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42: Nas mãos do Daesh

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 28.º episódio, Alex depara-se com o impacto da sua ação política, e cruza caminhos com Chida, que lhe transmite conhecimentos acerca das influências religiosas no movimento ecomunista.

Texto de Redação

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A voz tremia-me enquanto fazia o meu primeiro discurso de improviso em frente da pequena multidão que me recebia em Maputo. O nervosismo foi diminuindo com a experiência. Os meus discursos também foram melhorando enquanto as multidões iam crescendo, também provocando cada vez mais entusiasmo nas pessoas, para minha enorme surpresa. Nunca tinha visto a mim mesmo como um orador ou um político, mas assim era. 

Bom dia camaradas! Sou Alex Garrido. É uma honra estar aqui com as guerreiras africanas que construíram a enorme nação da República Africana Oriental! - a multidão explodiu em aplausos.

Hoje estou aqui convosco e com os meus irmãos, filhos e sobrinhas de Amisha Kusuma. Tal como eu, foram roubados dos seus queridos, roubados da sua mãe e tia. Eu fui roubado da minha mãe, Marta Garrida, conhecida como Maria Garcia. Amisha foi morta por milícias do Al Shabaab nas margens do Lugenda, e a minha mãe foi morta pelo cartel de Sinaloa no México, junto com Grimelda Asunción.

Mas não foram só elas. 

Esse dia perdemos mais de quinhentas camaradas do movimento ecomunista. Esse dia, há mais de seis anos, além de nós, o movimento foi amputado, sabotado, roubado por alguns dos seus mais importantes dirigentes. 

África foi roubada, a América Latina foi roubada. A Humanidade foi roubada de algumas das pessoas mais importantes que construíram a Grande Mudança. E porque fomos roubados? Porque quiseram matar a revolução! Sim, quiseram matar a revolução, por-lhe um ponto final, proclamar que a injustiça tinha acabado e que era preciso que as coisas parassem de mudar. E vocês sabem exatamente o que isso significa, não sabem? Significa voltar a montar uma ordem mundial em que uns fornecem, uns produzem enquanto os outros recebem. Isso significa voltarmos atrás, vocês darem, continuarem a dar, dar, dar, quanto outros só recebem. Mais grave, significa começar a montar as cercas e os muros contra os quais matámos e morremos. Perder o que custou milhares de vidas a conquistar, aquilo pelo que milhares de ecomunistas, de elementos da ORCA, da Descarbonária, do Exército Verde, deram a vida. Significa prender-nos em países e em territórios onde não temos nenhuma possibilidade de sobreviver. 

Nunca mais! - Um ruído de raiva atravessava a multidão e enormes bandeiras vermelhas erguiam-se, esvoaçando da esquerda para a direita da massa humana.

O movimento ecomunista foi traído. Mas não foi só a Muralha, as máfias e as milícias religiosas que mataram as nossas camaradas. A Justiça Histórica foi dizimada pelos auto-intitulados “pacifistas”. - um coro de assobios levantou-se. - Que ironia, que os pacifistas tenham decidido resolver a disputa política dentro do movimento matando centenas de camaradas. E isso resultou em quê? Em mais guerra, em mais mortes, em mais fraqueza do movimento. Não tem de ser assim. E não vai ser assim. Exigimos que os responsáveis pelas mortes do Massacre da Justiça Histórica sejam condenados e que os seus cúmplices sejam afastados do movimento. Exigimos que Gianrocco Fratin e Hector Crespo, assim como todos os seus aliados, sejam presos e que a sua influência dentro do movimento seja apagada. A Justiça Histórica está de volta. A revolução não acabou e tem de expandir-se. O regresso do capitalismo é inaceitável, especialmente agora, quando pela primeira vez em décadas temos a hipótese real de travar a catástrofe. Os grupos criminosos não são mais do que restos da catástrofe a tentarem voltar, a tentarem agrilhoar novamente a maior parte da humanidade. A sua maneira de pensar e agir tem de ser completamente transformada, quer queiram, quer não. A Humanidade tem de avançar e abandonar a sua fase destruidora. Temos de passar a ser uma espécie construtora e benéfica para todos os seus membros e também para as espécies que partilham connosco este planeta.

Camaradas! A Grande Mudança ainda agora começou. Viva o futuro! Viva a Humanidade. - dos megafones  estridentes saíram os primeiros acordes do hino da nova República e a multidão irrompeu em cantos, que durariam a hora seguinte.

Enquanto ouvia a mim mesmo a dizer aquelas palavras (algumas das quais ditadas pelos Kusuma), percebi que não só as dizia, como acreditava nelas, sentia-me arrebatado por elas. Entre o final de Fevereiro e o início de Março de 2043 parámos em mais de 20 cidades entre Maputo e o Lago Turkana: Chokwe, Inhambane, Beira, Ximoio, Gorongosa, Quelimane, Nampula, Pemba, Mueda, Masasi, Lindi, Mkuranga, Dar Es Salaam, Bagamoyo, Tanga, Mombasa, Moshi, Arusha, Nairobi, Nakuru, entre outras. Em cada paragem do comboio, as multidões que nos recebiam iam aumentando de tamanho. Os irmãos Kusuma tinham montado uma grande mobilização. Em Maputo eu tinha falado para duzentas ou trezentas pessoas, mas quando cheguei a Dar Es Salaam as multidões eram de dezenas de milhares de pessoas. Em Nairobi, falei para uma multidão de mais de um milhão. Não sei se o plano original era esse, mas a denúncia da traição da minha mãe e dos outros dirigentes da corrente da Justiça Histórica estava a levantar o movimento ecomunista. Perante a mobilização crescente e a atenção enorme que o meu movimento por África acima estava a despertar, as minhas guarda-costas começaram a levantar constantes dúvidas sobre a nossa segurança. Em todas as paragens havia dezenas de pessoas que queriam falar comigo, tirar-me fotografias, oferecer-me prendas. 

No dia 2 de março, à chegada a Pemba, cidade que tinha sido uma verdadeira jóia do Índico antes de uma década de devastação por ciclones e pelas incursões do Estado Islâmico, recebemos a notícia da morte de Sukumar. Não foi uma surpresa, mas na minha cabeça agora estava plantada a dúvida sobre a sua morte, se teria morrido de doença ou se teria sido assassinado. Comecei até a perguntar-me se tantas mortes precoces, doenças repentinas quando a medicina estava agora tão avançada e disseminada não seriam ferramentas de luta política a ser usadas contra opositores. Quão cruéis e traidores seriam os líderes da corrente pacifista, como Gianni e Crespo? A homenagem a Sukumar, “o poeta da revolução”, teve grande impacto. Eu não me apercebera da sua enorme popularidade, talvez por sempre me lembrar dele como uma pessoa próxima. A notícia foi muito importante num momento em que se abria uma brecha dentro do movimento, em quando Sukumar era o grande representante dos “de baixo”, que se alinhava em boa medida com “os do Sul”.

Notícia

Longa vida ao poeta do futuro!

Sukumar Battacharaya, herói da Grande Mudança, deixou-nos hoje aos 68 anos, em Kolkata, na Índia. Suku, “o poeta”, não pode ser definido pelas suas profissões, por ter sido operário, jornalista, professor ou actor. A sua vida, a sua orientação, o seu destino e a sua energia sempre o empurraram para a revolução. A sua função no mundo, na sociedade, na comunidade, foi corrigir as injustiças e travar as catástrofes. Ao contrário de tantos outros, ele conseguiu. 

A partir de um movimento em declínio, Battacharaya compôs alianças, reconstruiu confiança e solidariedade, injetou coragem, audácia e perspicácia em toda uma geração de ativistas que se tornariam militantes e que se tornaram finalmente as maiores revolucionárias da História. 

Não era um homem público, até perceber que a sua tarefa passou a ser pública. Oferecia toda a sua imaginação e energia à ação, a curar primeiro o mundo e depois o movimento. 

Nunca quis ser pai da pátria, chefe da revolução, herói do povo, quando tantos outros na sua posição o tentariam fazer. Sempre quis que esses títulos fossem títulos coletivos, de uma classe, de um povo, de uma vanguarda. Bebeu das revoluções do passado, da França à Índia, da Irlanda à China, procurava para si e para a Humanidade as saídas que nos permitissem vencer, contra todas as expectativas, pois esse era o nosso tempo. 

A dívida que o movimento tem para com Sukumar Battacharaya só é superada pela dívida que toda a Humanidade, todas as gerações atuais e futuras lhe devem. Quando poucos acreditavam, ele acreditava por milhões, movia por milhares, falava por centenas, liderava puxando ou empurrando, inspirava, dava o exemplo, arriscava tudo, colocava-se onde era essencial, onde era urgente, onde era estratégico. Sukumar salvou o futuro, travou o comboio desembestado do capitalismo rumo ao colapso, soprou-nos vida de novo enquanto espécie. Todo o engenho humano sob a pele de uma só pessoa, o poeta da revolução inspirou milhões para a ação, contou a história do movimento a centenas de milhões, e nunca parou de lutar, nem mesmo quando o seu próprio corpo começou a traí-lo. Nos últimos dias da sua vida, Sukumar continuou a fazer o que era essencial fazer, nunca parou de fazer o correto para todas nós. Foi através da sua investigação que saiu a devastadora revelação de que uma parte da liderança do nosso movimento traiu a outra parte, entregando-a à morte. Estes mesmos líderes, tantos dos quais formados pelo Sukumar, venderam o ecomunismo e a revolução, mataram centenas de outras líderes, tantas das quais também recrutadas e formadas por ele. Ele, a asa de borboleta, ele, o homem-movimento, ele, o ecomunista, ele, o contador de histórias, o contador da nossa história, o poeta das nossas heroínas e das nossas revoluções, a memória do nosso movimento.

Mas apesar de lhe devermos tanto, Sukumar apenas acreditava que devemos ao futuro e à nossa espécie dar o melhor de nós mesmos para sermos verdadeiramente humanos - puxarmos os de baixo para cima, harmonizarmo-nos com o nosso planeta e uns com os outros, erradicarmos a barbárie histórica do nosso mundo e construirmos uma humanidade superada.

Como uma das pessoas que foi recrutada por ele, partilho convosco o dia em que ele me olhou nos olhos, com os seus grandes olhos pretos, e me perguntou o que eu tinha para dar. “O que for preciso” - respondi-lhe. “Pode ter de ser tudo”, foi o que ele me disse, “e não temos nada para oferecer em troca, excepto a muito pequena possibilidade de conseguirmos um dia ganhar. E de estarmos juntos até ao fim, lado a lado, e lutarmos como se o mundo dependesse de nós, porque depende.”. Era assim o poeta que nos arrebatou, que nos levantou e levantou um futuro de onde nada parecia haver. Agora que parte, tê-lo-emos para sempre connosco, nas suas obras, nas suas histórias e nos seus poemas. Longa vida ao poeta do futuro!

Bonolo Deviliers

@Nuno Saraiva

Essa noite participámos num festival cultural em homenagem ao poeta caído, na famosa praia do Wimbe. Dezenas de artistas tocaram e homenagearam o nosso camarada num tom não só celebratório como desafiador. A população da cidade desceu em grandes números àquela bonita zona, onde antes tinham pontuado hotéis e casas ricas, mas que agora estava em grande medida abandonada por causa de cheias. Ainda assim, estavam instaladas várias estruturas resistentes a cheias. Na baía de Pemba, uma das maiores do mundo, estavam os restos da plataforma petrolífera Coral Sul, uma carcaça avermelhada onde em tempos se transformava o gás fóssil em gás líquido no meio do oceano. Depois da derrota do Al-Shabaab, a carcaça tinha sido trazida para ali para reaproveitamento de peças em outras indústrias. A história da viagem e da chegada estava coberta de aventuras, como me contou Chida Kusuma. Os piratas do Mar Vermelho, que nessa altura estabilizavam o seu domínio sob a Eritreia e o Djibouti, faziam incursões pela costa oriental de África, conseguindo recuperar embarcações industriais que transportavam de volta ao Mar Vermelho. Com o colapso da Arábia Saudita, uma federação de pequenos grupos de piratas e grupos armados tinha reiniciado a produção de gás e petróleo no mar. A frota improvisada de piratas era composta por antigos navios de guerra, lanchas comerciais e até um submarino saudita. 

Chida, sentada ao meu lado, encostou-se a mim, apontando no mapa o que descrevia. 

  • A armada pirata já tinha capturado várias plataformas na Baía de Mnazi, na antiga Tanzania. Quando navegaram para sul, os piratas detectaram movimento da plataforma Coral Sul a poucas milhas da entrada de Pemba. - apontou para o mar. - Acompanhada apenas por um rebocador e quatro lanchas, a comandante Amisha Kusuma rapidamente se apercebeu da ameaça no seu encalço. A plataforma foi levada para dentro da Baía, onde o rebocador a tentou encalhar no delta do rio Mieze. Duas fragatas que estavam no Porto Terminal de Pemba e colocaram-se entre os piratas e a plataforma. A batalha que se  seguiu foi muito violenta e levou ao afundamento das duas fragatas da nova república e de uma fragata pirata. Enquanto isso acontecia, Amisha já tinha abandonado a plataforma e nadado até terra. A Coral Sul já estava encalhada, e Amisha sabia que a operação de retirá-la do porto ia demorar horas. Quando finalmente os piratas conseguiram arrancar a plataforma já danificada e a começaram a transportar rumo ao mar alto, uma fragata e dois contratorpedeiros, vindos do Porto de Nacala bloquearam a saída da baía de Pembra. Durante um início de noite de alta tensão, o submarino pirata navegava escondido e as fragatas piratas tentavam atravessar o bloqueio naval com a plataforma. Mas Amisha tinha outros planos. Comandou mais de 100 pequenos veleiros tradicionais, que partiram às escuras do porto de Pemba ao abrigo da escuridão, aproximando-se dos navios piratas e lançando mais de mil engenhos incendiários, desde cocktails molotov e granadas. Foi a famosa “Batalha de Paquitequete”. O ataque foi sucedido por um enxame de drones do Exército Verde, que afundou uma corveta pirata. Na madrugada seguinte, Amisha, que já comandava o bloqueio, permitiu-lhes aos piratas restantes partirem sem mais ataques, recolhendo os feridos nas embarcações ainda funcionais, desde que deixassem a plataforma. Ofereceu ainda às tripulações piratas a possibilidade de abandonarem a frota e se juntarem à armada da República. Depois de horas de discussão a bordo, metade dos piratas partiu e os restantes ficaram. Desde essa altura que a Coral Sul estava ali, servindo principalmente de casa a mais de duas mil pessoas. Os navios piratas afundados foram recuperados e alguns fazem hoje parte da Armada Verde. 

Eu olhava maravilhado para a mulher que me contava aquela história, para o seu sorriso e as covas que se adivinham nas bochechas, que achei que apareciam quando tentava esconder o sorriso de orgulho que sentia quando falava da sua tia Amisha.

No dia seguinte, retomámos o nosso percurso. As minhas guarda-costas nesta altura já tinham pedido reforços, pois consideravam ser impossível garantir a segurança perante a minha exposição e o número crescente de pessoas com as quais me cruzava.

- Mesmo se não fosse a questão do perigo real por parte dos pacifistas, só o tamanho das multidões e a atenção que está a ser chamada por vocês todos já faz de nós um alvo de grande nível, quer para muralhistas, quer para piratas. - dizia-me Keshini, enquanto Mandari concordava meneando a cabeça. 

Da minha longa viagem à volta pelo mundo o trajeto de que me lembro com mais saudade é sem dúvida o Expresso Transafricano. Tínhamos uma carruagem-camarata com camas e mesas em que ia eu, Keshini e Mandari, três irmãos e duas primas Kusuma, Chida e Janete. Eram todos moçambicanos, pelo que falávamos português entre nós. Quando descobriram que a minha avó era moçambicana, changane de Maputo, como eles, passaram a insistir que tínhamos de ser primos, pelo que passámos a viagem a tratar-nos uns aos outros por primos e primas. Aproveitei a longa viagem - demorámos quase vinte dias desde de Maputo até Marsabit - para conhecer melhor a República e também para perceber o que se passava no continente africano. Ao contrário das minhas viagens solitárias até ali, viajar com companheiros era muito melhor, uma verdadeiro prazer. As paisagens eram magníficas - de desertos vermelhos a florestas fechadas, com a savana sempre a espaços e alguns animais maravilhosos que ainda se faziam ver, como chitas e girafas. Além da nossa carruagem de luxo, fazíamos paragens para ver coisas que me queriam mostrar - desde projetos de harmonização com a biodiversidade até lugares históricos. Chida Kusuma era a mais conhecedora da história, pelo que tivemos longas conversas. Além da República Oriental Africana, uma espécie de “jóia” do movimento pela sua força e dinamismo num contexto extremamente adverso, que tinha acabado de integrar na república o Malawi e o Burundi, Chida contou-me a atribulada história da fundação da República Ecosocial do Congo, as secessões do Matabele, do Katanga, do Bas-Congo e de Ogaden. Descreveu-me o Sul de África como atualmente muito optimista em relação ao futuro, confiante nas suas capacidades depois de importantes vitórias militares e políticas.

Depois das revoluções em Marrocos, na Nigéria e em Angola, várias guerrilhas ecomunistas tinham surgido na África abaixo do Sahara. Há décadas que os territórios que compunham a República Democrática do Congo eram devastados por uma guerra entre conservadores religiosos cristãos, fundamentalistas islâmicos, milícias mineiras e os M23, tutsis do leste do país. Com o início da guerra civil americana, com a Revolução dos Jovens na China e a desagregação da Federação Russa, a retirada destas potências criara um vazio de poder e também de procura dos minerais mais abundantes nas zonas mineiras - cobalto, cobre, terras raras. Em cima disto, as zonas mineiras também eram as zonas cada vez mais afetadas pelas secas e ondas de calor, levando à morte de milhares de mineiros. O movimento ecomunista começou a expandir-se a partir do Oeste. Após a extinção do califado Aden Ayro pela República Oriental Africana, as forças do Estado Islâmico em fuga ressuscitaram no Congo as Forças Democráticas Aliadas, um nome falso para outro grupo de islamistas. O conflito atravessou as fronteiras e envolveu o Ruanda, o Uganda e o Burundi. A sul, os Mai Mai Kata Katanga tomaram a cidade de Lubumbashi e proclamaram a independência do Katanga, a primeira secessão do Congo. A oeste, a coligação entre ecomunistas e separatistas Bundu Dia Kongo levou à criação do Bas-Congo, a segunda separação. No centro do país, a guerra entre a coligação de ecomunistas e M23, de um lado, e fundamentalistas cristãos, islâmicos e milícias mineiras do outro, durou quase uma década. No final, os ecomunistas liderados por Claude Wemba e Victoria Kalenga derrotaram os seus inimigos, estabelecendo a República Ecosocial do Congo. Os derrotados fugiram para Norte, desestabilizando a periclitante e devastada República Centro Africana, hoje dividida entre Ubangi-Shari e Logone. A República Ecosocial do Congo ainda se está a restabelecer do conflito sangrento. Como resultado da derrota do Estado Islâmico na África Ocidental e Oriental, guerrilheiros do Boko Haram e do Al-Shabaab, acompanhados por outras milícias islamitas, apoiaram os clãs Ogaden na Etiópia e criaram o estado islâmico de Ogaden, encravado entre a Somália e a Etiópia.

No Sul do Zimbabué, a guerra da água levou à independência do Matabele, antiga região do país que exauria os seus recursos de água para manter em funcionamento minas de ouro e carvão. A aliança revolucionária Mthwakazi, que incluía ecomunistas, levou o conflito até às ruas de Harare, numa campanha de violência que incluíra vários atos de terrorismo que foram condenados tanto pelo Tratado Mundial do Clima como pela Assembleia Global do Movimento Ecomunista. Harare acabou por conceder a independência aos Mthwakazi, levando à criação do Matabele, cuja capital é Bulawayo. Chida explicou-me que entretanto já tinha surgido um novo conflito dentro dos independentistas, opondo ecomunistas ao Partido Republicano Mthwakazi, especialmente depois dos ecomunistas do Zimbabué terem entrado no governo em Harare.

No meio daquelas conversas, fiquei cada vez mais fascinado com Chida Kusuma. Apesar de ser claramente um elemento do movimento ecomunista e da família de Amisha, estava sempre de cabeça tapada por um véu islâmico. Tinha uns enormes olhos, e uma pele muito lisa e escura. Era linda. Perguntei-lhe se era muçulmana e ela respondeu-me que sim. 

  • E sim, é possível ser ecomunista e acreditar em Allah.
  • E praticar o islamismo?
  • Sim. Embora tanto o islamismo como o cristianismo e as religiões tradicionais, pelo menos em Moçambique, já tenham sido muito transformadas pelo socialismo da independência até aos anos 80.
  • E como lidam os ecomunistas com a religião na nova república, especialmente se o Estado Islâmico é um inimigo tão poderoso e presente?
  • O ecomunismo, como sabes, é ateísta. Defende que não existem coisas sobrenaturais, apenas coisas materiais. Mas os ecomunistas têm de fazer escolhas claras nos sítios onde estão e nos sítios onde governam. O mais importante de certeza que não é a religião, mesmo que alguns grupos dentro da justiça histórica seja, a favor da abolição das religiões como fonte de alienação. A questão é mais pragmática e material: queremos atirar as populações para as mãos de seitas, sejam elas cristãs ou islamistas? Se sim, basta reprimir as religiões. E esta é uma questão do curto prazo, não de décadas. É o que vou fazer agora.
  • Mas no longo prazo, achas que a situação se vai poder manter?
  • Não sei. Sei que agora o ecomunismo é o projeto que nos leva para o futuro. E que, mais do que as religiões influenciarem o ecomunismo desta maneira, o que está a acontecer é o movimento mudar as religiões. Nunca as mulheres ocuparam lugares de tanto destaque como agora, em todo o mundo. Lideramos este movimento, sejamos ateias, cristãs, muçulmanas ou católicas.

Claramente eu não tinha sido a primeira pessoa a levantar esta questão com Chida. A sua inteligência e conhecimento continuavam a deslumbrar-me. Pena que o nosso tempo de convivência se aproximava do fim. Ela confessou-se também muito surpreendida comigo, tanto pela minha longa viagem pelo mundo como pela minha aparente desconexão com o movimento. 

  • A política também é uma coisa de família, Alex. - disse-me sorrindo. - Como é possível que, sendo a tua mãe quem era, tu não teres estado sempre ligado ao movimento?
  • Eu acho que a minha mãe, e principalmente o meu pai, me tentaram proteger, me tentaram deixar seguir as minhas decisões…
  • Isso é tão liberal. Tão ocidental, Alex… Como se fosse opcional lutar, como se escolher entre lutar pela vida ou “decidir” ir fazer outra coisa qualquer fosse realmente uma opção. Mesmo agora, quando as coisas estão melhores, espero que não te mantenhas no teu privilégio, que ainda estejas a “pensar” se vale a pena estar no movimento. - Chida estava mesmo exasperada e eu percebi esta perspetiva diferente entre Norte e Sul. Talvez por isso a minha mãe tivesse aderido completamente ao movimento enquanto o meu pai tinha ficado mais por fora. Mas alguém tinha de cuidar de mim… Ou talvez eu já tivesse na altura idade para tomar as minhas próprias decisões, mas o conforto de não ter de tomá-las.  

A 10 de Março chegámos a Nairobi. Quando o comboio parou na estação central, frente à Universidade Técnica do Quénia, o número de pessoas à nossa espera era monumental. Nunca tinha visto uma multidão assim, mais de um milhão de pessoas, segundo me contaram. Levaram-nos até ao topo dos telhados da estação para falarmos. As minhas seguranças tinham oito drones a voar sobre nós, próximos o suficiente para que os víssemos mas longe o suficiente para que não os ouvíssemos. Eu já sabia o meu discurso quase de cor, até em inglês, mas aqui sentia a multidão presa em cada uma das minhas palavras. Claro que quando os Kusuma falaram, a multidão irrompeu num fervor quase religioso. O movimento ecomunista da República Africana Oriental estava pronto para uma nova revolução. Foi difícil desmobilizar aquela multidão depois de tão arrebatados discursos. Essa mesma tarde vi-me perante uma sessão da assembleia central do movimento ecomunista em Nairobi, com representantes das mais de quinhentas assembleias da república. Contei-lhes tudo o que sabia acerca da história da minha mãe, contei-lhes sobre os documentos que Sukumar me mostrara e que tínhamos apresentado perante o Tratado Mundial do Clima, sobre a responsabilidade direta do secretariado das Asas no massacre dos quinhentos, da culpa de Hector Crespo, de Chen Gongsun, de Gianni Fratin. Em vários momentos, alguns membros do comité interromperam-me pedindo-me que exigisse a sua cabeça, que tal traição não podia ser perdoada. Bonolo Deviliers e Claude Wemba estavam presentes apesar de já não pertencerem ao comité e, depois de eu próprio e dos Kumusa falarmos, foram convidados a intervir. Ambos juraram não fazer ideia dos planos do secretariado, que nunca teriam sido levados a qualquer reunião. Deviliers invocou uma vez mais ter sido vítima do massacre, tendo por pouco escapado com vida, enquanto Wemba se desculpou com a guerra no Congo, na qual estava completamente embrenhado enquanto a traição era “urdida por burocratas estalinistas”. Ambos proferiram ali mesmo a sua adesão à corrente da Justiça Histórica, que disseram sempre ter apoiado. A assembleia central aprovou uma moção à Assembleia Global do Movimento Ecomunista e à Assembleia Constituinte Global, exigindo a prisão imediata de Crespo, Fratin e outros associados ao massacre de ’36, declarando ainda a adesão formal do movimento ecomunista da África Oriental à corrente da Justiça Histórica, cujos princípios políticos deveriam passar a ser a orientação principal do movimento a nível global.

À saída da assembleia, já à noite, saímos à procura de algum entretenimento na cidade. Acabámos no clube olímpico, um espaço de animação construído para os Jogos Olímpicos de 2040 em Nairobi. Depois de um interregno de oito anos, em que o fiasco australiano parecia ter ditado o fim dos jogos, tinha sido na República Africana Oriental que finalmente tinha voltado a haver jogos. Claro que a confusão era grande, e as transformações monumentais: havia muitos mais países, mas também menos atletas e menos capacidade de mandar grandes equipas para outros locais do mundo. O fim do desporto profissional e da publicidade tinha feito dos jogos de Nairobi um evento completamente diferente, com milhões de espectadores locais mas poucas transmissões em direto para outros países. A abolição de várias categorias olímpicas, nomeadamente de género, tinha modificado o espírito violentamente competitivo e capitalista do evento mundial. A adição de provas não desportivas, nomeadamente de poesia, poetry-slam, competição de peças de teatro, duelos musicais e outras provas culturais tinham tornado as Olimpíadas um evento verdadeiramente global. Com o aumento das temperaturas, os jogos de Inverno também tinham acabado. No clube, discutimos sobre o futuro. Os Kusuma tinham grandes planos para o continente africano e perguntaram-me pelos meus. A minha falta de ligação com o movimento em Portugal era seguramente um problema. Ninguém sabia quem eu era, e eu também não tinha a perspetiva do que tinha de mudar ali, e menos ainda na Europa. Os Kusuma garantiram-me que haveria muitos aliados e que seguramente agora que eu iria envolver-me, poderia ajudar a liderar a Justiça Histórica na Europa. As maquinações delas e deles animaram-me.

A minha viagem com a família Kusuma durou mais três dias, numa paisagem árida a ficar desértica. Em Marsabit, onde já ninguém nos recebeu, separámo-nos. Dali em diante eu seguiria apenas com as minhas duas guarda-costas, às quais se juntariam mais três elementos quando chegássemos à República do Nilo. A despedida foi muito emocionante. Primeiro Norberto, depois Viriato e Serafino abraçaram-me e deram-me algumas lembranças - uma bandeira da República Africana Oriental, uma lança maconde e uma metralhadora antiga, a famosa AK47 (à qual tanto Keshini como Mandari abanaram a cabeça negativamente). Depois foi a vez de Janete Kusuma - muito sorridente mas pouco faladora - despedir-se. A última foi Chida, que me guiou pela mão para longe da sua família. Para minha grande surpresa, Chida beijou-me na boca, já longe dos seus primos e irmãs, apenas sob o olhar atento das minhas guarda-costas. O beijo tornou a despedida mais amarga, mas a promessa de um regresso mais entusiasmante. Chida prometeu-me que nos veríamos novamente e que eu não podia perder o meu rumo, agora que o tinha encontrado. Quando nos afastámos, Mandari piscou-me o olho, divertida. Embarcámos novamente no Transafricano, agora rumo a Juba, na República do Nilo. Para minha grande surpresa, a paisagem voltou a esverdear, com grandes bandos de pássaros e cursos de água cortando a savana. Dois dias mais tarde chegámos a Juba. O combinado era esperarmos na carruagem pelos novos seguranças enviados pelo Tratado. Keshini estava nervosa, roendo uma trança fina que lhe caía da cabeça. Ainda habituado às recepções, pus a cabeça de fora, mas estávamos simplesmente a entrar na cidade naquela manhã enevoada. No topo do comboio iam várias pessoas, que àquela velocidade estavam em perigo. O comboio começou a desacelerar até finalmente parar. 

  • Podemos sair? - perguntei.
  • O combinado é eles virem ter connosco. São dois homens e uma mulher. Quando nos tivermos encontrado logo decidimos se é seguro sair.

Esperámos alguns minutos até que alguns homens entraram na nossa carruagem, que agora partilhávamos com pelo menos mais dez pessoas. O homem da frente, alto, com uma barba aparada e óculos de sol, dirigiu-se a Keshini. Começaram a falar em inglês, ignorando-me.

  • Somos a equipa, camarada. Sou Kamau Kenyatta. - cumprimentaram-se com um aperto de mão.
  • Keshini Lakmal. Era suposto vocês serem três. Incluindo uma mulher.
  • Eu sei, mas estamos na República do Nilo - riu-se -, houve um imprevisto. Uma das camaradas ficou retida na fronteira da Etiópia. As ordens que recebemos são para substituir-vos e seguirem até Mombaça.
  • Ninguém nos falou de sermos substituídas, camarada.
  • Eu tenho as minhas ordens. - respondeu o homem, sorrindo. Os outros três também pareciam bastante amigáveis. - Confirma por favor.

Keshini virou-lhes as costas, aproximando-se de Mandari, pedindo-lhe o telefone. Assim que Keshini se voltou, o homem puxou de uma pistola e disparou, acertando-lhe na cabeça e enchendo Mandari de sangue. Esta puxou imediatamente da sua arma e saltou para cima de mim, abrindo fogo sobre os homens, matando pelo menos um. O tiroteio que se seguiu lançou o caos na carruagem, com todas as outras pessoas saltando por entre os bancos. Mandari partiu o vidro da janela e apontou-me para sair, enquanto disparava. Atirei-me, caindo com estrondo, enquanto as pernas dela aterraram como uma gata ao meu lado. Empurrou-me para o intervalo entre as carruagens e ficou a observar. Entre os gritos das pessoas, ouvíamos homens a dar ordens. Mandari mandou-me para baixo da carruagem e sinalizou-me que não fizesse barulho, enquanto limpava o sangue da cara. Rastejei para debaixo da carruagem. Não acreditava. Os pacifistas eram mesmo bárbaros, assassinos, traidores. Senti a minha visão a turvar de raiva e comecei novamente a ouvir tiros. Olhei de baixo de carruagem e conseguir ver Mandari abater dois dos assassinos, para finalmente ser ela própria atingida. Um homem com um longo vestido branco aproximou-se dela e cortou-lhe a garganta. Começou a chover ruidosamente, o que esbateu o ruído dos homens gritando e correndo por todo o lado. Eu estava completamente sozinho e  era uma questão de tempo até ser apanhado. Como um animal a tentar fugir da armadilha, rastejei por baixo das carruagens, olhando para um lado e o outro à procura de uma saída. Finalmente, vi um beco do meu lado direito. Arrastei-me até sair de baixo da carruagem, e arranquei a correr para tentar desaparecer na escuridão. Grossas gotas de chuva bombardearam-me na minha curta corrida. Antes de conseguir chegar ao beco, senti uma pancada na nuca e o sabor de ferro na boca. Puseram-me um saco preto na cabeça e perdi a consciência.

Quando despertei, ouvi a voz de vários homens à minha volta. Tiraram-me o saco e vi-me frente a uma câmara de filmar. Os homens falavam em árabe e eu não tinha o meu Babel. Só percebi uma palavra: Daesh.

Texto de João Camargo

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Portugal é o país onde mais cresceu o risco para o pluralismo mediático entre UE e candidatos

16 Dezembro 2024

O que diz a teoria que quer trocar o PIB pelo bem-estar

13 Dezembro 2024

Tempos Livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

12 Dezembro 2024

Israel will fuck you all

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

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Assessoria e Escrita de Comunicados de Imprensa

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Comunicação Cultural [online e presencial]

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Viver, trabalhar e investir no interior

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Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

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Jornalismo e Crítica Musical [online]

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Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

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Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

16 Dezembro 2024

Decrescer para evitar o colapso

O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

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