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42: Como explodir um gasoduto

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 14.º episódio, Alex relata a sua viagem a Nova Iorque e Minneapolis, enquanto descobre o passado revolucionário da sua mãe, envolvida em ações clandestinas para desmantelar infraestruturas fósseis durante a guerra civil dos Estados Unidos.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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Acordei cedo, com uma fresta de luz entrando pelas cortinas que não tinha fechado bem. Abri a janela. Lá fora estava um magnífico dia de sol, com a luz a bater nos painéis solares dos telhados e a encandear-me. Cheirava a terra. Na rua já havia um grande reboliço, com grupos de pessoas caminhando em todas as direções, diferente música a tocar, elétricos para a frente e para trás. O isolamento das janelas funcionava bem, não tinha sido acordado por aquela azáfama. Nova Iorque era mesmo barulhenta e animada, com tanta gente diferente, uma verdadeira metrópole. Saí do quarto e Karl, o grandalhão que parecia viver no corredor, informou-me que Edward me tinha deixado uma bicicleta elétrica. Vesti o meu novo fato de macaco - “It’s yours.” - disse-me o grandão, apanhei uma maçã da cesta de fruta da mesinha do corredor e saí. Queria atravessar o rio Hudson e chegar à “Big Apple”. Saí a pedalar pela Willow Avenue que, apesar do nome, não tinha qualquer salgueiro que eu visse, embora estivesse cheio de plantas e árvores. As avenidas paralelas dos dois lados tinham sido desalcatroadas, mas não naquela avenida, pelo que a maior parte do trânsito sobre rodas se fazia por ali - pequenas motas elétricas, bicicletas, trotinetes, patins e até os pequenos veículos do lixo, das reciclagens e dos comércios. Parando para ver os cartazes com mapas da cidade, reparei como duas em cada três das grandes avenidas tinham sido arborizadas ou simplesmente vegetadas. As cidades dos Estados Unidos, construídas a régua e esquadro, perfeitamente geométricas, tiveram vida facilitada para a transformação e para o abandono dos carros individuais, muito menos conflituoso que na Europa. Pelo menos devia ter sido assim no centro das cidades, já que os subúrbios americanos eram famosos por terem sido desenhados para servir os interesses da defunta indústria dos automóveis.

Os túneis Lincoln e Holland, que antes ligavam Nova Jérsei a Nova Iorque, tinham sido abandonados e aterrados por causa de cheias. Uma nova ponte Lincoln percorria um percurso muito similar ao do antigo túnel, só que por cima de água. Foi aí que atravessei. Olhando para o lado direito já se via o enorme paredão amarelo que cobria o litoral Sul da cidade de Nova Iorque, com até oito metros de altura. Tinha sido construído durante a civil guerra para travar a subida do nível médio do mar. Já do lado de Nova Iorque percorri a 8ª Avenida até ao Central Park. Logo à entrada do parque jazia a famosa ruína do Trump International, hotel destruído durante na guerra. Apesar das cheias e da redução da população, Manhattan era a zona mais habitada de toda a cidade de Nova Iorque, em grande parte por causa das ocupações de todos os hotéis de luxo como o Ritz-Carlton, o Marriot Essex, ou o Park Hyatt. Nos anos 20 a ocupação de hotéis, iniciada pelos movimentos sem-teto na América do Sul, expandiu-se por todo o mundo e criou uma nova realidade: a ocupação das zonas de turismo e dos centros das cidades por milhões de pessoas. Percorri o enorme parque, agora mais quinta do que parque, com campos cultivados, pomares e pequenos animais, ligado às novas ruas vegetadas e arborizadas, entrando diretamente pelas antigas avenidas da cidade adentro. Com a bicicleta na mão, caminhei até ao extremo nordeste do parque, cheio de casas abandonadas e novas construções. Em 2034, o muro de proteção contra cheias e o mar colapsara, entrando por ali uma enorme onda que iniciou a grande cheia de Manhattan. Percorri o estaleiro de obras. Vários quarteirões tinham sido removidos para ligar pequenos parques e jardins, criando uma enorme zona inundável. Foi aí que parei para almoçar algo. Fui atraído pelo cheiro de salsichas da minha infância - uma pequena banca vendia cachorros quentes feitos de minhocas e grilos, que eram bastante bons - sabiam exatamente igual ao fumado dos cachorros de antigamente. Após terminar, abriguei-me do calor à sombra de uma árvore na companhia de várias pessoas.

©Nuno Saraiva

Segui para Sul ao longo do alto paredão da FDR Drive até à baixa de Manhattan. Andar de bicicleta ao longo do muro que parecia não acabar dava a sensação de estar dentro de uma caixa. De repente o enorme muro desapareceu, dando ar de a construção ter sido abandonada a meio. Continuando junto à água pude ver que muitos dos arranha-céus mais altos estavam com os seus andares mais altos desconstruídos, como acontecia em Madrid e Bruxelas. Só mesmo quase na ponta Sul voltou a haver muro de proteção contra cheias. Finalmente, cheguei ao Battery Park, um grande jardim onde no meio do qual se erguia um enorme bloco de metal preto, monumento às “vítimas do Túnel Brooklyn Battery”. Não sabia sobre o que tratava e fui ler. Várias pessoas faziam o mesmo que eu, olhando o que estava inscrito no bloco preto. Reparei, ao meu lado, numa rapariga com o cabelo e os olhos da mesma cor verde, de mão dada a um homem baixo, com óculos de sol e uma perna biónica vermelha. Tinha visto várias pessoas com braços e pernas biónicos ao longo do dia, provavelmente resultado da guerra. O homem olhou para mim e eu desviei-me de volta para a leitura.

Ainda antes da guerra, alguém tinha hackeado o sistema dos carros automáticos sem piloto da Tesla e da Cruise. Mais de mil veículos em Red Hook e em Manhattan tinham sido conduzidos para uma colisão em cadeia no antigo túnel Brooklyn Battery. As primeiras viaturas foram atiradas umas contra as outras a mais de 100 km/h e as restantes foram levadas automaticamente a repetir a colisão. Durante mais de 30 minutos, carros entraram a grande velocidade nas duas entradas do túnel, chocando no seu interior contra tudo o que estava no seu caminho, ou contra os carros automáticos que vinham na mesma situação em sentido contrário. Começou um incêndio lá dentro e todos os carros, com e sem condutor, ficaram presos. Mais de quatro mil pessoas perderam a vida. A ideia de carros sem condutor terminou num massacre.

©Nuno Saraiva

Gastei o resto do meu dia no Museu do Capitalismo, em Wall Street, numa viagem virtual à história do sistema económico e social que vigorava até à Grande Mudança. À noite esperei por um contacto da Lia que não chegou. Apesar de ter ficado preocupado, não insisti em ligar. Voltei lentamente para casa, enquanto as pessoas se encontravam na rua, aproveitando o fim de tarde quente e seco para conviver.

Na manhã seguinte, Edward acompanhou-me novamente pela Ponte Lincoln até ao comboio em Penn Station. O meu destino era Minneapolis, a capital do Minnesota. O ecomunista nova-iorquino explicou-me que era uma cidade em grande expansão devido à abundância de água e à temperatura fria. Ao contrário de Nova Iorque, que tinha perdido um terço dos seus habitantes, Minneapolis tinha mais que quintuplicado a sua população, recebendo refugiados da Guerra Civil, dos incêndios do Canadá e dos conflitos no Quebec. Explicou-me que um dirigente local do movimento ecomunista me receberia na estação de chegada e despediu-se secamente, sem eu perceber exatamente porquê.

Partilhei a minha carruagem-cama com um casal canadiano e o seu pequeno filho. Tentei ler o relatório da minha mãe enquanto os meus companheiros de compartimento entretinham o rapaz de dois anos, que berrava sem parar. Aguentei uma meia-hora, mas acabei por desistir e sair do compartimento, dirigindo-me à carruagem restaurante. Perguntei-me se o António, que era um bebé tão tranquilo, também seria assim com aquela idade. Lembrá-lo deixou-me um pouco triste.

Estariam umas dez pessoas espalhadas pelas mesas cinzentas do restaurante. Aproximei-me do balcão para pedir algo para beber. A senhora propôs-me uma cevada quente, que aceitei. Levei ainda um pão com cereais e um pratinho de óleo e sal.

- Porque está tão pouca gente? - perguntei-lhe.
- Está a dar um filme na carruagem de cinema, na próxima porta. - respondeu-me enquanto lhe pagava. Fui sentar-me à janela, observando a paisagem urbana à distância. Estendi na mesa o computador e o relatório. Na mesa a seguir à minha estava sentado um homem baixo e moreno que me parecia familiar. Mexia freneticamente num smartphone enquanto bebericava uma bebida escura com gás. Olhava para mim e para o smartphone, até que se levantou e aproximou-se, sorrindo.
- Importa-se que me junte a si? - perguntou, com uma bonita voz de tenor.
- Sim, pode ser - respondi-lhe, recolhendo o relatório. Tirei da bolsa o meu Babel.
- Você vive por aqui?
- Vivo em Nova Iorque, mas viajo muito. Você não é daqui?
- Não.
- E para onde vai?
- Para Minneapolis.
- Ah! Bonita cidade. O que vai lá fazer?
- Trabalho. Mas porque é que me está a fazer um interrogatório?
- Desculpe, estava a tentar começar uma conversa. Para isso preciso de alguma informação para trocar.
- Então diga-me primeiro coisas sobre si. - tirou uma pequena carteira do bolso e mostrou-me um cartão. Era da associação americana de veteranos e tinha a sua foto. O seu nome era Luiz Gonzalez.
- Para troca: o que vai fazer?
- Entrevistas.
- Entrevistas ainda podem ser feitas pela internet ou pelas nets locais.
- Estou a fazer um trabalho que precisa entrevistas ao vivo.
- Como se chama? Eu sou Luiz Gonzalez - O homem falava rápido e eu começava a ficar apreensivo. Mas não quis recuar.
- Li no cartão. Chamo-me Alex, Alex Aguas.
- Alex, você é português? Que idade tem?
- Sim, sou português e tenho trinta. Você é veterano de quê?
- Demasiada informação. Diga-me sobre o que são as entrevistas.

A conversa estranha estava a irritar-me. Queria ler o relatório ou o meu livro e não estar a entreter pessoas. O homem deve ter notado. Respondi em jeito de conclusão.

- Estou a fazer entrevistas e a levantar informação sobre a Grande Mudança. E agora, se não se importa, quero ler. - desliguei o meu Babel e o homem sorriu.
- Sou veterano da Transpiness. - baixou o tom -  E da Descarbonária, onde conheci a tua mãe.
- A minha mãe?
- Sim. Desculpa o interrogatório. Tinha quase a certeza que eras tu, mas precisava confirmar. - Mostrou-me o smartphone, onde estava uma foto minha, com 10 anos, entre os meus pais.
- Como tem isso?
- Foi a Maria que me enviou, em tempos.
- Sabe que o nome dela era Marta?
- Não sabia que era Marta mas sabia que Maria não era o seu nome verdadeiro. Podia ter sido mais original. - riu-se.
- Como sabia quem eu era?
- O meu irmãozinho. Oscar. Falámos no outro dia e ele contou-me sobre um português que estava aqui em viagem. Disse-me o teu nome a tua idade. Havia a possibilidade de seres tu. Ela falava muito sobre ti. Quando morreu eu soube e pensei contactar-te, mas outras coisas foram-se pondo à frente, já me custa viajar e não consegui ir à despedida dela.
- Como sabia que eu ia estar neste comboio?
- Ainda tenho as minhas fontes. E se não fosses tu, ia fazer uma viagem até Minneapolis, tenho tempo e milhas.
- Obrigado por ter vindo à minha procura. Eu não saberia da sua existência.
- Trata-me por tu, ou por Luiz.
- OK, Luiz. Eu preciso ajuda para saber mais sobre a minha mãe. Já falei com algumas pessoas, as pessoas ou não sabem ou não dizem, é tudo muito difícil, a conta-gotas. Eu sabia que ela tinha vindo para os Estados Unidos, e tenho também este relatório - passei-lhe o relatório para a mão - mas não tenho a certeza sobre quase nada. Eu nem sequer sabia o que a minha mãe tinha feito até há uns meses atrás, só que tinha estado nos movimentos revolucionários.

Folheou rapidamente o relatório.

- Isto foi depois de eu ter estado com ela. - aproximou-se de mim e falou mais baixo. - Nós estivemos quase um ano na Descarbonária juntas. Foi ela que me recrutou. Viajámos por vários sítios aqui nos Estados Unidos antes de ela passar para o Exército Verde. Eu fiquei na Descarbonária até o fim, deixei a militância nessa altura. Mas continuava a ouvir falar sobre ela por alguns contactos.

- O que me pode contar sobre esses tempos em que estiveram juntos? Posso gravar?
- Podes. - liguei o gravador - Posso contar-te tudo o que sei. A tua mãe era uma mulher incrível: corajosa, determinada, inspiradora. Ela era uma pessoa da ação, mas se tivesse estado viva noutro momento, não tenho dúvidas que seria uma grande tribuna na política. Inspirava-nos e fazia-nos perder o medo em momentos-chave. Era uma verdadeira líder. - sorriu.

- Disseste-me que ela te recrutou?
- Sim, foi ela que me recrutou pouco após o início da guerra. Ela vinha de África, acho que da Nigéria. Foi na altura em que começávamos a fazer as ações mais disruptivas com a Transpiness. Estávamos a atacar igrejas conservadoras e os Nacris nessa altura.

- A Transpiness era uma organização de pessoas trans?
- Era e é, mas agora não faz muitas ações. - riu-se - Foi lá que comecei a minha militância, anos antes da guerra começar. Tínhamos de nos defender da catástrofe trumpista e de todo o ódio herdado contra nós. Primeiro éramos um grupo de autodefesa, mas também fazíamos muitas alianças. As nossas ações, como as de todos os grupos que havia durante a guerra, tornaram-se cada vez menos simbólicas e cada vez mais efetivas. Organizávamos a defesa contra as milícias de extrema-direita que tentavam expandir a guerra para o Norte e contra os exilados israelitas liderados pelo Avi Maoz.

- E quem eram os Nacris?
- Nacionalistas Cristãos, milícias evangélicas fascistas.

- E foste recrutado pela minha mãe?
- Sim. Ela convidou um pequeno grupo de ativistas novaiorquinas para uma reunião privada e apresentou-se como membro da Descarbonária. Não éramos só Transpiness, havia Black Defense Crews, Armas Latinas. Ela era muito inspiradora, mas o objetivo da sessão era excluir todas as pessoas que não tivessem um alinhamento tático e político quase total. No final só ficámos duas pessoas - eu e a Melissa das BDC. Juntámo-nos as duas à Descarbonária.

- Só duas pessoas?
- A tua mãe recrutou mais gente, no final constituímos um grupo com dez. Mas havia outras equipas da Descarbonária. Tivemos de abandonar a nossa vida normal e seguir para cinquenta dias de treinos no Norte, não sei se em New Hampshire ou no Maine. Fomos levados vendados num camião. Havia mais pessoas por lá, mas excepto por um jantar em que estivemos com outra equipa, éramos só os 10, incluindo a Maria.

- O que era o treino?
- Era uma loucura, muito exigente: doze horas por dia de preparação física, combate corpo-a-corpo, manuseamento de armas, de explosivos, topografia, técnicas evasivas. E claro que tínhamos aulas de história, ecologia e política pelo menos metade do tempo.

- A minha mãe era instrutora disto?
- Em algumas coisas era instrutora, noutras aprendiz como nós.

- O que aconteceu após o treino?
- Fizemos o juramento da Descarbonária. - Dei uma pequena gargalhada. - Não te rias. - disse Luiz, que sorria. - Fomos levados vendados para um edifício antigo e muito escuro, e só nos tiraram as vendas dentro de uma sala à luz de velas. Era basicamente uma aula sobre a história da antiga Carbonária, sobre o seu papel na unificação da Itália e na ascensão do republicanismo na Europa. Uma mulher com uma máscara e um punhal contava a história da derrota do poder das multinacionais da altura, da Igreja Católica e das monarquias de Bourbon, de Hannover e Romanov, e como havia um movimento na luz e um movimento na sombra. Nós éramos a nova organização, a Descarbonária, o movimento na sombra para travar o caos do capitalismo fóssil, para fazer o que fosse necessário para impedir o colapso da Humanidade. Eu não sabia aquela história antiga, foi mais uma lição que um ritual.

- E estava muita gente? Parece muito conspiração, muito coisa de filme.
- O objetivo era criar uma aura de mistério e cumplicidade. Estava só a nossa equipa, de cara destapada, e mais quatro pessoas com máscaras e roupas negras.

- E a minha mãe, onde estava?
- A tua mãe fazia parte da equipa, era um dos dez. Tratávamo-nos umas às outras por manos e manas (bros and sistas). Todas tínhamos nomes de clandestinidade. Eu era Bro Felix. Marcámos um ponto de tatuagem atrás do calcanhar. Era a marca da nossa casa.

- Casa?
- Sim, as unidades da Descarbonária chamavam-se assim.

- É difícil perceber a dimensão da organização. O vosso nome aparece muito, mas não sei quantas pessoas eram.
- Não há números oficiais. Eu fui subindo na hierarquia mas fiquei sempre a nível da América. No fim da guerra civil havia pouco mais de 100 casas aqui nos Estados Unidos, e outras 50 nas novas repúblicas. Mas a maioria da Descarbonária atuava na Europa e no Médio Oriente, provavelmente mais de mil casas. Não sei se participávamos nas guerras em África, é provável, porque também fazíamos missões de apoio pontual.

- E participaste em missões com a minha mãe?
- Sim, em várias. Incluindo várias em que só estávamos nós duas.

- Podes dar um exemplo?
- Os nossos objetivos principais durante a guerra civil eram travar a indústria fóssil e impedi-la de recuperar no pós-guerra. Tentávamos não atrapalhar demasiado o esforço de guerra do exército dos Estados Unidos e, quando possível, desmantelar a capacidade operativa dos secessionistas do Sul e dos grupos de extrema-direita. A nossa casa estava dividida em dois apartamentos no Brooklyn e reuníamos mensalmente, quando recebíamos objetivos intermédios e organizávamos as equipas de acordo com as prioridades. Tínhamos muito autonomia na planificação da maneira mais eficaz de executar as ações. - Olhou à volta e, vendo que só estávamos os dois e a senhora ao balcão, que ouvia música, aproximou-se de mim e falou baixo. - Das primeiras coisas que fiz com a tua mãe foi destruir a sede de Nova Iorque dos Alt-Knights e desmantelar os datacenters que o Proud Boys usavam. Foi muito emocionante. A Maria era sempre fria como o gelo, o que era muito bom para a confiança quando estávamos em ação. Acho que estive apaixonado por ela todo o tempo.

- Apaixonado pela minha mãe?
- Não sei como era possível alguém não estar. Ela era brilhante, linda, poderosa. Na nossa casa tínhamos todos uma relação muito próxima, que muitas vezes também era física. A vida na clandestinidade tem muito disso, a cumplicidade e confiança que criávamos uns com os outros ia além da política e da ação. Até por questões de estabilidade emocional, mantínhamos relações uns com os outros. - Pensei que aquilo não era boa ideia, na verdade. E a minha cabeça fugiu rapidamente para outro lugar. Depois de uma pequena pausa, perguntei.

- Tinhas relações sexuais com a minha mãe?
- Tive poucas vezes, ela era a pessoa mais velha e mais reservada da casa.

- E ela tinha relações com outras pessoas?
- Não sei, Alex. Não passávamos o tempo preocupados com isso e a tua mãe não era muito aberta sobre assuntos desse tipo. - Pensei no meu pai e como também ele tinha tido relações com outras pessoas depois da mãe ter partido. Antes de termos tido o António, eu e a Lia também tínhamos relações com outras pessoas, mas pensava que antes as pessoas eram mais conservadoras. Idiota.

- Bem, mudando de assunto, vocês tinham contacto com as outras casas?
- Nenhum. Por vezes víamos outras pessoas em situações estranhas e achávamos que podiam ser manos ou manas, mas tínhamos ordens para não contatá-los. Tanto os serviços secretos dos Estados Unidos como os secessionistas e os grupos de extrema-direita queriam apanhar descarbonárias. A Maria era a única pessoa nossa que por vezes contactava outros membros da organização, porque era a “mãe” da casa.

- Quanto tempo estiveste com ela?
- Vinte missões, cerca de oito meses. As rotações tinham vinte missões e depois as casas eram dissolvidas. Recebemos debriefing e formação para recrutarmos e criarmos novas casas em diferentes centros de treino pelo país. Houve pessoas que foram para outros países. A tua mãe foi para o Exército Verde, mas só descobri isso anos mais tarde. Eu fiquei mais quatro rotações, tornei-me especialista em sabotagem industrial com ela. A nossa última missão foi a mais marcante, explodimos um gasoduto na Carolina do Norte.

- Mas isso não era no território dos Estados Unidos?
- Sim. Era um gasoduto enorme, o Transco, que saía do Texas e ia até ao Canadá. Foi uma ação articulada com outras casas que o explodiram em diferentes localizações. O Transco nunca mais voltou a funcionar. Até então, mesmo em guerra, continuava a vir algum gás do Texas para o resto do país, operado ilegalmente pelas milícias e pelo crime organizado a soldo das petrolíferas. Mas o plano do governo americano era retomar o fluxo de gás quando acabasse a guerra. Não íamos deixar isso acontecer. A missão foi muito marcante porque o seu efeito foi enorme e porque era simbolicamente participar no proposto no livro “How to blow up a pipeline”.

- Podes contar-me como foi a operação?
- Demorámos um mês a preparar-nos. Na altura a circulação no país era limitada. Mudámos-nos para Greensboro e alugámos três casas e um armazém. As preparações foram dividas em equipas de logística, introdução e fuga. A Maria supervisionava as três mas estava mais comigo na introdução.

- Introdução significava o quê?
- Conseguir aceder aos locais onde íamos entrar para executar a operação. Neste caso, uma estação de compressão e silos de armazenamento de gás. Tínhamos um horário preciso que a tua mãe tinha recebido. Era tudo preciso, se alguma coisa acontecesse fora do horário era possível que morrêssemos numa explosão causada pelas outras casas ou que fôssemos apanhados. Precisávamos entrar e sair numa janela de tempo muito pequena e conhecer todas as medidas de segurança em cada um dos sítios. Isso significou bom scouting, o que durante uma guerra era mais difícil de conseguir. Treinávamos todos os passos da operação até à exaustão. Tínhamos uma música para acertar os tempos: Jesus of Suburbia, dos Green Day. Nove minutos e oito segundos.

- Então a minha mãe organizou a destruição de um gasoduto?
- Não só organizou como foi ela que carregou no botão que explodiu os silos de armazenagem. Eu e ela éramos uma das unidades que entrava na infraestrutura. Tínhamos nove minutos para entrar, colocar as cargas explosivas, sair, acionar o alarme de emergência para os seguranças evacuarem e explodir. Os seguranças estariam alerta a partir de metade deste tempo porque a explosão na estação de compressão pela outra equipa teria feito disparar os alarmes 5 minutos antes.

- O plano foi bem sucedido, então?
- A Maria costumava dizer que se a instrução fosse dura, o combate era fácil. Tínhamos todas as contingências prontas, todos os cenários articulados - plano A, B, C, D. Nós íamos explodir aquilo, custasse o que custasse. Mas saiu tudo de acordo com o plano original. Uma hora antes do início deixámos a nossa carrinha escondida perto da estrada. Fizemos os três quilómetros até ao local em vinte minutos, camuflados. Já o tínhamos feito antes, então não houve surpresas, excepto um homem que passeava o seu cão. A tua mãe tinha um plano para isso: quando o cão começou a ladrar na direção de onde estávamos agachados, acionou um pequeno aparelho de ultrassom. O cão começou a ganir e o dono levou-o para longe. A Maria era assim, já tinha pensado em tudo vinte vezes antes de nós. - sorri. - Ficámos vinte minutos à espera do tempo dos nossos relógios sincronizados com o resto da casa. Vestimos os fatos pretos com passa-montanhas. Parecíamos ninjas, invisíveis no meio da noite na floresta. Nos últimos minutos antes da hora, a tensão era máxima. Apesar da experiência, sentia o nervosismo no fundo do estômago. Já tínhamos aprendido com a Maria que a partir da véspera só comíamos maçãs verdes e bolachas secas. Avançámos, saindo da escuridão coberta dos pinheiros “I’m the son of rage and love, the Jesus of Suburbia…”. Com alicates cortámos uma porta retangular no arame. Entrámos e corremos na direção dos grandes tanques brancos. Corri para as tubagens para abrir a grande válvula enquanto a Maria colocava várias cargas explosivas nos tanques. Exatamente aos quatro minutos a outra equipa entrou na estação de compressão e fechou o fluxo, desencadeando o primeiro alarme. Ouvi barulhos e notei a silhueta de um segurança empunhando uma lanterna, enquanto eu continuava a pesada tarefa de fechar a válvula. Cantava a música dentro da minha cabeça “I don’t care if you don’t, I don’t care if you don’t, I don’t care if you don’t care…”. Tudo no tempo certo. A Maria disparou um flare luminoso na direção contrária de onde estávamos, atraindo os seguranças para lá - as cargas estavam postas. Era o tempo da explosão da outra equipa. Finalmente acabei de abrir o gasoduto - seis minutos “Oh therapy can you please fill the void” - e o gás estava a sair dos tanques, desencadeando mais um alarme. Levantei-me e corri na direção da tua mãe. Do outro lado da floresta explodiu o fogo de artifício que tínhamos enterrado dois dias antes, mais um artíficio para disfarçar a nossa fuga. Juntos corremos para o buraco na rede onde tínhamos entrado, colocando-o no sítio já no lado de fora “You’re leaving, are you leaving home?”. A primeira parte tinha terminado.

- Havia mais? - perguntei, emocionado.
- Sim, ainda faltavam coisas. Mas já não havia volta atrás, o gasoduto ia explodir em minutos. Corremos até onde tínhamos as nossas roupas e mudámos-nos para os camuflados do exército americano. Junto dos tanques estava o alarme sonoro que se erguia e repetia sobre os outros: “Este local foi armadilhado pela Descarbonária com vários aparelhos que explodirão dentro de 2 minutos. A todas as pessoas que nele trabalham alertamos: evacuem imediatamente.”

- E as pessoas fugiam?
- Não confirmávamos. Quando começou o nosso alarme começámos a correr. Em dois minutos parámos e momentaneamente e a Maria pressionou o comando. Ouvimos a explosão e vimos o clarão ao longe. Corremos ouvindo sob a copa das árvores o som dos drones, que nos tentavam encontrar. A Maria também tinha um pequeno dispositivo que disparava um pulso eletromagnético, se fosse necessário. Não foi. Pouco mais de 10 minutos mais tarde estávamos na carrinha, limpando o suor da cara para não darmos nas vistas. Conduzimos alguns minutos, e na estrada cruzámo-nos com polícia e bombeiros na direção contrária à nossa. Nesta altura eu estava em grande stress, mas a Maria repetia “já está feito”. Saímos da estrada pouco depois e afundámos o carro num lago. Livrámo-nos da nossa roupa e fomos apanhados pela equipa de fuga. Fizemos um debriefing em Roanoke e separámos-nos. Essa noite dormi num motel. Nas notícias pude ver como o plano tinha sido bem executado. Tinha havido apenas dois feridos no Maryland. As partes essenciais do gasoduto tinha sido destruídas: sete casas envolvidas, doze localizações destruídas entre a Georgia e Nova Jersey. Não havia mais Transco. A militarização da indústria fóssil pelo governo dos Estados Unidos aconteceu pouco depois disto, tornando estes atos mais difíceis.

- Puff. E a minha mãe fazia isto com frequência? O que teria acontecido se os guardas vos tivessem apanhado?
- Alex, a tua mãe fazia o que fosse preciso. E estávamos armados durante toda a operação. Não podíamos ser apanhados.

De repente um grande grupo de pessoas entrou no vagão restaurante. O filme tinha acabado. Luiz levantou-se do outro lado da mesa e veio sentar-se ao meu lado.

- Continuamos a nossa conversa mais tarde. O comboio só chegará a Minneapolis em dois dias.
- Sim, por favor. Luiz, só uma pergunta.
- Diz.
- Porque não me vieste falar ontem em Battery Park?
- Estavas sempre rodeado de pessoas. Eu fui treinado para ser invisível.
- Eu já te tinha visto.
- Porque eu te tinha feito veres-me. Até já.

Vi-o afastar-se, coxeando ligeiramente sob a sua perna biónica. Comi na sala restaurante e no meio da confusão das pessoas que entretanto tinham entrado ouvi a gravação do que o Luiz tinha dito. A minha mãe era impressionante. Era uma heroína. Eu sou filho de uma heroína da revolução.

Texto de João Camargo

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