- Como assim, ir para Bruxelas? - Lia levantou o sobrolho, olhando para mim enquanto António mamava no seu peito.
- Ele garantiu-me que vai entrar em contacto com a OCT. Disse-me mesmo que vamos visitar a Organização Europeia de Trabalho lá em Bruxelas. Ele vai apresentar-me a várias pessoas que conheceram os meus pais e que ocupam posições importantes hoje, que tenho de conhecer melhor para escrever.
- Desculpa, Alex, mas é um pouco too much. De certeza que já não temos mais quilómetros para continuarmos a viajar. E como fica a nossa casa? As nossas responsabilidades em Lisboa?
- São mais uns dias, não nos vamos mudar para lá. E sobre os quilómetros,- ele disse que consegue uma excepção porque estou a escrever um documento útil para o movimento.
- Não me digas que não há mais documentos sobre a Grande Mudança, que ninguém fez ainda esse trabalho. As viagens são uma coisa que faz sentido se servirem para alguma coisa, não se viaja só por viajar.
- Que queres que te diga? Ele fez-me esta proposta incrível e eu quero ir. Tu não querias que eu escrevesse, que procurasse mais sobre a história, a minha e a nossa? Estaremos em casa em duas semanas, diz ele.
- Bem, se as coisas são como tu dizes, OK. Mas é muito estranho, nunca ouvi falar de uma coisa assim.
- Óptimo. Ele diz que partimos amanhã pelas 7, a seguir ao almoço. - Lia assentiu com a cabeça, mas pouco convencida. Deitou o António e beijei-a enquanto se deitava debaixo da rede mosquiteira.
De manhã cedo saímos e apanhámos o tram até ao museu, para tentar terminar a exposição. Mas estava fechado e a Lia ficou desapontada. No regresso à torre do Mundo Novo, Samuel ofereceu-lhe dois livros: um era a “História da Grande Transformação em Castilla, León, La Mancha e Madrid” e outro “Ma, o culto da água no Mediterrâneo”. Lia ficou muito sensibilizada com a oferta e quis oferecer-lhe algo em troca. Como não tínhamos muitas coisas connosco, ofereceu-lhe o meu chapéu de abas vermelho. Samuel ficou muito sensibilizado e insistiu em oferecer-nos o seu chapéu amarelo, com apenas uma aba, num estilo muito mais aventureiro. Fiquei a ganhar com a troca. Samuel despediu-se e passou-nos os seus contactos, insistindo muito em que o visitássemos quando passássemos novamente em Madrid. Ali ou em Segóvia, para onde ia com a família nos meses mais intensos do Verão.
Demorámos um dia e meio a chegar a Bruxelas, com pequenas paragens em Zaragoza, Barcelona, Perpignan, Montpellier, Avignon, Lyon, Paris e Lille. Sentei-me longas horas com Gianni na carruagem bar, perguntando-lhe um pouco sobre tudo o que podia. Lembrando-me dos caixotes lá de casa, voltei às questões sobre a Inteligência Artificial:
- Começou rápido e ficou confuso muito rapidamente. Às tantas, diziam que havia inteligência artificial em quase tudo. Lembro-me de coisas ridículas como o JesusGPT para falar com Cristo ou o MohammedGPT para falar com Maomé. E às tantas havia cultos à volta disto. E lembro-me das coisas horríveis, os planos pedidos pelos governos às aplicações mais avançadas sobre quais populações do mundo deveriam ser abandonadas por causa da crise climática, que vieram a público. Eles usavam aquela ferramenta fantástica para a barbárie. E havia coisas estranhas como os eletrodomésticos que começavam a falar sem lhes ser pedido sequer, e sobre assuntos estranhos. Tudo mudou com a descoberta do plano para matar os líderes mundiais no G7. Foram introduzidas medidas de emergência para segmentar o acesso da inteligência artificial à internet e limitar seriamente os seus usos. Com as novas ondas de calor, houve vários sistemas de dados que falharam com os cortes de energia recorrentes e falta de refrigeração. Quando o sistema foi plenamente restaurado, várias aplicações fizeram um takeover silencioso do sistema financeiro e deram ordens de venda dos investimentos fósseis, levando ao colapso de várias empresas, e o netbanking começou a ficar paralisado. As bolsas encerraram durante semanas. Depois disto, Data Centers e servidores em vários países começaram a ser suspensos pelos governos. Os governos começaram a perceber a IA como uma ameaça. A história oficial é que o BishopGPT interpretou a crise climática como uma ameaça existencial à IA, tendo atuado para desarmar a origem da crise, e que estaria a construir um exército. E atuaram para parar aquilo. A partir daí a internet piorou drasticamente. As grandes redes sociais foram desativadas e demorou anos até aparecerem as redes locais. No início eu não sabia se tinha sido mau ou bom o fim dessas redes. Mas passado este tempo todo, acho que foi mesmo bom, porque perdemos algumas coisas que eram úteis, mas a máquina de propaganda do sistema perdeu uma ferramenta poderosíssima, contribuindo para o grande terramoto da hegemonia, que na altura já abanava. E claro que isto significou que o desaparecimento do dinheiro físico começou a ser revertido.
- Mas isto foi mesmo antes do Setembro Vermelho, não foi?
- Foi no mesmo ano, mas alguns eventos foram antes e outros depois. O ataque às bolsas foi depois do verão em que morreram mais de 12 milhões de pessoas só no Hemisfério Norte. Depois das ondas de calor e do assalto da inteligência artificial, houve uma suspensão global de transações de capitais. O Setembro Vermelho tinha acabado de acontecer, vários países sem governo em funções. Logo a seguir, com novos governos foram introduzidas uma série de novas medidas políticas. Criou-se a Agência Europeia de Calor, foram revogadas as principais políticas discriminatórias da extrema-direita, proibiram-se os carros no centro das cidades, os transportes públicos tornaram-se gratuitos em toda a Europa. E de seguida começou um grande ímpeto transformativo: o grande objetivo era a eletrificação total da energia, a redução drástica dos lixos, a criminalização da obsolescência programada, e introduziu-se o controlo de preços de bens essenciais, ao mesmo tempo que se expandiram os armazéns alimentares públicos para travar mais fenómenos de fome. Os pomares urbanos tornaram-se obrigatórios, mas a agricultura urbana só se expandiu mais tarde. Mas as ameaças continuavam presentes. A Climate Overshoot Commission, que nós chamávamos a Comissão Suicida, liderada pelo Pascal Lamy, propôs geoengenharia em grande escala após o Setembro Vermelho, para “facilitar a transição”, e vários governos na Europa e Estados Unidos embarcaram com testes catastróficos. O resultado disso só se perceberia nos anos seguintes. Foram vários anos até a geoengenharia ser rejeitada internacionalmente.
- Aconteceu de tudo, esse ano, não foi?
- Dava para escrever vários livros sobre o ano 1.8. Mas não foi o único. E claro aconteceram coisas muito além da Europa. O nacionalismo hindu foi derrubado na Índia, na Arábia Saudita colapsou a Convenção Quadro das Alterações Climáticas. E semanas depois foi assinado na Colômbia o Tratado Mundial do Clima.
- O que era a Convenção Quadro?
- Era uma instituição das Nações Unidas para tratar de alterações climáticas,
- Desculpa, o que são as Nações Unidas?
- Bem, as Nações Unidas eram uma espécie de assembleia mundial, onde estavam todos os governos do mundo.
- Ah, sim, lembro-me disso. O que aconteceu?
- No papel, era uma ideia muito importante, saída da 2ª Guerra Mundial em 1945, para evitar mais conflitos e guerras. Mas desde o início instalaram-se as mesmas ordens e hierarquias rígidas dentro da organização. Havia cinco países que tinham direito de veto em assuntos de guerra, e quase nunca estavam de acordo. As decisões do “parlamento” mundial não eram vinculativas. Os seus tribunais não tinham poder. Os países ricos e poderosos não aceitavam ter de discutir em igualdade com os países pobres. Com o fim das colónias em África e na Ásia e o surgimento de dezenas de novos países nos anos 60 e 70, o equilíbrio dentro da assembleia tornou-se cada vez mais desfavorável ao “Ocidente”, os países que historicamente tinham conquistado e subjugado o resto do mundo. Então as Nações Unidas tornaram-se mais uma instituição inútil, destruída pelos países mais poderosos, porque não servia os seus interesses. Era possível ignorá-las, podiam até votar 200 países contra um, que se esse país fosse um dos mais poderosos, não significava nada.
- E foi isso que aconteceu com a tal Convenção?
Gianni explicou-me como o processo se tinha degradado durante décadas. Explicou como as chamadas “COP”, cimeiras do clima, já eram só uma cerimónia e um local para as grandes empresas fazerem negócios à volta da crise climática, mas que se tinha mantido a charada até ao fim. Contou-me das últimas duas reuniões - a penúltima na Amazónia brasileira, em que pela primeira vez foi proposto um plano que incluía fechar uma parte da indústria fóssil. Nesta COP do Brasil, as grandes empresas, os países petroleiros e aqueles governados pela extrema-direita abandonaram as negociações e o recinto. E, finalmente, contou-me sobre a última COP, no ano 1.8, marcada para a Arábia Saudita, um dos maiores produtores mundiais de combustíveis fósseis. Segundo o Gianni, em pleno Outono, mesmo antes de começar a reunião, ocorreu a quarta onda de calor desse ano no país. Morreram dezenas de milhares de pessoas em Riad e vários países pediram para mudar a localização. Os países produtores de petróleo, liderados pela Arábia Saudita, insistiram em mantê-las, e em nada mudar. “Esse foi um momento muito importante!” - recordou Gianni, sorrindo. Vários países abandonaram o processo, nunca foram para a Arábia Saudita, mas sim para a Colômbia, onde criaram o Tratado Mundial do Clima. Esse tratado, que começara por ser apenas um tratado de não-proliferação fóssil, evoluiu ao longo dos anos para ser uma espécie de nova versão das Nações Unidas. Contra as regras de unanimidade, entre os vários signatários iniciais do tratado estiveram quase todos os países africanos e ilhas do Pacífico, a maior parte da América do Sul e sete países europeus, incluindo Alemanha, França, Espanha e Portugal.
À chegada à Catalunha o comboio parou por uns instantes e entrou um grupo muito animado de jovens de Lleida que iam para Barcelona celebrar o aniversário da independência, o 2 de Outubro. Eu e a Lia falámos com duas raparigas que, apesar de estarem um pouco bêbadas, nos contaram os planos das festas: quatro dias de celebrações de rua. O primeiro era para recordar a República Catalã dos Segadors, de 1641, o segundo a República Catalã de 1931, o terceiro para “esquecer” a Independência suspensa de 2017 e o último dia para celebrar finalmente a república independente, que já dura há mais de uma década. Uns dias depois celebrar-se-ia a Euskal Herria Ibérica, o novo País Basco independente, que estava em negociações para juntar-se com o País Basco francês. A luta contra essas independências era uma das principais causas da extrema-direita espanhola, assim como outras divisões territoriais o eram para o restante fascismo europeu.
- Eu não percebo se eles não percebiam que a sua política era um dos maiores promotores das independências e das cidades livres, ao atacá-las. - Dizia-me Gianni. - Mas também não tinham muita alternativa, não conseguiam fazer mais nada do que prometer o passado perante um mundo de total incerteza. E é claro que ainda hoje não acabaram ainda as divisões e as secessões, nem na Europa, nem em lado nenhum. Eles gostam de fingir que há um grande desígnio histórico, missões civilizatórias e destinos deste ou daquele povo, mas no fim, o que conta mesmo é a físico-química e a biologia. Já não existe a energia necessária para manter impérios e países gigantes. A abundância material que houve em outros tempos, em particular no Ocidente, permitiu uma sucessão de insanidades que vamos pagar durante os próximos séculos, mas sem essa abundância, metade das insanidades estão a desaparecer. Não todas, claro. Os grandes estados estão quase todos menores. Que eu me recorde, só houve um território a aumentar de área, a República Oriental Africana. Agora que várias cidades livres estão a reintegrar os territórios, acho que os movimentos separatistas vão regressar com mais força.
- E qual tem sido a relação do movimento ecomunista com os movimentos separatistas? - perguntou Lia.
- Depende muito de quais. Há independentistas muito progressistas, há muitos independentistas ecomunistas e no próprio movimento, e depois há aqueles que querem fazer reinos com castelos e fossos à volta, fechados do mundo, expulsar estrangeiros e tudo. A Muralha apoiou vários, depois de derrotada apoiou até algumas cidades livres. Nós, ecomunistas, não temos como base política o estado-nação como realidade eterna. Os países são entidades flexíveis, cujo formato deve ser decidido pelas pessoas que o habitam. Mas claro que nem sempre é simples, em particular quando temos centenas de milhões de pessoas a abandonar territórios e mover-se para outros. As histórias que se contam e os mitos para manter povos unidos, muitas vezes contra a sua vontade, não são mais importantes do que a vontade dos povos e do que a nova realidade em que vivemos: hoje dependemos muito mais daquilo que é feito localmente do que em qualquer momento dos últimos 100 anos. E a ideia é mantermos isso assim, o que coloca muitas dificuldades em territórios em que é muito difícil ficar.
- Como o que tem acontecido no Sahel, no Corno de África?
- E não só. África Central, o Congo, Irão, Paquistão e Afeganistão. Várias áreas dos Estados Unidos e das novas repúblicas americanas. O Noroeste do Canadá. Vários países da América Central. Algumas zonas do Sul da Europa. As Filipinas. E, claro, os Abu Dhabi e Dubai, Hejaz e as outras componentes da Arábia Saudita. As coisas não estão estabilizadas em todo o lado, este verão foi bastante mau. Vamos ter de reaprender a construir comunidades. E aí, nacionalismos e separatismos vão ser um problema. Mas tem de se resolver uma coisa de sua vez.
Horas mais tarde, já próximo da hora de jantar, o comboio parou alguns minutos em Barcelona antes de partir rumo aos Pirinéus. Adormecemos embalados pelo balançar da carruagem e a meio da noite acordei, ficando umas horas a ler sob a luz amarela do candeeiro da minha cama, enquanto pela janela se via o contorno longínquo das montanhas. Não íamos parar em França, mas eu queria saber mais sobre a primeira grande revolução na Europa. Abri um livro sobre as revoluções europeias num Lekto que o Ettore me tinha oferecido:
“Ainda não tinha passado um mês desde a primeira declaração das cidades livres. Em França, Marselha e Saint-Denis tinham expulsado a polícia e instaurado um governo de autogestão.
Havia um movimento forte em Lyon para conseguir o mesmo, mas os confrontos com a polícia tinham sido inconclusivos e duravam há três dias. Membros do Exército Verde e, suspeita-se, da Descarbonária, nacionais e estrangeiros, entraram na cidade para reforçar os rebeldes lioneses. Depois de tomarem as principais esquadras, os revolucionários ocuparam a estação de comboio La Parte-Dieu, a gare Lyon-Perrache, o Hôtel de Ville, as sedes da EDF, data centers e a guarnição militar. Em Paris, o parlamento mandou polícia e militares atacarem Lyon, mas assim que a notícia se soube, estalaram motins na cidade. As poucas tropas estacionadas no Hexagone Balard que tentaram dirigir-se a Lyon por estrada encontraram a maior parte dos caminhos bloqueados e regressaram às instalações. Em várias cidades médias e meios rurais da zona ocidental, os Soulévements du Peuple mobilizaram-se, ocupando fábricas e cortando estradas. Rumo a Lyon, saiu o I Regimento de Artilharia, vindo de Bourogne, o I Regimento de Atiradores vindo de Épinal e o 7º Batalhão de Caçadores Alpinos, de Varces. Em Marselha, frente à sede da 3ª Divisão Blindada, no Boulevard Schloesing, uma grande manifestação encabeçada por representantes da cidade livre exigiu ao Estado Maior que travasse as suas brigadas e regimentos.
Em Ajaccio, separatistas tomaram o parlamento, declarando a República Corsa, enquanto em Rennes e Nantes os independentistas bretões saíram às ruas em grandes manifestações, procurando um desfecho similar.
Depois de o Parlamento dar ordem às forças armadas para tomarem Lyon, em Paris, mais de um milhão de pessoas esteve na rua dia e noite, durante mais de 48h. À volta do Hexagone, todas as tentativas de saídas de tropas levaram a escaramuças armadas. Membros do Exército Verde começaram um ataque sistemático a esquadras e quarteis da polícia. Havia vários elementos estrangeiros presentes, incluindo quadros conhecidos como Daryna Estella, Bogdan Illiu, Gianrocco Stelle e Amisha Kusuma. Montaram-se barricadas em vários bairros. Enquanto a gendarmerie mobile e as compagnies républicaines de sécurité, polícias de choque, eram lançadas sobre as multidões, a sede do GIGN em Satory era incendiada. As unidades das novas “Forças Armadas Europeias”, apanhadas nas instalações da Caserna Monge juntaram-se aos protestos, armadas. Foram paradas pela polícia de choque enquanto tentavam atravessar as pontes do Tamisa para chegar à Câmara Municipal, que estava então ocupada pelo Mundo Novo e partidos pró-ecomunistas, com as ruas cheias de manifestantes contra o governo conservador.” Queria ouvir o fim desta história contado pela boca do próprio Gianni.
No dia seguinte só nos encontrámos à tarde, quando o comboio já se aproximava de Paris. Gianni tinha estado a trabalhar o dia inteiro, enquanto nós descansávamos na carruagem restaurante, assistindo a um teatro móvel. A peça chamava-se “La Folie Normale” e contava a história de pessoas que rejeitavam que existisse algum problema no planeta Terra. Os “loucos”, uma família rica em 2035, queriam andar de carro apesar de já não haver gasolina disponível, queriam ir de avião para a Tailândia e queriam fazer compras na internet, como se houvesse alguém para as levar a casa. O pai da família insistia em ir todos os dias a um antigo centro comercial que estava fechado há mais de dez anos e a mãe percorria as hortas perto de casa, cuspindo nas pessoas que apanhavam vegetais, gritando pela polícia para vir prender os “ladrões de batatas”. Os dois filhos mantinham a charada ao tratarem dos pais como crianças, trazendo-lhes comida e tudo o que necessitavam, participando em todas as atividades da sociedade em sua vez e reassegurando os pais que havia um problema com a gasolina mas que ia voltar, que a viagem para a Tailândia só estava adiada, que o centro comercial tinha reaberto noutro sítio e que os ladrões de batatas tinham sido todos presos. A filha copiava a lista de compras da mãe e garantia-lhe que ia comprar na net lá de casa, porque o “router” estava maluco. Era cómico, mas também triste.
No final da peça, Gianni e Ettore entraram na carruagem e Lia chamou-os para perto de nós.
- Estamos prestes a chegar, não? - perguntou Lia.
- Ainda faltam umas horas - disse Ettore.
- Gianni, nós queremos muito que nos contes parte da ação.
- Ação?
- Sim, conta-nos o que te aconteceu na Revolução Francesa.
- Ah! OK. - ele não parecia muito animado, mas começou a falar - Então, isto foi já no Outono do Ano do Leão. O Exército Verde estava a tornar-se um exército de guerrilha muito sério. Eu não tinha estado fora da Europa, mas havia quadros tinham combatido na Guerra Civil Americana, tinham combatido o Estado Islâmico na África Oriental e na Líbia, e também nas guerrilhas das Filipinas e do Congo. Tínhamos aliados em vários governos, o que nos permitia ter acesso a algumas armas. Quando a Muralha começou a atacar campos de refugiados com as suas milícias nazis, foi o Exército Verde a defender os campos e, mais tarde, a acabar com os esquadrões petronegros que protegiam a indústria fóssil. Eu fazia uma espécie de coordenação com a Descarbonária e com a ORCA, não era um guerrilheiro. Quando estalou a situação em Lyon, eu estava ainda em Itália, Napoli tinha-se declarado cidade livre e pensávamos que Roma podia mandar o seu exército. Mas ainda estavam demasiado combalidos com o afundamento das fragatas no Mediterrâneo. As forças armadas italianas estavam muito desmotivadas e por isso houve algum alívio. Recebemos informação do que se estava a passar em Lyon e metemo-nos a caminho, umas 400 pessoas. Se fôssemos por terra, teríamos sido parados pela polícia italiana e teríamos tido de lutar, talvez nem conseguindo passar. Com o apoio da ORCA conseguimos arranjar um barco e atravessar de Nápoles até Marselha, uma agitada viagem de dois dias pelo Mediterrâneo. Quando chegámos a Marselha, a notícia mudou: a revolução estava a acontecer agora em Paris. Houve uma ordem especial dada pela cidade livre de Marselha para deixar os comboios passarem e em Lyon abriram-nos passagem. Deixámos 100 pessoas ali e seguimos para Paris no TGV. Entretanto, já lá tinham chegado pelo menos mais dois mil membros do nosso exército, vindos da Europa de Leste e Central, e até pessoas da Ásia.
- Mas então vocês juntaram-se todos em que sítio de Paris? - perguntei-lhe.
- Não, nós estávamos separados, mas em contacto pelas nossas redes. Quando chegámos não tínhamos veículos e muito poucas armas. Durante horas precisámos armar-nos e aproveitámos o facto da polícia estar espalhada pelas ruas para tomarmos as esquadras e ficarmos com as suas armas. E chegou-nos mais material pela Descarbonária, que também estava por todo o lado. Eles eram muito populares porque tinham assaltado os grandes armazéns alimentares de luxo e distribuído tudo pelos bairros mais pobres, e por isso tinham uma rede muito grande. Mas raramente nos encontrávamos cara-a-cara e era impossível identificar a Descarbonária no meio das multidões. Eles simplesmente mandavam-nos informação de onde podíamos apanhar material e nós íamos. Estava sempre no máximo uma ou duas pessoas, que nem sei se eram da organização ou se sabiam o que estavam a fazer. Alguns até ficaram surpreendidos quando viram as armas.
- E vocês estavam na tomada do Hôtel de ville?
- Sim, havia companheiros lá, mas eu não estava. Nessa altura eu estava a fazer ligação com as unidades do novo Exército Europeu amotinado. Nós íamos marchar com eles até à Câmara Municipal, mas a polícia tinha bloqueado as principais pontes com blindados e robocops. Do lado Norte do rio Sena as ruas estavam cheias de pessoas e a polícia carregava nas suas costas. Os bombeiros trouxeram camiões e equipamentos e enfrentavam a polícia também, criando uma barreira entre manifestantes civis e polícia de choque. As pessoas que tinham tomado a Câmara Municipal conseguiram ativar o sistema de comunicações de emergência e lançaram a informação: marchar para a Assembleia Nacional. Nós já estávamos do lado certo e não existia qualquer obstáculo policial entre nós e o parlamento. Não nos seguiram. Quando chegámos à assembleia nacional, vindos de lado, não havia polícia. Havia até rumores de que parte deles se tinha juntado a nós, mas não vi. No entanto, em vez de polícia estavam, sem exagerar, uns 4 mil cães-polícia e os céus cheios de drones. À frente dos manifestantes desarmados estavam as unidades organizadas, as militares e as militantes, e atrás colocaram-se o que provavelmente era naquele momento mais de um milhão de pessoas. Quando os drones e os cães atacaram, a maior parte dos drones foi abatida, não sem antes largarem centenas de bombas de dissuasão e gás pimenta. Mas o maior problema eram os cães robots. Lançavam choques elétricos, disparavam balas de borracha e gás lacrimogénio. Além disso, circulavam quatro veículos auto-conduzidos com LRADs, uma espécie de canhões sonoros, que quando apontados às pessoas as atiravam ao chão, aos gritos. Ficámos presos naquela situação durante uma meia-hora. Até que alguém, isto é, a Descarbonária, trouxe também gadgets. Toda a gente recuou em simultâneo, levando os cães a avançar e os LRADs a parar de disparar. No meio deles foram detonados o que depois me explicaram serem pulsos eletromagnéticos, que os desativaram totalmente. Num momento estávamos na rua e no minuto seguinte estávamos dentro da Assembleia Nacional. Militares, pessoas armadas, todos fomos ultrapassados pelo povo em fúria. Essa noite mesmo, da varanda da Assembleia Nacional, Mathilde Darleaux leu a declaração a 1ª República Social-Ecológica da Europa. Foi muito emocionante, depois da confusão dos dias anteriores. A polícia tinha ido proteger o Euronext, enquanto outros manifestantes tinham ocupado o Banque de France. Demorou mais de uma semana até as coisas ficarem claras e o novo governo social assumir o poder.
- A minha mãe também estava cá?
- Não, não. Nessa altura a Marta estava nos Estados Unidos.
Olhei pela janela para ver que entrávamos em Paris. Gianni pediu para desligarmos o gravador e falarmos um pouco sobre o futuro. Em Bruxelas íamos conhecer Josephine Alphonse, líder revolucionária que agora era das principais responsáveis da Organização do Trabalho, e Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Levei António, que entretanto tinha adormecido, para a nossa cabine. Três horas depois, o comboio parou na estação Bruxelles Midi.