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42: Iluqsi e a Guerra dos Salares

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 21.º episódio, Alex viaja pela América do Sul enquanto investiga a influência da sua mãe nas lutas ecomunistas, enfrentando novas decisões que o afastam da família e o levam a descobrir conflitos e desafios profundos relacionados com a escassez de recursos e as migrações forçadas.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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“Quando finalmente acabou a onda de calor, na noite de 2 de Agosto, começou uma enorme tempestade de relâmpagos. O céu estava todo iluminado, com fortes trovões e vento. Apesar de ver os raios caírem à minha frente e à distância, todo o prédio em que vivíamos abanava. Já não tínhamos eletricidade há dois dias, em casa ou nas ruas, pelo que o efeito das luzes ainda era mais espetacular. As crianças choravam alto. Mas não começou a cair água, que tanto precisávamos. A atmosfera cheirava a enxofre. Da minha janela consegui ver os incêndios a começarem. Em breve, um longa linha laranja ocupava o escuro horizonte quase todo. No início não se via muito fumo, mas em breve chegou o cheiro e o vento aumentou. Os trovões continuavam, criando mais incêndios que se iam ligando uns aos outros, criando uma mancha de fogo cada vez maior. O vento transportava faúlhas de um lado para o outro e rapidamente tive de fechar a janela porque as folhas incandescentes começaram a aterrar na varanda. Rapidamente arrumei uma mala com medicamentos, alguma comida e as jóias de ouro da minha mãe. Corri para as crianças e levantei-as. Precisávamos sair dali. Quando voltei a olhar pela janela, o fogo já não era uma linha laranja longínqua, mas uma onda que se aproximava, ruidosa. Abri a porta de casa e o barulho era quase ensurdecedor. A temperatura tinha voltado a aumentar, mas agora o calor só vinha de um lado: o das chamas. Um camião de bombeiros passou pela estrada a grande velocidade na direção do incêndio. As faúlhas nesta altura já caíam por todo o lado e havia pequenos fogos a poucos metros de distância de nós. As crianças choravam e tossiam, já completamente acordadas. Enfiei as três no banco de trás e dei-lhes panos para taparem a boca. Pus a máscara na cara e arrancámos na direção da barragem. Na direção contrária continuavam a passar a grande velocidade carros de bombeiros e da polícia. Olhando pelo retrovisor já não conseguia ver quase nada por causa do fumo. Dos dois lados da estrada havia pequenos incêndios, mas quanto mais avançava mais me assustava o facto de haver fogo de todos os lados. Em certas zonas, as chamas já estavam no asfalto, empurradas pelo forte vento que produzia um ruído altíssimo, como explosões contínuas, entrecortadas com berros de animais. O carro também estava muito quente. A única coisa que eu sabia era que não podia parar. Por causa do fumo e das chamas via cada vez menos, seguindo com atenção o separador branco no meio da estrada, que conseguia enxergar uns quantos metros à frente. A situação era tão má que quase não consegui travar quando apareceu o carro parado no meio do caminho. Desviei-me, contornando-o. Olhei pela janela para dentro do pequeno Corsa branco. Estava alguém no lugar do passageiro, com a cabeça encostada no volante, uma mulher jovem. Buzinei e não reagiu. Buzinei de novo e nessa altura que uma longa chama projetou-se na frente do meu capô. As crianças gritaram e senti o meu braço esquerdo a arder. Arranquei imediatamente. Faltava perto de um quilómetro para chegar à barragem e eu só imaginava que íamos morrer naquela situação, dentro do carro. De repente abriu-se uma clareira nas chamas e entrámos numa zona onde o fogo estava menos intenso. Acelerei até entrar com os pneus da frente dentro de água. Quando tentei abrir a porta, queimei-me. Com uma camisola na mão, abri a porta e corri a tirar as crianças lá de trás. Os dois mais velhos, Lucas e Miguel, berravam e tossiam de forma descontrolada. A pequena Aline estava inanimada, mas respirava. Enfiámo-nos dentro da água tépida para descobrir pouco alívio do calor. Todo o meu lado esquerdo, em particular a cara, ardeu no contacto com a água. Ficámos ali, mergulhados até ao pescoço para tentar refrescar e esperar sobreviver ao fogo, que nas horas seguintes se foi aproximando das margens da barragem, ora de um lado, ora do outro. Pelo ar voavam faúlhas incandescentes e um fumo que se engrossava e desaparecia. Ficámos ali, submersos até à cabeça, tossindo durante horas, eu segurando as crianças que iam adormecendo e acordando com as dificuldades de respirar. Ficámos assim  até o dia começar a lançar raios no horizonte. De manhã, já sem fogos visíveis à nossa volta, saímos da água. Os dois pneus de trás do carro estavam derretidos e vazios, enquanto o lado esquerdo estava com a toda a tinta levantada e queimada. Deitei-me no chão e chorei, perdendo a consciência quando apareceram as luzes de um carro de ambulância. Nessa noite, mais de 30 bombeiros e 50 civis morreram nos incêndios, incluindo os carros que passaram por nós, a mulher de 20 anos pela qual passámos na estrada e a minha filha, que deixou de respirar na ambulância essa mesma manhã.”

A terrível história era contada por uma mulher que tinha sobrevivido aos grandes incêndios florestais da Serra do Mar, no Paraná. A área de mata atlântica perdida esse ano tinha chegado aos 2,5 milhões de hectares, incluindo os que tinham sido plantadas com eucaliptos como projeto de captura de carbono, onde os fogos começaram. Com a seca e a subida de temperatura estas árvores australianas, em vez de reduzirem a temperatura e os incêndios, aceleraram-nos, despejando bombas de fogo a dezenas de quilómetros de distância. Mais de 600 pessoas morreram durante os incêndios que perduraram por cinquenta dias. Desliguei o computador, pensando que em breve começaria de novo a época de incêndios por ali. Ser apanhado num incêndio dentro de um comboio, por muito rápido que fosse (e este Trem Sulista era quase de alta velocidade), devia ser uma experiência assustadora. A estratégia de plantações florestais em grande escala para absorver carbono tinha sido catastrófica. Apesar de alguns raros casos de sucesso, estes projetos tinham arruinado várias florestas antigas. A obsessão com as árvores de crescimento rápido - pinheiros, eucaliptos, casuarinas e tecas - impulsionada pela indústria do papel e da madeira, sempre à procura de novos negócios, tinha levado a resultados desastrosos. A segunda tentativa a nível global funcionou bastante melhor, com outras densidades de plantas e com a adaptação das plantas aos territórios e disponibilidade de águas, com combinações destinadas a criar verdadeiras florestas e a promover que os animais, insectos e cogumelos (além das pessoas) pudessem viver lá. Mas isto só tinha acontecido após o colapso da indústria do papel e da celulose.

A viagem de São Paulo a Buenos Aires no Sulista demorou apenas catorze horas. A linha de comboio era muito recente, aproveitando a melhoria de relações entre o Brasil, o Sul e a Argentina. A história entre os três territórios durante a última década revolucionária tinha sido conturbada, levando mais que uma vez a situação de conflito que felizmente não se generalizaram. O trajeto mais direto para Buenos Aires incluiria passar pelo Paraguai, mas a ditadura católica dos colorados cruzados, um dos poucos resquícios da Muralha na América do Sul, não permitia essa passagem. A existência de um estado fascista no meio de tantos ecomunistas e aliados estava fortemente associado com a guerra chileno-argentina e com as independências indígenas.

A Guerra dos Salares e a independência de Wallmapu e Tehuelche

O conflito prolongado no Peru, opondo Fujimoristas a Mariateguistas, deu origem a uma fuga constante de comunidades para Sul. O colapso dos lagos glaciares Palcacocha e Riticocha matou mais de 100 mil pessoas, o que levou ao famoso Iluqsi”, o grande êxodo dos Quechua (acompanhados por grandes comunidades de Achuares e Aymaras) rumo à Argentina e ao Chile. Estima-se que entre 3 e 4 milhões de pessoas partiram do país num só ano. O grosso desta migração percorreu o litoral oeste do continente, desde Huaraz até à região de Los Rios, no Chile. A sua passagem acrescentou tensão à Guerra dos Salares, que no fim dos anos 30 tinha começado com pequenos conflitos nas fronteiras entre a Bolívia, a Argentina e o Chile.

©Nuno Saraiva

A exaustão das reservas de lítio dos salares de Atacama e del Hombre Muerto levou ao avanço para a exploração de reservas secundárias do mineral, considerado na altura essencial à transição energética. A crescente escassez do recurso fazia os preços subir nos mercados de especulação internacional. As descobertas de lítio no Salar de Pular e do minério em profundidade no Salar de Incahuasi provocaram o início da guerra. Perante o agravamento da desertificação no Norte do país, o governo chileno recusou a exploração para preservar os aquíferos subterrâneos debaixo de ambas as reservas. A experiência com a destruição de Atacama tinha levado ao derrube da presidente chilena e o novo governo não queria arriscar-se a semelhante destino. As relações entre os dois países também vinham em agravamento desde que a dinastia Milei estava no poder na Argentina. A presidente Milei, que já tinha militarizado a indústria petrolífera, militarizou também a do lítio e mandou avançar a exploração. O governo chileno respondeu concentrando militares junto à fronteira. Durante duas semanas manteve-se um impasse, até que num ato inesperado a Marinha Argentina ocupou as ilhas Picton, Lennox, Nueva e Navarino, na Terra do Fogo. No mesmo dia, aviões da Força Aérea Argentina desembarcaram mais de 500 homens na Antártida chilena.

Pouco depois, o exército chileno invadiu a Argentina, conquistando em rápida sucessão Mendoza e Córdoba, perante fraca resistência terrestre. O que parecia abrir caminho a uma rápida vitória chilena, com uma ofensiva final sobre Buenos Aires, foi travado pela campanha de sabotagem de ecomunistas chilenos contra o governo nacional e contra as linhas de abastecimento das forças armadas. Na Argentina, várias unidades do Exército e Força Aérea argentinos sublevaram-se perante a gestão catastrófica da ditadura mileista, enquanto milícias e grupos armados começaram os ataques às instalações petrolíferas em Néquen, Chubut e Santa Cruz. Ambos os governos tinham na mão situações extremamente voláteis, pressionados pelas suas forças armadas, por ecomunistas e, crescentemente, pelas comunidades indígenas, ampliadas pelo Iluqsi e radicalizadas pelo plurinacionalismo indígena. Os meses seguintes seriam marcados por uma situação estacionária mas violenta, com uma importante parte do território argentino ocupada por militares chilenos, que por sua vez eram acossados pelas comunidades locais e por ecomunistas. Do lado chileno, a repressão sobre o movimento ecomunista não deteve a sabotagem, as greves e os fortes protestos, em particular das comunidades indígenas, lideradas por maiorias quechuas e mapuches. A sangrenta batalha da Antártida, entre as unidades militares chilenas e argentinas, levou ao desembarque de tropas norueguesas, australianas e francesas no continente gelado, tentando travar a expansão do conflito para o resto do território polar.

No final de Novembro, a Federação Plurinacional dos Povos Indígenas apelou à constituição da nação de Wallmapu, o que levou à ocupação dos territórios historicamente ocupados pelo povo mapuche, cortando Argentina e Chile ao meio. Milhões de indígenas mapuches, quechuas, mas também guaranis, aymaras, tobas e muitas outras comunidades deslocaram-se de toda a América Latina na direção do que viria a ser o território Wallmapu. A Sul, uma ofensiva do exército chileno, destinada a conquistar Vaca Muerta, foi repelida pelas novas forças militarizadas de Wallmapu, apoiadas oficiosamente pela Descarbonária, pela ORCA e pelo recém-formado Exército Verde com os seus famosos enxames de drones.

As populações indígenas a sul de Wallmapu, apoiadas a norte, tomaram as cidades de Ushuaia, Punta Arenas, Rio Gallegos, Puerto Madryn e Trelew e declararam a criação da nação Tehuelche, commumente chamada de Patagónia. Semanas depois, finalmente conquistaram Comodoro Rivadavia, pondo fim à produção e exportação petrolífera nas antigas regiões de Chubut e Santa Cruz. Em quatro meses, duas novas nações tinham sido criadas. O cessar fogo e acordo de paz que se seguiu entre Chile e Argentina, vista na mente dos generais e políticos como um prelúdio da reconquista das novas nações a Sul, viu em vez disso o início dos processos revolucionários que nos anos seguintes levariam à ascensão de ecomunistas ao poder tanto em Santiago como em Buenos Aires.

O Trem Sulista parou na estação Retiro, uma enorme confluência de comboios bastante antigos, mas supreendentemente com poucas pessoas. Eram 2 horas da manhã de dia 28 de Novembro e o sol brilhava forte, sobre a cidade de Buenos Aires. Olhei para o indicador de calor logo ao desembarque: 36ºC. Três homens, entre os quarenta e os sessenta anos, abordaram-me. Eram dos ecomunistas mais velhos que eu tinha visto na viagem até então. Apresentaram-se: German, Diego e Federico. Levaram-me a pé num longo e cansativo percurso até à assembleia popular argentina. Pelo caminho, reparei em muitas casas abandonadas, muitas zonas que teriam sido pomares e hortas urbanas agora bastante degradadas, com poucas pessoas. A cidade ainda não tinha recuperado da grande cheia dois anos antes, e isso notava-se. Diego explicou-me como Buenos Aires tinha sofrido na última década. Com a revolução ecomunista e a paz na Argentina, a cidade tinha-se transformado bastante, com uma redução drástica da população para cerca de três milhões de pessoas. As pessoas tinham partido por vários motivos: primeiro por causa da guerra, depois por medo da violência revolucionária (que, garantiu-me, tinha sido mínima), depois pelas ondas de calor letais, que chegaram a matar mais de 200 mil pessoas num ano. A maior parte das comunidades indígenas migraram também, rumo a Wallmapu e Patagónia. Finalmente, em 2040, o colapso de várias plataformas glaciares antárticos na zona de Brunt tinha produzido enormes ondas no Atlântico Sul que, combinadas com forte precipitação na bacia do rio Paraná, tinham invadido as cidades do Rio da Prata, destruindo parte das zonas costeiras tanto de Buenos Aires como de Montevideu. A sucessão de tragédias e aparente declínio pareciam explicar a relativa antipatia deles e o sentimento lúgubre da cidade. Finalmente chegámos ao monumental edifício da assembleia, o antigo Congresso, frente a um bonito bosque alimentar. Passei os três dias seguintes a tentar completar os relatórios - que fiz com muito maior dificuldade do que em qualquer outro dos sítios em que estive - a resistir à pressão constante do Gianni para regressar a Lisboa e a tentar inscrever-me no movimento, como a Elizandra tinha insistido para eu fazer. Depois de várias tentativas de tornar-me membro dos ecomunistas na sua sede principal, acabei por apenas conseguir fazê-lo deslocando-me a um bairro periférico da cidade. As companheiras que me ajudaram estranharam muito quando lhes expliquei que vivia e Lisboa e estava ali para me inscrever, mas consegui acabar o processo e registar-me.

Seguiram-se três das chamadas telefónicas mais consequentes da minha vida até àquele momento.

- Ciao, Alex.
- Olá, Gianni.
- Estou a ligar-te para te informar que não vou apanhar o barco de volta a Lisboa.
- Não? E como vais voltar?
- Chegarei pelos meus próprios meios.
- Quais são os teus próprios meios, Alex?
- Vou viajar até à China. Já resolvi isso com a Elizandra Márquez.
- Não percebo porque decidiste falar com ela sobre isso sem falares comigo. Não confias mais em mim?
- Não tem nada que ver com confiar ou deixar de confiar. Nós somos conhecidos, não amigos de longa data. Na Ásia poderei encontrar mais respostas ao que estou à procura. E também saberei ainda mais sobre Grande Transformação lá. É um território gigantesco.
- O teu projeto não era contar ao teu filho o que tinha acontecido?
- Era e é.
- Mas estás cada vez mais distante do teu filho, Alex.
- Eu vou voltar para casa. Mas foste tu que me puseste neste caminho. E agradeço-te por isso.
- Acho que estás a fazer um erro. Mas há coisas que só se podem aprender por experiência. Desejo-te boa sorte e se precisares ajuda em algum momento, podes contactar-me.
- Espera, e os materiais dos relatórios, as coisas que me emprestaste?
- Ah, sim. Envia-me os relatórios pela internet. O resto das coisas podes devolver-me se um dia decidires voltar para casa. Bocca al luppo! - desligou, apressadamente.

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- Liz?
- Olá, Alex, como estás? Onde estás agora?
- Estou em Buenos Aires. Já consegui inscrever-me.
- Óptimo! Excelentes notícias. Então, quando estás pronto para partir?
- Estou pronto.
- Acabaste todos os teus trabalhos?
- Acabei tudo o que tinha combinado com o Gianni.
- Excelente. Ao contrário do que tinha acontecido com o teu trabalho até aqui, eu não tenho um itinerário definido sobre o que vais fazer. Serás tu a gerir o teu trabalho. Deves ir à Índia visitar o Sukumar, claro, e preciso que vás à República Oriental Africana fazer entrevistas. Envio-te mais informação em breve. De resto, geres tu as tuas viagens. Envia-me por favor o teu número de militante do movimento, será a partir daí que poderei facilitar as autorizações dos teus transportes. E já sabes, com aquelas geografias, algumas das viagens não poderão ser de comboio.
- Compreendo.
- No dia 8 de Dezembro deves estar no Aeroporto Médico de Santiago, no Chile. Há um avião que parte à noite rumo a Nova Xangai, que tem espaço para uma pessoa. Vou avisá-los que vais. A partir daí, estás por tua conta.
- Obrigado, Liz.
- Boa sorte, Alex.

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- Boa noite, Lia.
- Olá, Alex.
- Como estão vocês? Como está o António?
- Estamos na Amadora. Vim para casa dos meus pais uns dias.
- E eles estão bem?
- Estão doentes, como de costume. O António está bem. Diria que tem saudade tuas, mas nesta altura ele já nem te deve reconhecer.
- Oh, Lia, não exageres.
- OK, vou para com a conversa. Já decidiste?
- Sim. Vou continuar a minha viagem.
- Muito bem. Eu vou então prosseguir a minha vida. Quando voltares falamos sobre visitares o António e coisas dessas.
- Lia…
- Sim?
- Pensa sobre o que estás a fazer. Eu estarei de volta a casa assim que puder. Preciso descobrir o que aconteceu à minha mãe. Não posso não ir visitar o Sukumar.
- Alex, tu decidiste que a nossa relação amorosa acabou. Posso continuar a enviar-te as coisas que tenho encontrado para o livro, mas é tudo. Se achas que tens de fazer isso, fá-lo. Mas nós não vamos ficar mais à tua espera.
- Eu voltarei o mais rápido que possa. Vou-te mandando notícias de onde estou.
- Faz como quiseres.
- Adeus, Lia.
- Adeus, Alex.

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De repente estava sozinho no mundo, numa cidade desconhecida, independente, e com uma missão - descobrir a história de Marta Garrida. A minha tristeza pela decisão da Lia foi um pouco afogada pelo horizonte de possibilidades à minha frente. Foi assustador mas também entusiasmante, confesso. Apanhei o meu último comboio americano, rumando de Buenos Aires a Santiago do Chile.

©Nuno Saraiva

No dia 8 à tarde cheguei ao aeroporto médico, apresentando-me no que há anos atrás teria sido a zona de segurança. O aeroporto médico era uma pequena fracção do antigo aeroporto internacional. Mantinha-se uma parte da pista, cheias de plantas a saírem do meio do asfalto. O antigo edifício do aeroporto era agora um bairro com centenas de habitantes e casas com enormes janelas para o exterior. As antigas zonas mecânicas e de estacionamento de aviões estavam cobertas por painéis solares que alimentavam a comunidade ali. Na pista asfaltada estavam parados em espinha uns dez aviões, a maior parte dos quais com uns 10 metros de comprimento, excepto um maior, com o dobro do tamanho dos restantes. Quando cheguei ao local que dizia embarque, não havia ninguém. Perguntei a um rapaz que passava por ali, a que horas chegavam as pessoas do voo e ele respondeu-me que só mais tarde. Eu estava um pouco nervoso com voar.

Passeei no que antes era a zona comercial de um aeroporto, agora uma zona comum entre as casas de várias famílias, cheia de plantas, luz, pessoas e música. Antigamente, os aeroportos eram sítios esquisitos. Lembro-me deles como um sítio de tensão. Lembro-me da paranóia com a segurança, guardas e polícias por todo o lado, filas, separadores, detetores de metais, ter de estar sempre a mostrar papéis e telefones. E lembro-me de como as coisas eram todas tão caras. Das vezes que tinha andado de avião com os meus pais, estes tinham trazido comida e bebida dentro das malas, para não termos de comprar no aeroporto ou no avião. Mas depois era preciso deitar os líquidos fora. Lembro-me em particular de um episódio no aeroporto de Frankfurt, em que um homem começou a gritar que tinha fome e sede porque tinha estado horas dentro de um avião em que não lhe tinham dado comida ou bebida, e que agora nem na casa de banho lhe davam água, nem nos restaurantes lhe davam um copo de água. A minha mãe tentou dar comida ao homem, mas ele disse que precisava de falar, que precisava gritar. Pouco depois, um grupo de polícias rodeou-o e começou a bater-lhe, enquanto o homem berrava. As pessoas à volta baixaram a cabeça e a minha mãe foi arrastada para longe pelo meu pai, que também me levou. Lembro-me de ela chorar, furiosa.

Duas horas depois, começaram a chegar as pessoas, os passageiros do voo com as suas famílias, alguns em cadeiras de rodas e até um senhor numa maca, todos acompanhados por malas de plástico parecidas com a minha. Falei um pouco com as pessoas e iam principalmente fazer tratamentos médicos contra cancros e cirurgias de precisão, que estavam mais desenvolvidas na China. Muitas ficaram surpreendidas com a minha explicação de que estava a investigar e a escrever um livro. Dei o meu nome a uma senhora que se apresentou com um fato todo preto e que era do serviço médico aéreo. Em breve as famílias começaram a despedir-se e vários homens com fatos do serviço médico vieram buscar as pessoas em cadeira de rodas e em macas. Descemos até à pista e fomos encaminhados até ao avião maior. Os que iam pelo seu pé subiram por uma escada na parte da frente do avião, enquanto os restantes subiram através de uma plataforma que os fazia entrar por uma porta traseira. Uma vez sentado lá dentro, comecei a sentir-me tenso. Todas as histórias de quedas de aviões que tinham acontecido nas últimas décadas tinham-me feito pensar que nunca mais iria andar num. Além dos voos sabotados pela Inteligência Artificial  e por algumas organizações terroristas, tinha havido um enorme aumento do número de acidentes por causa da turbulência atmosférica. Nós íamos sobrevoar o maior oceano do mundo. Respirei fundo para tentar acalmar-me. O piloto começou a falar:

- Boa noite. O nosso voo até Nova Xangai com paragem de duas horas em Sidney demorará um total de 20 horas. Por motivos de possível turbulência aérea e também para que a viagem seja mais confortável, gostaríamos de disponibilizar a todas as pessoas a possibilidade de tomarem um pequeno sedativo que facilitará o vosso descanso. Recebemos a informação médica de todos e foram providenciadas opções de sedação compatíveis com as medicações que atualmente usam.

Nesse momento, um senhor do serviço dirigiu-se a mim e perguntou-me se tomava alguma medicação. Respondi-lhe que não, mas que aceitaria de muito boa vontade a sedação que eles tivessem. E que até podia ser mais forte, que não me importava nada de dormir o caminho todo. Minutos depois do avião levantar, recebi o pequeno comprimido que dissolvi debaixo da boca. Lembro-me apenas de olhar pela janela e ver o sol pôr-se no horizonte cheio de nuvens arredondadas.

Texto de João Camargo

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