De: liavgoms@voo.com
Para: alexaguas@voo.com
Data: 18 de nov. de 2042, 11:20
Assunto:
Olá, Alex. Percebo que estejas magoado com o que aconteceu, mas parece-me que estás a exagerar. Se me estivesses a atender o telefone, como prometeste que farias todos os dias, saberias que decidi visitar a Mei no Alentejo. Estamos com o António. Trouxe três caixas dos teus pais no comboio, eu e ela temo-nos entretido a vasculhá-las e a organizar documentos. Há aqui cartas antigas para ti em papel, com remetentes diferentes mas com a mesma letra. São da tua mãe? Sabes a que cartas me refiro? Têm marcação de serem de 2030, 2031, 2032, 2036. Comecei a escrever uma cronologia da Grande Mudança, envio-te o primeiro esboço. Também anexei materiais sobre as cidades livres e os ecomunistas.
Alex, onde estás? O teu silêncio, além de infantil, tem-me provocado muita ansiedade. Já pensaste como é egoísta tu estares a milhares de quilómetros de distância, longe de mim e do teu filho, e simplesmente estares a fazer uma birra que me (nos) aflige diariamente? Cresce, meu! Nós aceitámos estar juntos, não é um castigo, não és meu dono, gosto muito de ti mas estou farta do teu silêncio. Tenta por favor não piorar a situação. Já tens data para voltar?
Lia.
O meu regresso a Lisboa foi muito agitado por causa da reação do Alex. Quase me arrependi do que aconteceu com Ettore, quase fiquei presa na culpa de ter sido feliz algum tempo ao lado de uma pessoa muito interessante, quase me arrependi de ter contado ao Alex. Foi absurdo, em que tempo acha ele que vivemos? Acha que temos de andar escondidos e a esconder o que sentimos, o que experimentamos, o que desejamos em nome de proteger inseguranças sobre a virilidade? Tenho de aguentar a solidão e o trabalho e o cuidado da criança sozinha e satisfeita, mesmo quando não estou? Não foi para isso que se fez a grande mudança, de certeza.
Depois de visitar rapidamente os meus pais, fui ter com a Mei ao Alentejo. Ela faz parte da grande comunidade vietnamita que veio para Portugal depois da fome asiática de 2033. Mei trabalha na Zona Natural do Sudoeste Alentejano, recuperando habitats de pássaros. A grande quantidade de espécies invasoras e as marés de cianobactérias tornaram a vida muito difícil para os pássaros e os animais terrestres autóctones. A praga que mata os sobreiros tem tido grande impacto na região. As comunidades que vivem nos antigos projetos de turismo de luxo, das aldeias da Torre e das Dunas até ao rio Mira, têm sofrido bastante com as tempestades marítimas e subida dos picos de maré. As águas invadem regularmente as antigas casas dos milionários, supreendentemente construídas com materiais de má qualidade e zonas demasiado baixas. A pressão para estas comunidades se mudarem é grande, mas a relutância de abandonarem a sua casa também. Como Alcácer do Sal e Odemira também têm sofrido muito com inundações, as populações mais ribeirinhas estão a mudar-se lentamente para as aldeias interiores, mas também para Grândola, cuja população há chegou aos 50 mil habitantes. É uma pequena cidade muito vivida e cosmopolita, com pessoas de vários locais do mundo, famosa por ser motivo do antigo hino nacional. No verão, o calor aqui chega frequentemente aos 50ºC, e as populações mais recentes organizam as viagens de verão, acampando dois a três meses nos bosques perto das praias. Surtos de malária e dengue põe em causa estas viagens essenciais e levaram ao fim da cultura de arroz da região. Está a ficar claro que precisamos mosquitos modificados no litoral alentejano.
Enquanto eu e Mei vasculhávamos as caixas dos pais do Alex, separei alguns documentos importantes para compreender a fundação de pelo menos dois movimentos que assumiram parte da Grande Transformação: o movimento ecomunista e a federação das cidades livres. Acabei por fazer uma primeira cronologia, mas com apenas pequenos retratos de tudo o que aconteceu em cada ano. Escolher seis ou sete acontecimentos de tudo o que aconteceu em todo o mundo é realmente um desafio, mas é melhor do que o que tínhamos até então. Torna possível perceber avanços e recuos, as ondas de calor e as inundações seguidas de fomes, as revoluções e as respostas ultraconservadoras. E permite perceber a ruptura dos territórios, a criação de novos espaços e países, de novas identidades à medida que avançámos para um novo clima.
2025
Marés negras no Atlântico
COP 30
Grandes protestos contra a austeridade e a extrema-direita na Europa
Greve geral na Europa de Leste
2026
Ano 1.8
Ondas de calor no hemisfério ocidental
Setembro Vermelho
Colapso da UNFCCC
Tratado Mundial do Clima
Turbulência política na China
Neoluditas e Descarbonária
Ataque do GPT ao G7
Proibição das criptomoedas
Moratória dos EUA sobre a exploração de novas reservas de petróleo e gás
Ondas de calor na Índia matam 4 milhões de pessoas - Queda do Governo Modi
2027
Secessão do Texas
Grande praga de gafanhotos em África
Covid Bovino/Zebuíno
Grande fome (20 milhões de mortos em todo o mundo)
Greve geral na Europa, EUA e Ásia
Fundação do Estado da Palestina
IA toma conta das bolsas de valores e arruína as empresas petrolíferas
Fundação do movimento ecomunista
Criação da Comissão Mundial do Calor
2028
Grandes inundações na Europa
Segunda Guerra Civil Americana
Unificação da Irlanda
Assembleia Sangrenta
Revoluções em Marrocos, Nigéria, Angola e Namíbia
Derrube de Sisi em golpe de Estado no Egipto
Fundação do Califado de Aden Ayro em Moçambique e na Tanzânia
Rota do Futuro
2029
Grande incêndio da Amazónia
Golpe de Estado das milícias evangélicas no Brasil
Banco Mundial do Clima emite Carbos
Eleições europeias suspensas
Primeiro colapso da Internet
Utilização de bombas atómicas no Texas
Líder da extrema-direita alemã morre numa onda de calor
Fome regional na Europa de Leste e na Ásia
Golpe de Estado comunista na China
2030
Ano do Leão - extinção do leão africano e do cão selvagem africano
Estado Islâmico invade a Líbia e bloqueia o Canal do Suez
Fundação da Muralha - golpes de Estado em Espanha, Itália e países nórdicos
Declaração das Cidades Livres
Revolução em França
Revolução Brasileira
Revolução Californiana
Independência do País Basco, da Catalunha, das Ilhas Baleares, da Córsega e do Sul
Formação da República da Oriental Africana
Desintegração da Federação Russa
Cessar-fogo na Guerra Civil Americana
2031
Revoluções europeias: Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Grécia, Áustria, Hungria, Eslovénia
Jubileu das dívidas públicas
Nacionalização das indústrias fósseis
Grande Julgamento
Independência dos novos Estados americanos
Texas torna-se um “Estado cristão”.
Candidata independente vence as eleições nos EUA
Primeira festa da Grande Chegada em França
Neoludditas começam a sabotar as energias renováveis
2032
Dois meses de onda de calor no Médio Oriente, 6 milhões de mortos e enormes migrações
Golpe de Estado e ditadura na Turquia
Revolução iraniana
Desintegração da Arábia Saudita
Carta dos Refugiados
Reforma das políticas imobiliárias na Europa
A declaração das cidades livres foi feita no Ano do Leão. As primeiras cidades que se aliaram e anunciaram a sua autonomia em relação aos estados onde estavam inseridas foram Nápoles, Marselha, Amadora, Saint-Denis e Christiania, em Copenhaga. Apesar de Portland, Seattle e Nova Orleães já terem proclamado um estatuto similar durante a guerra civil americana, não se integraram na declaração. O desespero do status quo era evidente, ainda em choque com as revoluções africanas e perante a incapacidade de retomar o controlo da situação. A extrema-direita que até há pouco governara lançou as suas milícias contra os campos de refugiados no centro e no Sul da Europa, matando milhares de pessoas, enquanto patrulhava cidades perante a complacência da polícia, entrando em confrontos frequentes com forças mais ou menos organizadas de resistência popular. Dois atentados à bomba no Parlamento Europeu e no Parlamento austríaco levaram a decretos de emergência e suspensão de liberdades e garantias. Em Abril de 2029 as eleições europeias foram suspensas e sob o protesto dos comissários europeus de S&D, uma nova comissão tomou controlo, com um programa de extrema-direita e a entrega de quinze comissões a partidos fascistas - incluindo Migrações, Energia, Segurança Interna, Armamento e Forças Armadas. O Exército Europeu, projeto que estava paralisado, foi desbloqueado mesmo perante o protesto de alguns estados membros. Um dos principais objetivos era usar a nova força europeia para cumprir o pacto migratório e forçar a expulsão de milhões para a Líbia e para o Ruanda. Antes disso acontecer, ocorreu o primeiro colapso global de internet.
Notícia: Internet colapsa
Foi no sábado à noite. Provavelmente a maneira como percebeu foi com algum pagamento. No meu caso foi num restaurante. Os seus cartões deixaram de funcionar e pediu a alguém para pagar mas também não funcionava. Tentou descobrir nas notícias no seu computador ou no telefone o que se passava, mas os sites também não abriam. As chamadas não funcionavam e o dono do restaurante deixou ir sem pagar todas as pessoas que não tinham dinheiro, que eram quase todas. Se estava com sorte, estava perto de casa, não precisava de nenhum mapa ou GPS para voltar, porque não existia orientação disponível nos smartphones. Esperou que fosse um fenómeno temporário, mas no domingo mais de metade dos sites estavam em baixo, principalmente os informativos. Nenhuma rede social operava. Vários canais na sua box não transmitiam, ou transmitiam programas gravados. Apenas dois ou três canais - no meu caso os públicos - davam conta da confusão que imperava por todo o mundo: várias zonas sem eletricidade, sistemas de transportes parados, muitas indústrias com as portas fechadas, voos intercontinentais paralisados nos aeroportos, portos sem serviço. Provavelmente pensou que devia ir às compras porque não tinha coisas em casa, mas lembrou-se que continuava a não ter dinheiro. Provavelmente as lojas também estivessem fechadas pelo mesmo motivo. Todo o e-comércio e plataformas de encomendas estavam obviamente em baixo. Ao fim do dia, o governo anunciou “um problema em múltiplas regiões do globo, que interrompeu o normal funcionamento da internet”. Anunciaram ainda que o dia seguinte seria feriado e que os bancos estariam fechados, pelo que as pessoas não deviam tentar levantar dinheiro, mas que as contas estavam todas seguras. Claro que o efeito desta declaração foi o contrário do desejado. A partir da madrugada, filas gigantes primeiro frustraram-se depois destruíram os poucos ATMs para tentar ter dinheiro. As lojas que abriram às 9h00 tiveram de ser fechadas pela polícia às 10h, depois de inúmeros clientes não terem como pagar e recusarem-se a partir sem comida. Ninguém se esquecia da escassez de ’27. Ninguém se esquecia do takeover financeiro de ’26, ninguém se esquecia do colapso do Starlink e das grandes redes sociais. Parecia tudo isso combinado num só evento. O exército regular foi chamado para proteger os armazéns públicos de comida, mas as lojas fechadas foram saqueadas o dia inteiro. A polícia tentava expulsar as pessoas das lojas, mas multidões corriam as cidades à procura de qualquer estabelecimento onde pudesse haver algo útil para os dias seguintes, que já toda a gente previa serem de escassez. Essa noite o governo anunciou que tomava controlo sobre os armazéns comerciais e que na começaria a distribuição regular de comida na 3ª feira. Foi declarado estado de sítio e imposto recolher obrigatório, o que tinha deixado de ser novidade ou de surtir grandes efeitos. Essa noite, a eletricidade falhou durante oito horas. Se fez como eu, na 4ª feira ficou em casa e apenas saiu para receber a comida distribuída pelas Forças Armadas. Na 5ª feira de manhã voltou a haver internet, mas metade dos sites deixara de funcionar e todas a informação que tinha armazenado na rede tinha desaparecido: emails, passwords, contas, fotografias, vídeos, documentos partilhados. Se é como eu, perdeu uma parte da sua vida naqueles dias. E se é como eu, ainda está a tentar recuperar coisas. E se calhar também está a descobrir que não vamos recuperá-las. O que não sabemos de todo é porquê isto aconteceu ou quem provocou isto. Noutros anos culpou-se a IA, os Ecomunistas, a Muralha, os Neoluditas. De quem é a culpa agora? Depois do colapso das grandes redes sociais, garantiram-nos que a internet estava segura, o que vão garantir a seguir? E porque haveríamos de acreditar desta vez?
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Dois meses depois do colapso global da internet, aconteceu algo inacreditável: mais de 300 aviões despenharam-se dos céus, apesar da internet estar operacional. As acusações caíram nos mesmos de sempre, instrumentalizadas pelos percursores da Muralha, mas nunca foram além da retórica. No fim, não houve explicações oficiais, apenas anúncios de investigações por parte de governos cuja credibilidade era miserável. A indústria da aviação, que já estava em declínio há anos apesar da introdução de alguns aviões elétricos, entrou em falência total. O que sobrava da já miserável indústria do turismo também. Toda a gente que ainda tinha meios para fazer turismo não podia deixar de pensar que existia a possibilidade de morrer na viagem, de não ter acesso ao seu dinheiro durante a estadia, que podia não ter tudo o que necessitava noutro local do mundo e nem sequer tinha acesso a alguma rede familiar ou social.
Nesse caldo de barbárie, a extrema-direita europeia recompôs-se formalmente, aliando-se com conservadores católicos e evangélicos, formando “A Muralha”. Abandonaram qualquer pretensão de democracia e planearam golpes de estado em todos os países da União Europeia. Em alguns locais os resultados foram patéticos, em outros não. A Muralha tomou o poder em Espanha, em Itália e nos países nórdicos. Entre as primeiras medidas tomadas esteve a proibição do movimento ecomunista e a ordem de detenção de todos os seus dirigentes, o que se estendeu também aos membros do Exército Verde, dos Neoluditas, da Descarbonária, da Orca e de “O Leste”. Ao contrário do que se passara dois anos antes, esta ordem surtiu menor efeito, quase ninguém foi detido, embora alguns dirigentes tenham sido mortos em fuga.
Nesse inverno, as fronteiras da Europa de Leste tornaram-se um verdadeiro cemitério de arame. Militares, polícias e milícias da muralha receberam ordens da nova Comissão Europeia e lutaram para impedir que migrantes e refugiados entrassem na União Europeia. Três milhões de pessoas morreram de frio e doenças em acampamentos improvisados na Moldávia e na Ucrânia. Milhares de cadáveres e embarcações fantasma circulavam nos rios Dniester e Tisa, espalhando surtos da velha peste bubónica na Roménia, Hungria e Sérvia.
A Muralha, comandando as Forças Armadas de Espanha, Itália, Finlândia, Suécia, Noruega e o exército europeu, deu ordens para atravessar o Mediterrâneo e ocupar as praias do Norte de África para impedir embarques de migrantes e refugiados rumo à Europa. A França, apesar de apoiar a iniciativa, não participou. Do lado europeu, a Muralha erigiu mais 4000 km de muros e arames farpados, principalmente nas fronteiras terrestres, mas também em zonas de embarques marítimos. A Europa Fortaleza já era uma realidade, com quase 50% do território da União fechado.
Mas onde a Muralha esperava fraqueza do lado do Norte de África, encontrou força: os governos argelino e tunisino afundaram uma frota italiana que tentava tomar os portos na Tunísia. A humilhação foi enorme. Os portos, depósitos de combustíveis e instalações militares em Itália e Espanha sofriam a maior campanha de sabotagem desde a 2ª Guerra Mundial. Ecomunistas e descarbonárias agitavam permanentemente e vários países da União Europeia anunciavam o início de processos de saída do espaço europeu, rejeitando a conscrição de soldados e contribuição para a campanha militar de retaliação exigida pela Comissão Europeia controlada pela Muralha.
Nos primeiros dias de Maio, a Declaração das Cidades Livres foi lida em simultâneo em Nápoles, Marselha, Amadora, Saint-Denis e Christiania. Estas forças populares respondiam a um assédio permanente das suas populações, sempre sob estados de emergência e sob estado policial de violência. Depois da declaração, os grupos armados criados para defender as cidades, que nesta altura tinham presença de elementos do Exército Verde, atacaram esquadras e equipamentos policiais, libertando prisioneiros políticos, tomaram os edifícios públicos e armazéns alimentares, expulsaram a polícia e os políticos ligados à Muralha dos limites das cidades, convocando assembleias sociais para organizar e defender os espaços. As tentativas das autoridades de reentrar nas cidades livres foram derrotadas e em poucos dias, muitas outras cidades também se declararam “livres” e começaram seguiram o modelo de autogestão das primeiras. Antes do final do ano, a Revolução Francesa derrubou o governo e no ano seguinte revoluções em vários países europeus varreriam a Muralha.
Declaração das Cidades Livres
Hoje dizemos basta!
Somos milhões e apelamos às nossas irmãs e irmãos a que se juntem à nossa luta como o único caminho para não morrer à fome perante a insanidade de uma máquina trituradora que não soube e nunca aprenderá a parar. Depois dos engravatados hipócritas, camarilha de traidores que se aliava a todos os conservadores que venderam o que era nosso a troco de nada, agora temos a Muralha, chusma de violentos ressentidos, padres e bispos chauvinistas que, perante a hecatombe, nos vêm falar de Deus e da ordem da pistola, do cassetete e da sirene, como se comêssemos e vivêssemos deus e ordem, a nauseabunda ordem deles.
Não temos de vos dizer que as coisas estão más. Toda a gente sabe que as coisas estão más. É uma crise, são cem crises. A crise não para. Quando uma pára a outra já começou. Vivemos fomes, desemprego, violência, golpes de estado, contra-golpes, assassinatos, guerras. Vemos os nossos irmãos e irmãs a morrerem nas fronteiras, como os vemos a morrerem nas nossas ruas. Um euro vale um cêntimo. Os bancos estão a falir. Os comerciantes não têm o que vender. Os criminosos andam à solta na rua a extorquir-nos proteção, enquanto a polícia além de extorquir-nos, mata-nos e persegue-nos. Sabemos que o ar é impróprio para respirar e a comida é imprópria para comer, e dizem-nos para nos sentarmos a ver telemóveis e televisões enquanto os noticiários nos dizem que o mundo está a acabar mas não há nada a fazer, como se fôssemos simplesmente aceitar. Pior do que más, as coisas estão loucas. É como se tudo em todo o lado estivesse a ficar louco, e sentamo-nos em casa enquanto o mundo à nossa volta vai ficando mais pequeno - e querem mais arames farpados, mais muros altos, menos pessoas, os aviões caem e os nazis também morrem nas ondas de calor, não sabemos se há comida no mês que vem. E até agora dissemos uns aos outros: pelo menos deixem-nos em paz. Mas não. Não vamos deixar ninguém em paz. Levantámo-nos e não voltaremos a sentar-nos.
A soberania reside no povo. Todo o poder político tem de emanar do povo e tem de ter como objetivo ajudar o povo. O povo que tem, em todos os momento, o direito de alterar ou mudar a sua forma de governo. É isso que faremos. A partir de hoje nós, cidades unidas, declaramos a nossa autonomia em relação aos estados nos quais estávamos inseridas. A partir de hoje somos cidades livres, tomaremos as instituições das nossas cidades e criaremos novas instituições que correspondem ao nosso novo estatuto, o de “Cidades Livres”. Não mais aceitaremos ordens de governos centrais, não aceitaremos a manutenção de nenhum elemento dos seus aparelhos repressivos dentro dos nossos territórios, tomando imediatamente posse de todas as estruturas e equipamentos e expulsando os elementos políticos e policiais do regime que nos oprimia e contra o qual nos revoltámos definitivamente. As nossas cidades serão espaços abertos a quem precisa de abrigo, a quem precisa de apoio e de amor. Serão espaços metropolitanos, onde a nossa cor, identidade, fé ou quem amamos serão apenas lindos detalhes da nossa comunidade.
Das nossas cidades - Marselha, Nápoles, Saint-Denis, Amadora, Christiania - lançamos um apelo a todas a cidades, vilas e aldeias do mundo inteiro: Tomem em mãos os vossos destinos e juntem-se à insurreição popular contra a opressão dos estados fascistas, religiosos e capitalistas que nos conduzem à catástrofe, matando-nos no caminho. A partir de hoje construímos cidades autónomas e autogeridas, cidades livres.
Na cidade livre manda o povo, e o governo obedecerá
No final da primeira semana, dez outras cidades rebelaram-se. Vários territórios maiores declaram independência, formando novas nações como a Escócia, a Bretanha, a Sicília, a Catalunha ou o País Basco. A Muralha declarou urgente a reconquista das integridades territoriais e nacionais da “Europa das Nações”, introduzindo o recrutamento militar obrigatório. A rejeição generalizada de participar levou-os, em desespero, a recorrer a grupos criminosos como a Camorra, a Ndrangheta, Los Charlines ou o Gang du Petit Bar, ironicamente acabando por oferecer regularização e nacionalidade a estrangeiros e migrantes que se alistassem. Estes acabam por constituir as “unidades naturalizadas”. Quando os exércitos espanhol e italiano recebem ordens dos respetivos governos para bombardearem mais de trinta cidades livres nos seus territórios, soldados e sargentos amotinam-se, detendo oficiais e prometendo paz às milícias que protegiam as cidades livres. As cidades livres não caíram. Um ano depois, mais de 200 cidades europeias e várias dezenas na América do Norte haviam declarado o estatuto de Cidade Livre.
A Aliança das Cidades Livres lançaria os seus planos para cidades seguras: desasfaltar, arborizar, libertar rios e fontes, criar os corpos locais de cuidado permanente, abolindo a polícia nos seus territórios, e instalar as assembleias permanentes. A aliança tornou-se mais tarde uma federação, com um sistema de comércio justo inter-cidades livres e também com os Estados tradicionais, unindo-se ao Tratado Mundial do Clima e à Carta do Refugiado, integrando a Rota do Futuro para receber refugiados climáticos.
Mas nem tudo correu bem. Passados poucos anos, o crime organizado conseguiu controlar algumas cidades livres e a extrema-direita começou a ter força em alguns territórios, tornando-os independentes de estados só para impor uma agenda conservadora em oposição aos estados revolucionários. Movimentos independentistas que não conseguiram tornar-se independentes procuraram criar independências parciais de facto proclamando cidades livres. Cidades costeiras que tinham de ser relocalizadas devido à subida do mar declaravam-se livres para evitarem ter de abandonar o território onde estavam.
Mas nem tudo correu mal. Depois da transformação inicial, a Federação das Cidades Livres começou o processo de transformação urbana, aboliu veículos individuais dentro das cidades, começou a compatibilização rural-urbano. Eram territórios muito inovadores em gestão e transformação, em particular no que diz respeito a energia, transportes, agricultura e relações sociais, experiências que seriam levadas pelos governos revolucionários para os estados ecomunistas e outros.
Quatro anos depois da Declaração das Cidades Livres, foram pela primeira vez expulsas cidades da federação. O motivo? Proibíram a entrada de refugiados climáticos e criaram polícias internas. No ano seguinte, a Aliança das Cidades Independentes cindiu da Federação das Cidades Livres. A Muralha ressurgiu dentro desta nova Aliança, criando milícias armadas, expandindo territórios e impondo regimes de terror internos. Diz-se que é da Aliança das Cidades Independentes que saíram as ordens e os assassinos que em 2036 mataram vários quadros do movimento ecomunista e do Mundo Novo na Europa e no continente americano. A Federação e o Exército Verde finalmente fizeram um acordo para invadir cidades da Aliança e reintegrá-las nos estados, enquanto os elementos da Muralha foram removidos e enviados para territórios-limite, nas margens do Sahara e na Gronelândia.
Foi nesta altura que a mãe do Alex morreu no México. Mais de 400 quadros políticos foram assassinados em vários países, principalmente no Sul da Europa e no Sul da América. A Muralha parecia uma praga, sempre teimando em reaparecer, mesmo quando as coisas melhoravam. A minha experiência pessoal, enquanto criança, era de enorme orgulho em relação às cidades livres. Vivia na Amadora e lembro-me bem da alegria quando se defendeu a cidade livre primeiro uma semana, depois um mês, sobrevivendo e fortalecendo-se, como foram rechaçados os ataques até finalmente pararem. Ao contrário do que muitos previam, após a revolução foi possível manter a autonomia e acordos muito honestos e justos com o resto do território. Pouco depois surgiriam as cidades livres de Setúbal e Lagos. O meu pai, anarquista de longa data, e a minha mãe, que a partir da declaração se passou a autointitular-se autonomista amadorista, tornaram-se muito ativos politicamente dentro na Amadora, envolvidos na organização da produção de comida e nas brigadas de cuidado. Sempre me incentivaram a participar, tanto dentro da cidade, como quando fui viver para Lisboa. Por outro lado, sempre me pareceu que a relação dos meus pais com a política era muito diferente da do pai do Alex. A diferença entre o local e o global, e talvez a disciplina estrita separavam os ecomunistas dos outros grupos. Também sinto que, no caso do António, ele era um homem demasiado frio, demasiado distante. A perda da mãe do Alex pode ter contribuído para isso, mas nunca percebi como não a idolatravam, tendo em conta que parecia ter sido uma heroína do seu tempo, à qual devíamos tanto.
Pronunciamento Ecomunista
O movimento ecomunista nasceu para salvar a Humanidade. Das cinzas da catástrofe e da barbárie capitalista, erguemo-nos por tudo quanto recebemos pelo simples facto de existirmos e estarmos vivos neste planeta. Erguemo-nos para nos lançarmos à vitória.
O nosso objetivo primário é simples: A Revolução. Não um percalço ou um soluço, mas o derrube inapelável, o desmanche imparável, o sepultar inexorável do capitalismo global. Destruí-lo-emos em todos e em cada país onde ele está, em todas e cada fábrica onde ele opera, em cada estúdio de televisão e ligação online onde ele vigora, em todas as relações sociais e nas monstruosidades implantadas por ele dentro dos nossos cérebros.
Arrancaremos este cancro que foi imposto à espécie humana pelas suas decrépitas elites, que colocaram os povos de joelhos, amordaçados, imbecilizados, inseguros e amputados, numa arena em que se matam uns aos outros até nada e ninguém sobrar. Não, o capitalismo não é a natureza humana, como o feudalismo não o era. É uma doença passageira, de graves consequências, que temos de ultrapassar para a Humanidade continuar a construir-se e para construir um futuro de abundância e harmonia.
Arrancaremos os tubos e as brocas que esventram a terra e o mar e despejam os excrementos da máquina de morte capitalista nos céus. Fundiremos o ferro e o aço das refinarias, das plataformas logísticas e dos jatos privados para os devolvermos ao seu estado neutro, em vez de máquinas de ampliação de morte. Dos seus despojos construiremos cidades, aldeias, vilas e estradas para viajarmos pelo mundo que é todo nosso e ao qual todas pertencemos.
Faremos o futuro. Faremos a nova Humanidade. Essa Humanidade não vai apenas sobreviver, vai viver, prosperar, ser feliz e ir muito além daquilo que hoje somos capazes de imaginar.
Reconstruiremos e curaremos as feridas que séculos de capitalismo, colonialismo e patriarcado abriram na humanidade e no planeta. Recuperaremos os territórios, as espécies, os ecossistemas e os seres que durante séculos estiveram sob o odioso jugo do chauvinismo que guiou uma parte da humanidade rumo à violência e à dominação. Não temos de dominar, não seremos dominados por impulsos alienígenas de dominação. Expurgaremos as alienações que nos afastam umas das outras como afastam povos uns dos outros.
Somos trabalhadoras, mas não mais o seremos. A nossa classe, como todas as outras, será dissolvida. Da hierarquia da sociedade, mantida para que os de baixo se arrastassem sob o peso dos de cima, faremos tábua rasa.
Somos um movimento. Das cinzas partidárias e associativas construímos um novo futuro. Só nos recordaremos para aprendermos onde falhámos. Não construímos ídolos, profetas, nem idolatramos vitórias e conquistas passadas. O nosso ídolo é a Humanidade que vamos construir. Se alguém anunciar que a nossa revolução está acabada, derrubem-no, porque a Humanidade é a Revolução, a Humanidade é a recusa do silêncio e do vazio. A Revolução Ecomunista é a manifestação máxima da vida, o derrube das forças da entropia, a mobilização e construção coletiva de futuro. A Revolução é a Humanidade em movimento rumo ao futuro, reinventando-se, reorganizando-se, reimaginando-se. O futuro é a Revolução e a Revolução é o futuro.
Não nos esconderemos atrás de contingências, dificuldades ou obstáculos. Conhecemo-los e ultrapassá-los-emos porque não há caminho para a Humanidade que não passe pela superação, por quaisquer meios necessários, do sistema genocida e suicida que organizou a sociedade nos últimos séculos. Escreveremos os nossos nomes, públicos e anónimos, na História do futuro.
Seremos o martelo, seremos o drone, seremos a barricada. Seremos o bloqueio, o assalto e a conquista. Os nossos inimigos devem temer-nos porque os enfrentaremos sem quartel. Somos o fogo regenerador do futuro, apontado aos exércitos e milícias do capitalismo e seus aliados.
Do cadáver fumegante do capitalismo faremos o húmus fértil para a nova civilização humana, de onde brotarão, libertadas de amarras físicas e intelectuais, as ideias que hoje semeamos. O comunismo ecológico, o ecomunismo, dissolverá a prisão da propriedade privada, eliminará a alienação planificada e o bombardeio imparável da propaganda comercial, alimentará povos, solos, animais e plantas, arrancará das mãos exangues dos barões-ladrões todos os serviços e necessidades para os povos, curando as feridas sociais, históricas e ecológicas que centenas de anos de destruição impuseram à nossa grande casa, o planeta onde todas nascemos e que será sempre a casa da Humanidade.
Temam e fujam, ó poderosos. O furacão imparável do futuro, o Ecomunismo, chegou. O vosso tempo acabou.
Delegadas de Amsterdão, Atenas, Barcelona, Beira, Beirute, Belgrado, Belfast, Belém, Belo Horizonte, Berlim, Bogotá, Bolonha, Brisbane, Budapeste, Buenos Aires, Cádiz, Cairo, Calgary, Cali, Cidade do Cabo, Cidade do México, Conakry, Copenhaga, Córdoba, Cork, Cracóvia, Dresden, Dhaka, Dublin, Düsseldorf, Edmonton, Estocolmo, Galway, Genebra, Génova, Gdańsk, Gijón, Glasgow, Gotemburgo, Graz, Grenoble, Gwangju, Guangzhou, Hanói, Havana, Helsínquia, Izmir, Joanesburgo, Karachi, Kinshasa, La Paz, Lagos, Lima, Limerick, Lisboa, Liverpool, Ljubljana, Lyon, Málaga, Manágua, Manaus, Manila, Maracaibo, Marakay, Marselha, Marrakesh, Minsk, Milão, Montevideu, Montreal, Moscovo, Mumbai, Nanjing, Nantes, Nápoles, Nottingham, Nova Delhi, Nuku’alofa, Oslo, Oaxaca, Paramaribo, Paris, Port-au-Prince, Portland, Porto, Porto Alegre, Praga, Quito, Rabat, Recife, Rennes, Riga, Roma, Rosário, Salvador, São Francisco, São Petersburgo, Santos, Santiago, São Paulo, San José, San Sebastian, Seattle, Setúbal, Sevilha, Sheffield, Sucre, Szczecin, Tartu, Salonica, Tbilisi, Toulouse, Tóquio, Tunis, Turim, Valência, Valparaíso, Vancouver, Vigo, Viena, Viljandi, Vilnius, Vitoria-Gasteiz, Wellington, Zagreb e Zurique
Janeiro de 2027