Porto de Santos. Usamos a nossa frota de fragatas e corvetas, e os nossos veleiros super-rápidos para patrulhar de Guaratuba até Cabo Frio. Fazemos outras missões autónomas quando descobrimos piratas, navios de pesca e cargueiros de contrabando, que normalmente afundamos.
- Mas o Exército Verde não tem marinha?
- Eles converteram alguns navios, que patrulham do Rio para cima, mas a maioria são demasiado pesados para funcionar sem motores de combustão. Então estão quase todos em doca seca, não sei se vão ser convertidos ou reciclados. Os meus veleiros, por outro lado, com velas fotovoltaicas, funcionam simultaneamente a energia solar e eólica. - Convidou-me a sentar-me num sofá. - Mas conta-me mais sobre ti. A moça disse-me que eras de Portugal. Maria era portuguesa?
- Sim. De Lisboa.
- Sempre pense que fuese espanhola, por causa de su acento, sotaque.
- Ela falava muito bem em várias línguas.
- Claro. Mujer extraordinária em todos os sentidos. Anda, vem sentar lá dentro, se tens tempo.
- Tenho algum. - Segurou-me a mão e levou-me para um escritório com uma grande janela para a rua, fechada com grades.
- Desculpa a confusão, acabamos de abrir esta sede aqui, precisamos recrutar novos marinheiros e decidimos vir para esta zona. Conheces?
- É a minha primeira vez em São Paulo.
- Uma ciudad incrível. Se a tivesses conocido antes ainda acharias mais.
- Falei com uma comissária e ela explicou-me muitas das transformações. Mas Santiago, você conhecia bem a minha mãe?
- Tão bem quanto se podiam conhecer a Maria. Não era uma pessoa muito expansiva. Mas durante um ano convivemos diariamente, quase sempre em trabalho. Eu estava cá quando ela desapareceu.
- Como, desapareceu?
- Tua mãe foi raptada e levada para o Sul. Só descobrimos mais tarde onde ela estava.
- Quem a raptou?
- O PCC apanhou ela e vendeu pra Assembleia de Deus. Deve ter sido terrível, o que ela passou lá. Mas conseguiu fugir, volvió muy mal tratada, meses depois. Depois levou sumiço, durante mais um ano.
- Que aconteceu?
- Ela foi se recuperar. - suspirou. - Quando voltou estava uma pessoa diferente, ainda mais dura, falava e sorria muito pouco. Pero voltou com uma vontade enorme de destruir a estrutura do crime. Tentei falar com ela sobre o que se tinha passado, mas nunca abriu o jogo. E se jogou no trabalho. Depois eu voltei pro México, mas continuei recebendo informação.
- Informação sobre o quê?
- Sobre ela, como coordenou o combate aos incêndios políticos e aos fugitivos europeus da Muralha, como organizou a fuga de milhares de mulheres escravizadas no Paraguai e no Sul. Depois, por azar, trocamos: em 2033 eu voltei pro Brasil e ela foi pro México, pra combater o crime organizado lá. Nunca mais vi ela. Mas tu não sabes estas coisas?
- Perdi o rasto à minha mãe há mais de quinze anos, quando ela partiu para a clandestinidade. Ela saiu de casa quando eu era muito novo e só voltei a vê-la uma vez antes de ela morrer. Estou a descobrir a sua história.
- Ela era muito dedicada à causa. E estar associado a ela era um perigo.
- Eu compreendo. Mas isso faz com que eu não a conheça. E apesar de ela ser conhecida aqui, eu não encontrei muitas pessoas que a conhecessem em pessoa.
- É, você sabe que o movimento ecomunista e o Exército Verde são muito novos, com muita gente mais nova do que você ya no comando. Muitas das pessoas mais velhas ou morreram ou se desligaram da vida política. Sobram uns véio como yo, mas poucos mais. A sua mãe também não era “famosa” assim, pelo menos não antes de morrer. Quando ela foi atrás do crime, não foi assim pra uma batalha no campo aberto, ela foi pra fazer guerra na lama. E tinha muita gente do partido que não queria.
- Não queria o quê?
- Ah, são as lutas internas do ecomunismo. O movimento não era uniforme. A sua mãe não era sul-americana, então falavam que ela não tinha razão, que era muito rígida em relação ao crime, que isso era visão européia, que ela tinha pressa demais. Mas também tinha muita gente que apoiava ela politicamente.
Depois de prometer voltar a visitar Santiago antes de ir embora (ele fez-me mesmo prometer), regressei apressadamente para a sede do movimento ecomunista. Eles tinham uma pequena biblioteca lá. Pedi a um companheiro um livro cujo título eu tinha visto em outras bibliotecas: “Debates e Polémicas do triunfante movimento ecomunista”. Eles não tinham, mas ele arranjou-me uma versão na Sampanet, que eu baixei para o meu pequeno computador.
Segui imediatamente para o capítulo 6, para a relação do movimento ecomunista com o crime organizado. Era sobre esse debate que eu percebi que a minha mãe tinha intervindo de forma tão contundente. O capítulo era longo mas destaquei várias passagens interessantes…
Guardei o computador, satisfeito por perceber melhor a luta em que a minha mãe se tinha metido dentro do próprio movimento. No entanto, precisava mais informação.
- Liz?
- Quem fala?
- Alex, Alex Águas.
- Como estás? Ainda estás por cá?
- Estou de partida para a Argentina.
- Óptimo, óptimo. O que precisas?
- Tu pertences às borboletas?
- Não é suposto saber-se quem pertence às borboletas, Alex.
- E já pertenceste no passado?
- Sim, já pertenci.
- Posso pedir-te informação sobre quem estava contigo nas borboletas?
- Queres saber sobre alguém em específico?
- Sim. Sobre a minha mãe. Ela esteve nas borboletas?
- Esteve. - Eu sabia. A minha mãe…
- Posso pedir-te os nomes das outras pessoas que estavam convosco?
- Não tenho aqui a lista completa, estive mais que um período. Mas quem te contou sobre as borboletas?
- Eu estou a escrever a história da Grande Mudança, se não soubesse acerca das borboletas, não andava a fazer nada…
- Acho que com a tua mãe e comigo estava a Nora, o Hector, a Farah…
- Posso pedir-te que me envies a lista completa?
- OK. Mas isso vai para o livro?
- Sim. Acho que é importante perceber que havia alguém a pensar em tudo, a articular o movimento…
- Tinha mesmo razão sobre ti. Queres ir ao fundo da história. Se quiseres posso dar-te também os nomes de quem estava comigo nos outros mandatos em que estive.
- Seria óptimo, obrigado. Além disso, queria saber se sabes alguma coisa sobre os debates em que a minha mãe participou, sobre a divisão entre pacifistas e justiça histórica.
- Sei, claro. Eu estava com a tua mãe no campo da justiça histórica. Posso mandar-te algumas coisas e os nomes que me pediste por mail assim que tiver tempo. Agora tenho de ir. Cuida-te.
- Obrigado!
Enviei emails para Josephine e Sukumar a pedir-lhes os nomes das pessoas que tinham estado com eles nas Asas de Borboleta. Esperava conseguir com isto perceber melhor a articulação do movimento mas também a importância da minha mãe. Na minha caixa de correio já tinha a resposta do Gianni.
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No dia seguinte voltei a encontrar-me com Santiago antes de subir ao comboio atravessando o Sul rumo a Buenos Aires. Na Estação da Luz sentámo-nos para tomar café e um sumo de goiaba. Não provava goiaba desde que era criança!
- E na Argentina tens de provar o mati. Congonha, como dizemos aqui.
- Vou experimentar, obrigado!
- Então depois de Buenos Aires, voltas?
- Volto. Tenho um navio que vai pra Europa em quatro dias.
- Como?
- Recebi uma mensagem, vai sair do porto de Santos no dia quatro.
- De Dezembro?
- Sim, no dia quatro de Dezembro.
- É impossível. Os únicos navios que saem nessa altura são de emergências. Até à semana de Natal navegar no Atlântico Sul seria quase suicídio. E mesmo aí tens uma janela de três semanas, no máximo.
- Essa datas não têm nada que ver com o que me disseram.
- Compa, se tu não acredita neste velho lobo del mar…
- Acredito, claro. - dei-lhe uma palmada no ombro. Mas fiquei apreensivo com a informação.
- Alex, posso tirar uma foto com usted?
- Podes, claro! - tirou um antigo smartphone do bolso e ligou-o, pedindo a um rapaz que passava que nos fotografasse. Depois olhou sorridente para a foto tirada, mostrando-ma.
- É uma alegria ter uma foto contigo, não só por seres filho da tua mãe, mas também porque tenho a certeza que vai ser espetacular aquilo que vais escrever aí. Vais também incluir-me a mim, velho pirata animalista?
- Vou, claro. - Sorriu e deu uma forte gargalhada.
- Santiago, vais volver a ser famoso!
Já embarcado no trem sulista, que segue desde o Rio de Janeiro até Valparaíso, no Chile, consultei o meu computador. Josephine e Sukumar tinham respondido.
Fui apanhado de surpresa com a mensagem. Que outras coisas sobre a morte da minha mãe tinha ele para me dizer? Já sabia que ela tinha morrido numa emboscada em Culiácan, no México. Sabia que nesse mesmo dia centenas de ecomunistas, incluindo dirigentes, tinham morrido em vários locais do mundo, no último grande ataque da Muralha a nível internacional. Porque quereria ver-me em pessoa? Já bastava o tempo todo que eu tinha passado fora de casa e longe da minha família. Ainda mal tinha fechado o computador quando o meu telefone tocou. Era Elizandra.
- Alex, o Sukumar contactou-me. Recebeste a mensagem dele?
- Sim, acabei de ler. Sabes sobre o que é que ele está a falar?
- Não. Mas ele ligou-me para me dizer que eu tenho de te ajudar a ir ter com ele.
- Eu quero muito saber o que aconteceu à minha mãe. Mas também quero voltar para a minha família, Liz.
- Essa é uma decisão que só tu podes tomar. Já és membro do movimento?
- O Gianni disse-me para não me precipitar.
- Que idade tens? Trinta? Com a tua idade todas nós já tínhamos tomado decisões muito mais drásticas do que essa. Porque hesitas? É essencial que te juntes ao movimento, porque o movimento precisa de pessoas como tu.
- Como assim, pessoas como eu?
- Pessoas que percebam a história do que aconteceu no passado e que tenham uma percepção do contexto global, que averiguem e que sejam inquisitivas. O movimento está a começar a girar sobre si mesmo, quando precisa de avançar e continuar a criar uma nova Humanidade, Alex. Para isso precisamos quem perceba o que está em jogo. Uma nova história da Grande Mudança pode ser útil para isso, mas é preciso mais. Acho que já percebeste o nível de sacrifícios que implica construir o futuro. A Grande Mudança só foi o primeiro passo para nos curarmos. Mas está a criar-se uma complacência, mesmo dentro do movimento, que nos empurra para trás e de volta para a beira do colapso. Temos de avançar. E essa também é uma tarefa tua. - pensei acerca da imagem que a Liz tinha sobre mim, que talvez estivesse a projetar sobre mim as capacidades da minha mãe. Podia eu ser, fazer, uma parte que fosse do que ela fez?
- Que queres que eu faça?
- Deves ir a Calcutá, visitar o Sukumar. É possível atravessares a partir do Chile para a China.
- Como?
- De avião. - Eu não andava de avião há décadas. - Mas preciso que te juntes ao movimento oficialmente. E que continues a preparar o livro. Eu consigo justificar enviar-te porque nós estamos a construir novos projetos de comunicação e quero que te envolvas. - Ela tinha ficado a pensar nisto. Senti de repente alguma clareza na minha cabeça. Estava a descobrir o meu papel, o sentido da minha vida.
- Dá-me dois dias.
- Sim, claro. - A questão agora era como contar à Lia. Decidi não adiar a conversa.
- Alex, como estás?
- Bem. Vou enviar-te o novo material que tenho sobre as borboletas. Não vais acreditar, a minha mãe também foi uma delas.
- Que bom. Não é propriamente uma grande surpresa, considerando tudo o que ela fez. Não percebo como o teu pai ou ela mesma não te contaram isto.
- Eu nunca falava com ela e quando o fazia, eram sempre mensagens telegráficas. Ela sacrificou muito, e isso criou um grande peso sobre ela. Quando a vi há seis anos quase não me falámos… Mas também não era suposto as pessoas das borboletas tornarem-no público.
- Eu sei disso tudo, Alex.
- Lia, fizeram-me uma proposta de continuar a viagem…
- Alex… Não te vemos há meses.
- Eu sei, Lia. A Elizandra Márquez propôs-me ir visitar o Sukumar à Índia. Fazer a viagem de avião.
- Isto tem alguma coisa que ver com o que se passou na Colômbia?
- O que é que se passou na Colômbia?
- O homem com que te envolveste…
- Como sabes disso?
- O Ettore contou-me. É por causa dele?
- Não, Lia. Não tem nada que ver com isso. Isso foi uma coisa sem importância.
- Teve importância suficiente para não me contares. - ouvi a sua voz quebrar.
- Não teve importância. Quero ir porque tenho mesmo de perceber o que aconteceu à minha mãe e o Sukumar disse-me que me quer contar alguma coisa, mas só o fará pessoalmente.
- Acho que está na altura de seres mais sério, Alex. Eu também vou ser. - fez uma longa pausa. - Ou voltas para casa, ou a nossa relação acaba. Liga-me quando decidires.