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42: Gianrocco em Madrid

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042. No sétimo episódio, destaca-se o encontro entre Alexandre e Gianrocco, que colaboram na procura de soluções para os desafios ambientais e tecnológicos.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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Recebi uma chamada no meu móvel, de um número que não conhecia. Estava pendurado num telhado a reparar um sistema elétrico de um centro comunitário, com arnês e capacete posto, mas consegui atender.

- Ciao.
 - Sim?
 - Alexandre, es Gianrocco Fatin.

- Ah, olá, olá.
 - Supo que queres falar comigo. Podes falar?
 -  Uff, agora tou a trabalhar, Gianrocco. A Fatima enviou-me o teu email, posso contactar por lá?
 - Ok. Eu vou viajare e só volto ne trê meses. Se quieres enviame as tuas questões, posso responder por lá.
 - Posso saber para onde vais viajar?
 - Vou para Barcelona, Madrid e Paris. Tu consegues encontrar-me em algum destes sítios?
 - Acho que é possível apanhar o noturno para Madrid. Quanto tempo vais ficar?
 - Quedo as 3 semanas primeiras de Outubro. Vens ter comigo?

- Preciso ver umas coisas, mas é possível que sim.
 - OK! Se precisares ajuda para dormir eu te posso ajudar.

- Muito obrigado. Eu contacto em breve.

- Arrivederci, Alexandre!

Senti que tinha perdido uma oportunidade ao não falar com ele naquele momento, mas fiquei animado com a ideia de viajar e conhecer pessoalmente uma figura histórica como era o Gianrocco. Quando cheguei a casa contei as novidades à Lia e ela não me pareceu muito feliz com a notícia.

- O bebé tem quatro meses e estás a propor deixar-me aqui com ele semanas sozinha.
- Não, não, eu achava que podíamos ir todos.
- Mas onde ficamos?
- O Gianrocco disse que era possível ajudar com um sítio para ficarmos alguns dias.
- E tu tens quilómetros? Eu acho que não tenho suficientes por causa das viagens no ano passado.
- Eu não viajo há quatro anos, tenho quilómetros mais que suficientes para irmos a Madrid.

Lia sorriu.

- Quando vamos?

Durante as semanas seguintes preparámo-nos para a viagem, confirmei com a OCT - Organização Central do Trabalho - que seria possível abrir duas semanas no meu calendário, ainda mais fácil por ter sido pai há tão pouco tempo, e informei a assembleia do bairro de que não estaríamos presentes nas comissões a que pertencíamos nesse período. Recolhi material sobre o período revolucionário e sobre o próprio Gianrocco nas bibliotecas e nos materiais dos meus pais.

Na sexta-feira às 14h da noite apanhámos o comboio noturno para Madrid. Embora exista um comboio rápido, eu sempre tinha achado os comboios-cama românticos (e com o bebé é o melhor) e práticos, para chegar fresco de manhã a Madrid. Enquanto a Lia e o António dormiam, eu li alguns papéis para me preparar para a minha entrevista do dia seguinte.

©Nuno Saraiva

 - Nós denunciamos e expomos os governantes, de todos os partidos, há anos. Mas o verdadeiro governo de Itália, os verdadeiros governos do mundo, não são apenas estes arremedos fascistas. Estes são apenas peões do capitalismo económico, da ENI, da ILVA, da FIAT. O nosso objetivo não é derrubar este governo, que seria rapidamente substituído por outro para manter o mesmo percurso. Nós estamos a convocar a sociedade toda a construir um futuro, porque no rumo em que estamos, apenas temos a catástrofe pela frente.
 - Mas acham que com este tipo de disrupção, a sociedade vai prestar-vos mais atenção?
 - A sociedade já está a prestar-nos atenção, e até pode não gostar da maneira como estamos a tentar acordá-la, porque o sono é profundo, mas está a acordar. Mais e mais pessoas se estão a juntar a nós, apesar de todo o ruído das franjas mais conservadoras.
 - Mas que legitimidade têm vocês para achar que a sociedade tem de vos ouvir? Vocês não são cientistas, nem sábios que saibam mais do que as restantes pessoas. Porque não levam as vossas ideias às urnas, fazendo um partido político?
 - Os cientistas estão a alertar-nos para a crise climática há décadas. Os governos reconhecem que esta crise existe mas não cortam as emissões. A nossa legitimidade vem do facto de estarmos vivos neste momento. Estamos vivos e de olhos abertos, reconhecendo que se não agirmos agora, as condições que permitiram o aparecimento da civilização humana vão desaparecer - em alguns sítios já desapareceram, e a situação só se está a agravar. Fazer um partido político para entrar no jogo eleitoral é perder tempo: a crise climática não vai corresponder aos vários calendários eleitorais e às pequenas disputas políticas. As instituições para onde seríamos eleitos foram construídas para se auto-preservarem. Mesmo que provocássemos o maior terramoto eleitoral da história e ganhássemos as próximas eleições, que nem sei em que ano são, as medidas necessárias para travar a crise climática seriam paradas pelas outras instituições feitas para preservar as primeiras: a presidência da república, o tribunal constitucional, os tribunais e outros. Todo este aparelho está a perpetuar o caminho da catástrofe.

- Mas isso não é antidemocrático? Vocês são uma minoria. Estão a falar dos garantes da democracia como vossos inimigos.
 - Não consigo imaginar nada mais antidemocrático do que o colapso da nossa civilização. E a razão pela qual estamos a fazer o que estamos a fazer é para falar diretamente com a sociedade, porque não é só nossa responsabilidade agir, é de toda a gente que está viva. E também o fazemos porque a imprensa não o fará por nós.
- Então do que está a falar é de uma revolução. Mas uma revolução sem imprensa livre, um golpe de estado.
 - A ideia de que uma imprensa privada que é maioritariamente propriedade das grandes empresas que mandam em Itália e em outros países é uma imprensa livre é muito discutível, para não dizer que é factualmente errada. Mas queremos fazer uma revolução sim, e não um golpe de estado. Senão não estávamos a falar com toda a sociedade.
 - Mas eu estou aqui, como imprensa. Não é estranho, segundo a vossa ideia?
 - Se o negócio é vender informação, e nós somos informação, o que estão aqui a fazer é um negócio.
 - E não se pode fazer um negócio e fornecer um serviço à sociedade ao mesmo tempo?
 - Quando não há uma fronteira entre onde começa um e acaba outro, não. É isso mesmo que acontece quando a energia ou os transportes se tornam um negócio: deixam de ser um serviço e passam a ser só uma mercadoria. É por isso que estamos nesta crise.
 - Obrigado, Gianrocco.
 - De nada.

©Nuno Saraiva

Ecomunistas tomam o poder em Itália, na Grécia, Eslovénia, Espanha e Portugal

Na sequência da ordem de tomada das cidades livres europeias, houve motins em várias Forças Armadas mobilizadas para o efeito. Várias unidades prenderam os seus oficiais, com especial foco das “unidades naturalizadas”. Na sequência destes acontecimentos, dirigentes políticos ligados à “Muralha” em Espanha e Itália fugiram do país, criando um vazio de poder. Neste momento, alianças lideradas pelo movimento Ecomunista ocuparam os parlamentos em Roma, Atenas, Ljubljana, Madrid e Lisboa, enquanto o Exército Verde ocupou os bancos centrais, bolsas de valores e portos nas capitais. Há rumores de que membros da Descarbonária e do Mundo Novo também farão parte das alianças políticas, embora se aguardem informações precisas sobre o processo. Em Roma, um dos porta-vozes ecomunistas, Gianrocco Fatin, anunciou a abolição dos campos de refugiados, a cessação imediata dos ataques à Federação de Cidades Livres, a nacionalização das indústrias fósseis e seu desmantelamento. “Hoje começamos um novo período na História da Europa, e convocamos as pessoas a sair à rua novamente no próximo sábado para comemorar a Revolução Europeia que se junta às revoluções africanas, francesa e brasileira. Um novo mundo está a nascer, a Humanidade não vai aceitar desvanecer na poeira do lucro e da avareza do capital. Vamos expulsar o ódio que nos tem oprimido durante as últimas décadas. Vamos construir, com as nossas mãos e a nossa força, o futuro. Vamos travar o caos. As unidades insurrectas do exército nacional aceitaram a constituição do governo provisório em Itália. Não vamos exercer uma vingança sobre aqueles que nos perseguiram durante anos, mas eles terão de responder perante o povo.” declarou o italiano num vídeo em direto do Parlamento em Roma, transmitido no BlueSky. Vários elementos dos conselhos de administração e principais acionistas das indústrias fósseis foram detidos e os seus bens confiscados, tendo-se iniciado um processo de julgamento dos mesmos por genocídio e crimes contra a Humanidade, segundo informação do governo provisório italiano.

Guardei os papéis e baixei a janela. Já tinha lido alguns livros enviados para os meus pais em que o nome Fatin aparecia, ligado a organizações como os Ecomunistas e o Mundo Novo. Era uma figura muito importante! Só me preocupava não lhe fazer perguntas banais e para as quais não fosse fácil encontrar a resposta só consultando em algum livro ou na net. Faltava-me conhecimento.

Depois de uma hora, o comboio parou. A qualidade das linhas e serviços ainda é fraca, e a nova indústria ferroviária tem tido dificuldades em produzir a quantidade necessária de comboios para cobrir todo o território e as avarias frequentes. A transformação das carroçarias dos automóveis em outro material metálico é difícil, em particular quando falamos de comboios. Só a transformação do material metálico e plástico dos automóveis em bicicletas é que está a funcionar em pleno, porque é muito mais simples. Ainda estávamos parados quando adormeci. Fechei os olhos e quando os abri estávamos a parar em Madrid. A Lia dava de mamar ao António.

Saímos da carruagem na estação de Chamartin. Eram 1h da manhã mas já estavam 28ºC. Fomos comer a um dos “cafés” que agora só há mesmo à volta dos locais de concentração de transportes. Pedi churros com doce e chocolate quente para mim e para a Lia.

- Lo siento, no hay chocolate ya hace 2 años. Pero le traigo otra bebida?

Bebemos chá enquanto o senhor tirava os churros da airfryer. O bebé estava super divertido com a música, os barulhos altos que saíam das máquinas e das pessoas que por ali estavam, muito animadas. Nessa altura entrou no bar um homem moreno, alto e com ombros largos. Tinha uma barba muito preta. Apesar do cabelo grisalho, não parecia muito velho, com pele lisa, e olheiras muito cavadas. Sorriu quando me viu e gritou.

- Alessandro!
- Sim. - respondi eu
- Aproximou-se e deu-me um grande abraço e dois beijos, como se nos conhecêssemos de sempre. Afastou-se e abraçou a Lia, beijando-lhe as faces também.
- E têm um bambino! Como se chama?
- António.
- Ah, como o nono!

Fez cócegas na barriga do António, que sorriu animado.

- Que bom ver-te de novo, Alex!
- Eu acho que nunca nos vimos.
- Vi fotos tuas molte ani fa. Devias ter uns 12 anos. La tua mamma sempre mostravaci le tue foto.
 Sorri.
- Scusa, vou ligar o simultaneo.

Tirou do bolso das calças o pequeno aparelho que colocou à volta do pescoço, que fazia tradução enquanto a pessoa falava.

- Vocês têm de ficar no centro do Mundo Novo aqui perto. É um edifício bastante grande e há vários apartamentos para viajantes e convidados. Eles deram-me um apartamento muito grande e eu estou só com o meu companheiro, apesar de ter vários quartos. Podem instalar-se lá, se quiserem. Quantos dias planeiam ficar?

- Dois, se for possível.

- Claro, claro. Vamos. Eu hoje posso falar contigo até às 3h.

Fomos a pé até um grande edifício próximo dali. Na entrada, o Gianrocco falou com o senhor que estava à porta, que nos ajudou a transportar as coisas até ao apartamento no 12º andar. Era muito alto e tinha uma excelente vista sobre a cidade de Madrid. Explicou-me que aquela tinha sido a sede de antigas petrolíferas. Era muito alta e ao lado tinha três estaleiros de obras. Explicaram-nos que tinham sido outras torres semelhantes àquela, que estavam a ser desmanteladas, como outros arranha-céus, para reutilizar os seus materiais em reparações e isolamento de casas. A própria torre Novo Mundo (em tempo tinha-se chamado torre Cepsa) começaria a ser desmantelada no ano seguinte, explicou-nos. Subimos no elevador até ao andar 40. O Gianrocco contou-me que aquele era o maior edifício do país e um dos maiores da Europa. Abriu a porta e entrámos. Levou-nos até a um dos quartos.

- Alex, podemos falar agora um pouco antes de eu ter de sair.

- Sim, vamos.

A Lia e o António brincavam em cima da cama. Pisquei-lhes o olho e fomos para a mesa da sala.

- Entrevista com Gianrocco Fatin.

- Gianni, podes tratar-me por Gianni.

- Gianni, obrigado pela entrevista. É um prazer conhecer-te.
- O prazer é todo meu, de conhecer o filho da Marta.

- Começava por perguntar-te algo que a Fatima me contou quando falámos. O que foi a Assembleia Sangrenta? E qual foi o papel do movimento Ecomunista na mesma?
- Foi um massacre que ocorreu em Londres, em que foram mortas centenas de pessoas ligadas à petrolífera Shell. Alguém colocou explosivos na cave do hotel onde se realizava a Assembleia Geral de Acionistas e, durante a reunião, ocorreu uma detonação. Foi uma operação criada para incriminar o movimento climático global e para decapitar a direção da Shell. Nessa altura já existiam frações armadas de outros movimentos: a ORCA, a Decarbonari e os Neolludistas, mas eles não tinham relação política connosco. O movimento Ecomunista internacional tinha sido fundado apenas há um ano, mas já era considerado uma enorme ameaça pelo poder. Foram plantadas provas contra membros nossos no local do crime, e as polícias vieram imediatamente tentar apanhar-nos. Prenderam quase todas as nossas pessoas com alguma presença pública, e várias organizadoras. A tua mãe foi detida, por exemplo. Nessa, altura nós já estávamos preparadas para ser atacadas, então sofremos o golpe, mas não conseguiram destruir-nos. O Exército Verde foi ativado nessa altura. Apesar da intensa campanha, mediática e repressiva contra nós, continuámos a operar em quase todos os países. Durante seis meses aceleraram processos judiciais para condenar-nos rapidamente, colocando até muitas das nossas pessoas em isolamento. Em Inglaterra chegaram a condenar pessoas do JSO a 40 anos de prisão, mas era uma fraude. Menos de um ano depois surgiram provas da realidade: a Saudi Aramco foi hackeada e foram revelados os memorandos internos que demonstravam como tinha sido a petrolífera a preparar o atentado com mercenários corsos. Embora os governos de vários países tenham assumido que tínhamos sido incriminados, muitos tribunais e polícias continuaram a não libertar as nossas pessoas. Então organizámos fugas em massa de várias prisões, articuladas pelo Exército Verde, que fez gato sapato das autoridades. Em vários locais havia manifestações a exigir a nossa libertação, com ocupações de ministérios e indústrias. Começou uma vaga de um mais de um mês de sabotagem de gasodutos e hidrogenodutos na Europa e até nos Estados Unidos, apesar de estarem em guerra. A nossa popularidade nunca tinha sido tão grande. Os governos acabaram por libertar-nos todos, mas os que hesitaram ficaram muito descredibilizados no processo.

- Consegues fazer um contexto de como as coisas ocorreram antes do período revolucionário na Europa?
- Bem, o período revolucionário continua até hoje, apesar das coisas estarem mais calmas. Se fizermos uma análise histórica, a Europa estava há décadas a tentar resolver os problemas insanáveis do capitalismo europeu, a desigualdade entre países centrais e periféricos, tentando equilibrar a sua falta de recursos energéticos fósseis, de matérias primas raras e manter relações comerciais extremamente favoráveis (para si) com países mais pobres e antigas colónias. Era um continente velho em todos os sentidos: pirâmide etária, prisão ao passado esclavagista e colonial, quase irrelevância geopolítica (perante os grande blocos chinês, russo e americano, a Europa punha-se em bicos de pés, sem grande sucesso), nenhuma imaginação ou capacidade de disrupção política. Era o pior dos bons alunos do neoliberalismo, ainda a copiar as suas lições históricas dos séculos anteriores. A evolução da União Europeia fracassava em todos os principais aspectos no início da década de 20: havia guerras nas suas fronteiras, extrema desigualdade entre os países, uma geração jovem inteira sem acesso a oportunidades, e uma infraestrutura institucional que agravava todas essas tendências. Por cima disso, pendia a hecatombe climática. Em 2019 começaram as primeiras greves climáticas, na altura convocadas por jovens (os chamados Fridays for Future) e o movimento de desobediência civil em massa, com origem no Reino Unido, os Extinction Rebellion. Eram os primeiros ensaios do período revolucionário. Estavam ali alguns dos quadros e militantes que fariam mais tarde as revoluções, mas nem todos vinham dali. Com  a pandemia de Covid-19, os movimentos perderam dinamismo, e houve uma irrupção social nos Estados Unidos (os Black Lives Matter). Depois disso, começou um longo período de dispersão e reflexões táticas e estratégicas. O programa político base estava definido e tinha sido escrito pela comunidade científica: era preciso cortar 50% das emissões de gases com efeito de estufa globais até 2030, em relação às emissões de 2010. Mas faltava a componente política. O programa não podiam ser só emissões, esta era a maior transformação material da história da Humanidade, e o sistema capitalista jamais a aceitaria. Também era uma transformação que, se fosse incompleta, seria basicamente inútil. Além disso, se fosse orientada para os interesses dos ricos, implicaria a morte de milhares de milhões de pessoas. Era preciso um programa político muito além de energia e transportes. Incrivelmente, ao invés de um acordo para travar o colapso, a burguesia económica e política da altura escolheu o colapso civilizacional para manter o sistema, para continuar e ganhar dinheiro durante mais uma dúzia de anos. Olhando para trás, é difícil de entender. Por isso é tão importante ouvir os testemunhos dos CEOs das petrolíferas no Grande Julgamento. Aquelas pessoas julgavam não ser humanos como nós, eram fanáticos religiosos, só que a sua religião era o capitalismo e o capitalismo recompensava-os pela sua devoção… Aliás, eles recompensavam a si mesmos. E tinham recursos suficientes para manter exércitos inteiros, partidos, imprensa, toda uma estrutura para evitar qualquer transformação ou sequer o abrandamento.

- E como se organizaram vocês?
- Dentro do movimento havia grande diversidade ideológica, e o nosso acordo político à partida era frágil, quanto grupos e coletivos que se começaram a encontrar, se forçaram a encontrar perante o avance do caos. Havia um acordo total acerca da necessidade dos cortes de emissões, mas grande hesitação acerca das táticas para atingi-los. Enquanto vários grupos tentavam empurrar o movimento para radicalização e ações diretas cada vez mais contundentes, havia sempre muitos travões em fazer coisas em que muitas pessoas fossem detidas ou que pudessem ser presas.

A perspetiva do que é que o movimento era, qual o seu papel, também era complexa. Algumas achavam que o nosso papel era chamar a atenção e pressionar os governos para fazer os cortes, mas depois de anos a fio de falha reiterada em conseguir o que era necessário, quase todas abandonaram essa proposta. Mas mesmo depois desse ponto ultrapassado, havia ainda questões centrais: então se não eram os governos que o iam fazer quem era? O movimento? Como? Transformar-se em partido? Mas para isso não havia já outros partidos? Crescia desde o início da década a questão do que fazer com a palavra de ordem “Mudar o sistema, não o clima”. O que significava mudar o sistema? Ganhar eleições? Vários partidos verdes tinham ganho eleições sem conseguir fazer o que era necessário. E a esquerda que fazia do clima programa político não conseguia pensar além do que lhe pudesse garantir os votos suficientes para influenciar um programa de governo nacional ou local. Era preciso muito mais do que ganhar eleições, era preciso fazer revoluções. Mas não havia programas para isso, não havia tradições ou guiões para isso. Perante a ausência dessas referências, a maior parte das organizações congelava, mesmo perante o caos.

- Mas outras organizações não estavam congeladas, nomeadamente da extrema-direita…
- A extrema-direita não tinha pruridos. Em qualquer catástrofe climática despejava o seu programa de ódio: organizavam pogroms a campos de refugiados depois de incêndios florestais, acusando refugiados e migrantes de ateá-los; quando havia cheias ou furacões atacavam migrantes que pediam auxílio, quando havia fome culpavam judeus, negros, gays e pessoas trans por terem despertado a “fúria divina”. Eles não tinham qualquer hesitação sobre o poder. E foi através de eleições que muitas vezes chegaram ao poder e não hesitaram em impor as barbaridades que sempre desejaram.

- E como conseguiu o vosso movimento finalmente avançar?
- Partes do movimento e alguns pensadores procuravam novas portas e, muito antes de chegarem à ideia de Ecomunismo, chegaram à teoria revolucionária do “movimento enquanto partido”. Muita gente hesitou, mas gente suficiente avançou para a ideia de que o movimento revolucionário não podia delegar a sua tarefa em abstrações. Ter que ter muita gente não podia ser um travão. Não podíamos simplesmente ficar presos em noções como “o povo” ou “a classe”, tínhamos de avançar enquanto ainda havia alguma coisa para salvar. A resistência foi enorme, até entre as organizações que se apresentavam há décadas como “revolucionárias”, que se fixavam nas fórmulas antigas das condições objetivas e subjetivas para fazer uma revolução, que era preciso ter a maior parte das pessoas do nosso lado antes de avançar, que a violência não era método para chegar ao poder, que não tínhamos legitimidade para avançar. Mas não tinham qualquer proposta alternativa a tentar derrubar o capitalismo e travar o colapso climático, o que os deslegitimava perante o movimento. Apontavam-nos que estávamos numa deriva sectária, que íamos ficar isolados, enquanto na verdade o campo progressista todo ia ficando cada vez mais isolado perante a ascensão do terror climático e da extrema-direita que o cavalgava.

- Porque escolheram chamar-se Ecomunistas? Não tiveram receio de ficar associados aos comunistas soviéticos e à Rússia?
- Nessa altura, sabíamos dos imensos riscos que era urgente tomar. Um desses riscos tinha que ver com a ligação política à tradição histórica revolucionária. Não queríamos saber dos estalinistas que usavam o nome “comunista”, e que em grande medida eram negacionistas climáticos, obcecados com a ideia de que a revolução era uma questão de fábricas e operários metalúrgicos e não uma questão de travar o caos. Mas por outro lado, não podíamos abdicar da tradição revolucionária comunista, das profundas transformações que ocorreram em tantos locais por todo o mundo, que ainda era, em conjunto com as guerrilhas de independência colonial, a principal referência para a ação revolucionária. Apesar da retórica ou, aliás, por causa da retórica anti-sistema da extrema-direita, arriscámos (foi só mais um risco, na altura tomámos outros muito maiores) chamar-nos Ecomunistas. Partilhávamos com a tradição comunista a necessidade de destruição do capitalismo, abolição dos privilégios das elites dos 1% e, a nossa prioridade imediata, o desmantelamento da infraestrutura do capitalismo fóssil.

Outra grande divergência tinha que ver com o que fazer depois dos cortes serem atingidos. E aí sabíamos que era mais importante fazer as revoluções que ter o acordo total sobre o que ia acontecer depois. Havia ecoanarquistas, ecossocialistas, ecofeministas, decrescimentistas puros, e misturas entre tudo isto. Conseguimos juntar números suficientes para fazer planos para tentar revoluções em vários países e foi o que fizemos. O nome era mais uma questão de comunicação do que de outra coisa.

O nosso programa político, o que fez o movimento Ecomunista, era a revolução e o desmantelamento dos fósseis. Passados todos estes anos, acho que tivemos toda a razão. O que se passou em diferentes territórios foi diverso, hoje organizamo-nos de maneiras diferentes, mas chegámos a muitas soluções parecidas e as sociedades, que há pouco mais de uma década asfixiavam no fumo e no desespero da falta de visão de futuro, aspiram hoje a futuros melhores do que o passado. Assaltámos o Palácio de Verão e ganhámos. E não fizemos o que o Estaline fez. Ainda somos um movimento global, aberto, pragmático e em constante reformulação. E em diferentes contextos fazem-se coisas muito diferentes, não há fórmulas únicas. Vivemos num planeta em grande mudança e para continuarmos a criar um futuro, precisamos continuar a mudar.

- E como planearam a revolução?
- Ui, essa pergunta não é fácil de responder com o tempo que tenho agora. Podemos deixar para mais tarde ou amanhã? Eu e o meu companheiro vamos ter reuniões o dia todo e depois gostávamos de vos levar a jantar. Pelas 14 da noite? Vimos ter convosco aqui?

- Sim, claro. Mas às 14h já é noite?
- Sim, acho que já é. Ainda não te habituaste ao horário revolucionário? Aproveitem para passear. Está fresco, dá para andar na rua o dia todo. Vão conhecer as partes novas da cidade, se não conhecem ainda.

- OK, obrigado.
- Podes deixar a chave com o senhor lá de baixo.

©Nuno Saraiva
Texto de João Camargo

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