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42: Nova Xanghai

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 22.º episódio, Alex chega a Nova Xanghai e, enquanto explora as profundas mudanças urbanas e sociais na China, conhece figuras revolucionárias da “Revolução dos Jovens” e descobre mais sobre o papel do movimento ecomunista na transformação do país.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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Acordei sobressaltado. A turbulência que apanhámos já perto da China fazia todo o avião estremecer. Pouco me lembrava da nossa paragem em Sidney, na qual só tinha comido algo antes de voltar a dormir sob o efeito do sedativo. Depois do enorme ruído metálico do avião a ser sacudido de um lado para outro, senti uma forte impressão na barriga quando caímos de repente. As pessoas à minha volta, meio acordadas, meio a dormir, começaram a despertar. E a suspirar alto. Duas meninas nas cadeiras perto de mim começaram a gritar quando o avião abanou novamente de um lado para o outro. Pensei confortá-las, mas uma nova descida repentina tirou-me o ar dos pulmões. Comecei a respirar fundo e agarrei com uma mão a cadeira à minha frente, e com outra a menina que estava ao meu lado, não tendo mais a que me agarrar. Comecei a desesperar. Não havia nada que eu pudesse fazer. Pela janela, podia ver a chuva intensa a cair, estávamos no meio das nuvens. Comecei a pensar na morte. E no colete salva-vidas debaixo do assento. O que aconteceria se eu morresse? Nada. O António nunca se lembraria de mim, os meus pais já tinham morrido e a Lia também já tinha acabado comigo. E eu ainda não tinha conseguido fazer nada. Se calhar a Lia conseguia usar o material que eu lhe tinha enviado para escrever alguma coisa. Não ia saber o que acontecera à minha mãe. E de repente, em vez de medo, comecei a relativizar. Tanta gente morreu nas últimas décadas, o que significaria mais esta morte, mais um avião caído? Nada. Enquanto abanávamos nas cadeiras, presos pelos cintos, comecei estranhamente a ficar tranquilo. Depois de alguns minutos de tormento, a turbulência ficou mais espaçada. Comecei a respirar mais devagar, as crianças deixaram de chorar e berrar, apenas soluçando. O piloto falou:

- Desculpem os saltos, mas fomos apanhados pelos ventos da cauda de um pequeno tufão que se aproxima do Japão. Em princípio, não teremos mais turbulência até à aterragem.

Houve um suspiro coletivo das pessoas. A menina largou a minha mão. Pela janela, comecei a ver o mar através das nuvens. O meu pânico momentâneo dissipara-se rápido. As palavras do capitão era muito tranquilizantes.

- Esperamos aterrar em Xangai em cerca de 20 minutos.

Felizmente o piloto não se tinha enganado.

©Nuno Saraiva

Chegámos de manhã cedo ao aeroporto de Xanghai Hongquiao, o último ainda funcional da cidade em mudança. Estava bastante frio e tive de recuperar roupas que não usava desde que tinha saído dos Estados Unidos. A cidade de Xangai, que já tinha sido casa para mais de 25 milhões de pessoas, estava a ser abandonada sob a pressão simultânea do afundamento dos solos e da subida do mar. Uma parte importante da população estava a ser deslocada para Nova Xangai, uma cidade em construção entre Nantong e Yancheng, a 150 km de distância, na direção do interior e fora de zonas de risco inundação. Fora do avião acionei o meu Babel. O meu espanhol tinha-se desenvolvido muito, mas o meu mandarim era inexistente. Dois autocarros esperavam os doentes na pista para levá-los para hospitais. Ao lado deles estavam senhores com alguma idade. Estranhei que fossem os motoristas por parecerem demasiado velhos, mas dirigi-me a um deles para pedir indicações sobre onde apanhar o comboio até Haian, o centro da nova cidade.

- Só depois do almoço, senhor. - respondeu-me o homem. - antes havia a cada 20 minutos, mas agora o aeroporto já quase não recebe voos… - Suspirei, preparando-me para uma espera demorada.
- Mas pode vir connosco. Chegamos lá antes do comboio de certeza.

Aceitei a proposta e subi ao autocarro. Só quando entrei é que reparei que não havia lugar do condutor ou volante, apenas lugares sentados. Pensava que os transportes sem condutores tinham acabado, mas pelo menos aqui isso não era assim. Quando toda a gente já estava no autocarro, o homem segurou um microfone que fazia a tradução para espanhol:
- Bem-vindas à China, camaradas! Espero que o vosso voo tenha sido tranquilo - algumas pessoas riram-se nervosamente - e que estejam prontas para a última etapa da viagem até ao Hospital Ecosocial Internacional. O meu nome é Bolin Wu e serei vosso acompanhante nas próximas duas horas, até chegarmos a Nova Xangai. Como podem observar, o nosso transporte não tem condutor, o que descobrimos que não é comum noutros locais. Para acalmar os vossos receios, informo-vos que ao contrário de outras experiências do passado, os nossos autocarros não estão ligados à net e não têm portanto vulnerabilidade de serem hackeados. O sistema de condução autónoma baseia-se em percursos programados e complementados com verificação permanente dos percursos por sensores e câmaras, o que impede acidentes. Este sistema é mais seguro do que ter uma pessoa a conduzir. Além de as pessoas a conduzir poderem estar cansadas ou com algum problema, com este sistema libertámos as pessoas de   passarem o dia em atividades repetitivas e alienantes, tais como conduzir um autocarro no mesmo percurso vezes sem conta. - lembrei-me do meu trabalho como guarda-freios em Lisboa, no que parecia uma memória distante, de outra vida.

O nosso “guia”, com ar de mestre ancião, de longa barbas brancas, óculos e careca reluzente, continuou a contar-nos pormenores sobre a história recente de Xangai. A megalópole, uma das mais antigas cidades do mundo, e a cidade com maior população de China até há poucos anos atrás, estava num processo de deslocação há oito anos. A sua localização no delta do rio Yangtze tinha sido a principal causa para o abandono. Além do rio, as cheias marítimas e as ondas de calor colocavam imensa pressão sob a população costeira, com um esforço cada vez maior para recuperar zonas afetadas. Finalmente decidiu-se abandonar as zonas costeiras da cidades, mantendo ainda cerca de 4 milhões de pessoas nos distritos de Jiading e Fengxian. Bolin explicou ainda que na China, desde a “Revolução dos Jovens”, estava a haver um esforço coletivo para reduzir a dimensão das populações das cidades, distribuindo a população por muitos das áreas construídas nas décadas anteriores, algumas das quais tinham acabado vazias por causa da especulação imobiliária.

©Nuno Saraiva

Olhando pelas janelas, Bolin explicou-nos como agora havia áreas na antiga Xangai permanentemente alagadas. O esforço de construir muros para proteger a cidade das águas dos lagos, do Yangtze e do mar, assim como de transformar partes da metrópole em “zonas-esponja” para combater as cheias apenas tinha funcionado durante os primeiros anos. Mas nada disso tinha parado a chamada “subsidência”. Xangai, como muitas outras cidades asiáticas, estava a afundar-se sob o peso da construção e da extração de reservas de minérios e de água doce do subsolo. Este fenómeno e a subida do nível médio do mar por causa do degelo acelerado do Ártico e da Antártida, levou à dramática decisão: deixar a cidade ser lentamente invadida pelo mar. Apontando para fora, Bolin explicou-nos que apesar desse esforço ainda havia pessoas muitos milhares de pessoas que habitavam as zonas alagadas, em barcos-casa e nas famosas docas móveis de contentores que flutuavam com a subida e descida das águas. A redução dos grandes volumes de comércio internacional marítimo e mesmo terrestre tinha deixado a China com dezenas de milhões de contentores vazios e sem utilização. Para resolver esta situação, os contentores começaram a ser reaproveitados para inúmeros fins: armazéns, casas, estufas, escolas, laboratórios, edifícios em geral, e para abrigo rápido em catástrofes. Após um atentado na Barragem das Três Gargantas, milhões de pessoas tinham sido alojadas em contentores, permitindo gerir o realojamento dos sobreviventes durante os meses seguintes. Quando pedi ao homem que me explicasse melhor o que tinha acontecido com as Três Barragens, Bolin respondeu rispidamente que tinha sido má ideia relembrar a tragédia provocada por terroristas. Após este comentário, o homem remeteu-se ao silêncio.

Atravessámos o Yangtze na direção de Nantong e, uma hora depois, chegámos a Nova Xangai. A cidade estava construída em antigas zonas agrícolas, com uma arquitetura radical, integrada com zonas húmidas, pradarias, bosques e florestas. Para reduzir os riscos de subsidência, os prédios mais altos não tinham mais do que seis andares. Observei que várias estruturas, além dos cimentos esburacados e tijolos reciclados, utilizavam estruturas de bambu. Vi até edifícios inteiros de bambu, que imaginei que não fossem casas (o frio e o calor em casas de bambu lembrou-me a história do lobo mau). Muitas ruas não eram pavimentadas, sendo que as que não eram solo nu tinham os usuais pavimentos intertravados abertos, em que uma parte é coberta e a outra deixa a terra ou a erva à mostra. Percorrendo a cidade por cima desse pavimento ruidoso, começámos a observar uma estrutura com cerca de 10 metros de altura, que sustentava o metro suspenso, um transporte extremamente veloz que paira sobre a cidade. Tal como todas as novas construções e parte da adaptação urbana na China, Nova Xangai é uma cidade-esponja, com os seus lagos, bosquetes, jardins e estruturas verdes conectadas entre si. Não houve nenhuma zona da cidade em que eu tenha estado que não sentisse que estava numa zona verde.

Finalmente chegámos ao hospital internacional. Enquanto nos despedíamos, Bolin aproximou-se de mim:

- Camarada, desculpe não ter continuado a conversa, mas sabe que há assuntos que não estão resolvidos aqui na China. Os crimes das tríades são um deles.

- Tríades?

- O crime organizado aqui na China. É possível ver a presença deles ainda em alguns locais, apesar de todos os seus crimes e de serem perseguidos pelo governo. Enfim, espero que não tenha o azar de encontrá-los. Devo ir embora, tenho de ir descansar da viagem. Até à próxima, tongzhi!

Despedi-me das restantes pessoas, desejando-lhes sorte com os seus tratamentos, e decidi procurar a sede do movimento ecomunista na cidade. Consultei o painel informativo dentro do hospital, que me deu o percurso até ao meu destino. Cruzei a cidade no metro suspenso observando os detalhes de Nova Xangai através das janelas e do chão transparente da cabine. Não vi asfalto em nenhuma parte. Em geral, era uma cidade muito clara, oscilando entre os verdes da vegetação e os brancos e amarelos das casas. Vários telhados tinham coberturas verdes e pequenos painéis solares e miniturbinas eólicas, mas fiquei com dúvidas se aquilo era suficiente para alimentar toda a rede elétrica. As ruas estavam bastante cheias de pessoas atarefadas, várias cuidavam de hortas, pintavam paredes e podavam árvores, outras circulavam em bicicletas simples, duplas e até triplas nas zonas pavimentadas, parecendo-me que um número significativo das bicicletas transportava encomendas. Muitas pessoas assistiam a espetáculos em diferentes locais, e eram tantas que até pensei que seria alguma ocasião festiva. Havia ainda estaleiros de obras um pouco por todo o lado, percebia-se que a cidade continuava em plena construção em construção. Finalmente desembarquei na minha paragem, descendo para a rua mesmo à frente da sede do movimento.

Era um edifício modesto, com bandeiras ecomunista, comunistas e ecosocialistas à porta. Aqui, a organização política era uma mistura, já que aparentemente não tinham sido os ecomunistas a liderar a Grande Transformação. A porta estava aberta e entrei. Três mulheres jovens passavam com ar atarefado de um lado para outro, com pilhas de livros na mão. Cumprimentaram-me com acenos de cabeça e uma dirigiu-se a mim num inglês impecável:

- Está cá por causa da visita? É só à noite.

- Visita?

- Do comité revolucionário.

- Não, não é isso.

Ela poisou os livros e aproximou-se.

- Então quem é? - Estendi-lhe a mão.

- O meu nome é Alex Águas. Sou um camarada do movimento, vindo de Portugal.

- De Portugal? Estás perdido? Eu sou Chenguang. - apertou-me a mão, com tanta força que me magoou. Era forte, para uma mulher tão pequena.

- Não, não estou perdido. Eu estou a viajar, venho fazer entrevistas.

- Não sabia que o movimento fazia isso.

- Faz. Eu estou à procura de duas camaradas chamadas Jieling Zheng e Biyu Zheng.

- Conheço a camarada Jieling, mas não conheço a camarada Biyu.

- E onde posso encontrá-la?

- Ela não é de Nova Xangai. Podemos tentar descobrir.

- E o que é o comité que vem visitar?

- São vários elementos, heróis e heroínas da revolução, que estão a viajar pelo país para inspirar as assembleias locais e os grupos políticos.

- Uau. E vêm aqui?

- Não vês que estamos a arrumar a sede? Claro que vêm. Ajudas-nos ou vais ficar a olhar?

Poisei as minhas coisas a um canto e ajudei as raparigas a reorganizar as várias salas. Durante horas transportámos livros, panfletos, cartazes, velhos eletrodomésticos, caixas de ferramentas, pendurámos quadros, fizemos arranjos de flores. O meu Babel ficou sem bateria pouco depois de eu chegar e por isso não percebia nada do que elas me diziam. Assim, acabámos por nos comunicar principalmente por gestos e expressões. Eram muito divertidas, ou pelo menos riam-se muito. Passado algum tempo finalmente consegui explicar-me e pedir uma ficha para carregar o Babel. Para minha grande surpresa, elas apontaram-me para uma tomada elétrica, uma tomada para a qual eu não tinha ficha. Demorei uns 10 minutos a explicar-lhes por mímica que podia usar um indutor para carregar o aparelho. Uma delas, Dayiu, finalmente puxou-me pelo braço. Debaixo de um vaso com cactos, estava um velho aparelho, que parecia um bico de fogão de indução. Para minha grande surpresa, funcionava (confesso que os primeiros minutos fiquei a observar se aquilo não me ia cozinhar o tradutor). Horas depois, quando as arrumações estavam prontas, o Babel deu sinal de já estar operacional (tinha demorado três horas, em vez dos dez minutos do costume). Durante o trabalho da tarde, reparei que a sede tinha uma camarata estilo militar numa sala do fundo. Perguntei-lhes se podia ficar aí a dormir essa noite e elas uma vez mais começaram com risinhos.

- Só porque nos ajudaste tanto esta tarde, camarada. E vais-te portar bem porque esse é o nosso quarto.

Poisei as minhas malas no quarto e aproveitei para me deitar num colchão sem lençóis. Já estava um pouco cansado e adormeci. Passado algum tempo, Chenguang sacudiu-me, acordando-me.

- Camarada, eles chegam em dez minutos.

O aparecimento do comité foi um espetáculo, com uma parada a descer a rua, com banda e bandeiras, grandes quadros com imagens do que devia ter sido a revolução e com as caras, bem grandes, de várias figuras revolucionárias, umas recentes e outras antigas, como Mao Zedong, Che Guevara ou Amílcar Cabral, segundo me explicou Caihong, a terceira camarada ecomunista. Seguiu-se um fogo de artifício bastante impressionante. As ruas encheram-se de pessoas, que aplaudiam (umas mais entusiasticamente que outras) enquanto os membros do comité subiam um a um ao palco. Os seus discursos foram atraindo cada vez mais pessoas, até a rua estar completamente cheia. Os temas variavam, uns falavam sobre a longa história da China e como a China aguentaria mesmo num mundo novo, outros sobre a Revolução Comunista, e como a China tinha sido o farol do socialismo durante o pior período da história. Os discursos sobre coisas antigas recebiam aplausos tímidos. No final, um homem com cerca de 50 anos subiu. Tinha uma barba rala, vestia o tradicional fato de macaco verde que eu associava tanto ao ecomunismo e sorria muito. O homem, chamado Deng, falou sobre o derrube do comité central capitalista e sobre uma nova aurora após a Revolução dos Jovens, de como o país era agora mais justo e muito menos destruidor, apesar de todas as catástrofes. A multidão aplaudiu-o com entusiasmo, enquanto ele subia cada vez mais o tom, até arrematar com a tradicional saída de que a revolução nunca mais ia acabar. A multidão irrompeu a cantar e a gritar, até que finalmente percebi os acordes da famosa “Internacional”. Os membros do comité em cima do palco acompanhavam a multidão com os braços sobre os ombros uns dos outros. Terminada a canção, entraram na sede do movimento, enquanto a multidão se manteve do lado de fora, cantando.

As minhas companheiras, às quais se tinham entretanto juntado vários outros jovens com fatos de macaco vermelhos, serviram bebidas e umas entradas de massa e pasta (que presumi pelo aspecto que fossem diferentes combinações de insetos) aos doze revolucionários do comité. Todos me cumprimentaram, mas pareciam mais interessados em falar entre si. Também aproveitei para comer. As conversas eram feitas em pequenos grupos, e todas relativamente silenciosas. Terminado um segundo prato de sopa de vegetais e queijos, as pessoas começaram a sentar-se em cadeiras. Fui falar com Chenguang, pedindo-lhe que me apresentasse a alguém, se possível ao homem que tinha falado tão bem no fim. Ela disse-me para esperar num sofá. Lá me fui sentar, frente a uma mesa de café, aproveitando para folhear os panfletos que elas lá tinham deixado. Não conseguia perceber os caracteres, mas as ilustrações pareciam indicar como montar um sistema caseiro de painéis solares, embora o papel estivesse cheio de martelos e estrelas. Do lado de fora da sede, as pessoas continuavam a cantar. Passados alguns minutos, o homem veio ter comigo.

- Olá, camarada. Então vens da Europa?

- Sim, venho.

- Que grande viagem, como chegaste até aqui? Vieste pela rota?

- Rota?

- A nova rota da seda, a ligação entre Europa e Ásia por comboio.

- Não. Foi muito mais complicado do que isso. De barco da Europa até à América do Norte, depois desci todo o continente e apanhei um avião até aqui.

- Um avião? Uma raridade, conseguir isso.

- Vim com doentes que vieram ser operados no hospital, num avião médico.

- Ah, já percebi. E que fazes cá?

- Estou a escrever um livro acerca da Grande Transformação por todo o mundo. E pelo que percebi, tu poderias ser um pessoa interessante para eu falar. Será que terias tempo para me dar uma pequena entrevista sobre a Revolução dos Jovens?

- Sim, claro.
- Agora?
- Desde que seja mais ou menos rápido…

- Vou tentar. - liguei o gravador - Então pedia-te por favor que me explicasses em traços gerais o que aconteceu.

- Bem, não sei se sabes, mas estive envolvido desde o início nos Jovens Marxistas no processo de transformação. Nós não lhe chamamos revolução, porque a nossa Revolução aconteceu em 1949, há quase 100 anos. Aquilo a que as pessoas chamam de Revolução dos Jovens foi um processo de substituição antecipada da direção do Partido Comunista Chinês por uma direção de jovens comunistas também pertencentes ao partido.

- Foi uma espécie de golpe de estado?

- Também não lhe chamaria um golpe de estado, embora haja quem o descreva assim. Enfim, não foi um processo revolucionário tal como é descrito na maioria da literatura de transformações políticas e sociais. Mas removemos a direção e mudámos drasticamente a política do partido. Isso significou também mudar o envolvimento social na vida política, recebendo os ventos do resto do mundo. Foi um “processo acelerado”. Décadas em poucos dias.

- O que é que levou então à ocorrência deste “processo acelerado”, como lhe chama?

- Bem, o início do movimento Jovens Marxistas aconteceu nas Universidades de Renmin, de Nanjing e de Pequim. Sob a recomendação do Partido, foram formados grupos de estudo para começar a fazer leituras de Marx, Engels e outra literatura marxista. Começámos a fazer leituras conjuntas e, pouco depois, a procurar aplicações práticas das mesmas. Em poucos meses começámos a criar sindicatos estudantis, ajudámos funcionários a organizar-se e a pedir ajuda ao partido, quando não estavam sindicalizados, e a expandir os nossos contactos e conteúdos, partilhando-os com mais jovens, principalmente membros do partido. Demorou pouco tempo até começarmos a receber avisos por parte da direção da faculdade, e até das nossas famílias, que quem tinha de organizar esses assuntos era o Partido - o que estranhámos quando nós mesmos pertencíamos à juventude do Partido, quando o que tínhamos feito era tornar prático aquilo que nos recomendaram que lêssemos. Alguns de nós chegaram mesmo a abandonar a faculdade e ir trabalhar para fábricas, proletarizando-se e começando a organizar trabalhadores, as massas. A informação que nos chegou, embora a conhecêssemos em segunda mão, era devastadora: o desvio capitalista do partido era monumental. Em poucos meses os Jovens Marxistas foram proibidos e vários dos livros em que nos tínhamos inspirado começaram a desaparecer das bibliotecas das escolas.

- De que livros estamos a falar?

- De vários escritos de Marx, o Grundrisse, o Trabalho Assalariado e Capital, a Crítica do Programa de Gotha, Feuerbach… E desapareceu quase tudo de Lenine, para não falar dos hereges como Gramsci, Trotsky, Luxemburgo, Bellamy Foster ou Federici.

- Então eles proibiram literatura comunista?

- Não proibiram abertamente, só dificultaram muito o acesso, tanto em papel como online. Quase conseguiram desmantelar os Jovens Marxistas, mas tanto na China como em Taiwan, Hong Kong e Macau nós mantivemos atividades clandestinas e contactos. A nossa rede era muito mais informal e maior do que eles pensavam. Alguns de nós, incluindo eu, fomos proscritos durante alguns anos, não podíamos ter cargos dentro do partido, tínhamos créditos sociais cortados, eram-nos exigidas confissões, auto-críticas de forma muito regular. Muita gente não aguentou. Mas não fomos expulsos do partido. Entretanto, outros grupos da juventude começaram a olhar de forma cada vez mais crítica para a direção do partido. Eram sempre minorias, até porque a maior parte dos jovens no partido estava ali porque era a melhor maneira de ter uma carreira profissional na altura. Mas a insatisfação ideológica não parava de crescer, até no básico da doutrina comunista, que era profundamente contraditória com a maneira como a China era gerida. Era-nos sempre dito para compararmos a China com o resto do mundo, e em geral parecia que até estávamos melhor, mas havia cada vez mais desigualdade, repressão e opressão. Nessa altura começou a haver grande nível de desemprego, em particular desemprego entre jovens, e a insatisfação começou a ser também material. Com a forte poluição e o clima cada vez mais quente, era-nos dito para ignorarmos as acusações de outros países acerca do papel da China na crise do clima. Era-nos dito que era o imperialismo americano  e europeu a querer prejudicar-nos e colocar em nós as suas culpas.

- E não era, também em parte?

- Em parte sim, mas o comunismo chinês tinha responsabilidades. Grandes responsabilidades. Outros já discutiam sobre a doutrina do “Socialismo com características chinesas”, mas na juventude do partido a piada mais recorrente era que se devia chamar “Capitalismo com arroz”. Nesta altura, a governação era um grande teatro. De vez em quando o Comité Central ou o Secretário Geral falavam sobre a China como Civilização Ecológica e até discursavam acerca de “Ecosocialismo”. As características desse ecosocialismo chinês eram ser capitalistas.

- Vocês nessa altura estavam em contacto com os elementos ecomunistas?

- Ainda não. Eu pelo menos não estava. Mas estamos ainda a falar de antes da pandemia de Covid. A partir do Covid, tudo mudou. A vida tornou-se uma prisão frequente para centenas de milhões, em particular estudantes e trabalhadores. A política de Covid-Zero do governo tornou-o mais impopular que nunca. Começou uma enorme lenta e constante desestabilização e desmoralização da população. Ainda estávamos a entrar e a sair de confinamentos estritos quando aconteceu o ano 1.8 e as grandes ondas de calor. Morreram 400 mil pessoas confinadas em casa, mas também nas fábricas e nas prisões. Xingiang atingiu os 55ºC esse ano. Num primeiro momento, parecia que o governo ia finalmente ter uma resposta à altura: fez um acordo de paz com Taiwan e começou negociações para acabar com a escalada de guerra no Mar da China, reconhecendo que não tínhamos recursos para desperdiçar com essa realidade e com a catástrofe no clima. Quando foi fundado o Tratado Mundial do Clima, a China foi dos primeiros membros. Mas ainda não tinha acabado tudo de terrível que esse ano trouxe. Centenas de milhões de peixes mortos deram à costa em vários locais da China e algumas populações costeiras comeram-nos para complementar as suas dietas. Embora a maior parte dos peixes tivesse morrido de falta de oxigénio, milhões estavam infectados com toxinas. Morreram centenas de pessoas contaminadas. Foi nessa altura que começaram os protestos.

- Manifestações?

- E não só. Muitos jovens operários, impedidos de fazer greve, começaram a faltar ao trabalho de forma regular. Começaram roubos sistemáticos de armazéns alimentares. E havia manifestações diárias, embora a imprensa se esforçasse ao máximo por escondê-las. Foi nessa altura que retomámos a atividade dos Jovens Marxistas. Nessa altura, sim, já estávamos em contacto com os ecomunistas, embora nunca nos tenhamos juntado formalmente a este movimento. Eles forneceram-nos algum apoio, nomeadamente na área de hacking e sabotagem.

- Havia alguém dos Jovens Marxistas nas Asas de Borboleta?

- Como sabes acerca das Asas?

- Faz parte do que estou a investigar. Sei que havia membros aqui.

- Nós não falamos sobre isso. - ele estava mesmo desconfortável - Peço-te que continuemos.

- Sim, claro.

- O gatilho para o processo de transformação foi o surto de MersCovid bovino. Quando o alarme foi dado no Brasil, já tinha chegado carne a várias cidades chinesas, infectando dezenas de pessoas. A reação do governo foi fechar o país. Só que já ninguém aceitava. Os protestos de rua tornaram-se gigantescos, liderados por jovens (além de nós, havia outros, mais despolitizados). Nós tínhamos alguns aliados dentro do Comité Central, que nos iam informando sobre o que se ia passar. O governo apelava nas redes sociais e na imprensa oficial a que as pessoas idosas denunciassem vizinhos e familiares envolvidos em actividades subversivas. Foi criado um sistema de crédito social acima dos outros: quem fosse detido perdia acesso à deslocação em transportes, mesmo dentro das cidades. O objetivo era desmobilizar ao máximo, interditando o acesso a várias atividades e isolando-nos uns aos outros, já que se tinha tornado muito difícil deter um número significativo de dirigentes. Mas nós já esperávamos que medidas como essas acontecessem e estávamos preparados. Nessa altura, conseguimos hackear as apps do “Olho Celeste” e lançar milhões de denúncias falsas, fazendo com que a polícia se perdesse em buscas inúteis, enquanto mantínhamos os protestos móveis e cada vez mais disruptivos. Conseguimos sabotar as redes de vigilância, destruindo milhares de data Centers e de cabos de ligação internos. As 800 milhões de câmaras de vigilância espalhadas por todo o país tornaram-se cegas. Nessa altura, o governo declarou Lei Marcial e mandou o Exército de Libertação Popular para as ruas. Embora tenham saído com os seus tanques e helicópteros, as forças armadas hesitaram em reprimir o movimento. Havia muita insatisfação entre militares porque o Comité Central os vinha expulsando e disciplinando a grande ritmo nos anos anteriores. Além disso, tinham discordado da decisão certa de desescalar os conflitos em Taiwan e no Mar da China. Contámos ainda com uma aliança surpreendente para levar a cabo a nossa ação: a tríade Sun Yee On.

- A máfia?

- Um grupo de crime organizado baseado em Hong Kong.

- Mas vocês aliaram-se com eles?

- Na verdade, o que conseguimos foi inverter a sua aliança com o Comité Central. Eles operavam em articulação com o partido há alguns anos: as tríades, mesmo outras além de Sun, eram usadas para repressão política tanto na China continental como em Hong Kong, Taiwan e Macau, além de protegeram partes da Rota da Seda. Poucas semanas antes de os convencermos a apoiar-nos, eles estavam a perseguir-nos ativamente. Não foi um acordo fácil, mas foi decisivo. A Sun Yee On foi essencial para convencer os generais da Comissão Militar Central a deixar-nos remover o Comité Central pacificamente.

- Mas vocês tinham condições de fazê-lo sem ser pacificamente?

- Teria sido muito difícil, mas teríamos avançado na mesma.

- No entanto, não foi preciso.

- Não, naquele momento não. Claro que nos anos seguintes nem tudo correu bem, mas já tinha sido operada uma grande mudança a nível político aqui na China.

- Quando dizes que não correu tudo bem, falas do terrorismo? Como nas Três Gargantas?

- Sim, entre outras coisas. Mas quando tivemos de reprimir as tríades elas responderam com muita violência. Não todas.

- Como aconteceu a substituição do Comité Central?

- Bem, começou com marchas vindas de toda Pequim em direção a Zhongnanhai, a sede do poder, onde iam reunir os 360 membros do Comité Central. Pelo menos oito milhões de pessoas vieram dos mais de 40 pontos de encontro de todos os lados da cidade, caminhando rumo à reunião.

- E a polícia?

- A polícia concentrou-se toda em defender Zhongnanhai. Penduraram-se ao longo dos quilómetros de muros vermelhos, armados e apontando aos manifestantes. Mas por outro lado, as forças armadas não vieram defender o comité central. Nós também estávamos armados, tanto com armas de fogo como com drones. Houve uma forte tensão no frente a frente entre polícia e manifestantes, que durou cerca de uma hora. Enquanto isto acontecia, um grupo especial tomou a sede da CCTV, perto da Cidade Proibida, que passou a emitir as nossas exigências ao Comité Central. Já não nos chamávamos Jovens Marxistas mas sim Liga da Juventude Comunista, cuja direção tínhamos ganho na semana anterior. Denunciámos as cedências do Comité Central ao capitalismo e à catástrofe ecológica, a sua perseguição do povo chinês e da juventude, e exigimos o exílio imediato de 330 membros, incluindo o Secretário-Geral, todos os membros do Politburo e os elementos não-militares da Comissão Militar Central. 330 novos membros, todos da Liga da Juventude Comunista, juntar-se-iam ao Comité Central Provisório. Antes, o membro mais novo do Comité Central tinha 51 anos, agora, o mais novo tinha 17!

- Por isso a Revolução dos Jovens.

- Sim, também foi uma transformação geracional e de género. As mulheres passaram a ser a maioria do Comité Central. Devia ser a Revolução das Jovens!

- E os membros do comité central aceitaram todos o exílio?

- Os que estavam em Zhongnanhai partiram todos, incluindo o Secretário-Geral e todos os membros do Politburo. Houve vinte e dois que não estavam presentes, que se concentraram todos do Norte, e resistiram durante meses. Mas era pouco consequente. A transformação tinha sido conseguida.

- Para onde foram os exilados?

- Para diferentes países. O Politburo acabou todo na Nova Zelândia, os restantes espalhados pela Índia, Irão, Uzbequistão. Fomo-los deixando regressar aos poucos. O antigo Secretário-Geral faleceu na sua antiga casa em Pequim há dois anos atrás.

- E aquela imagem famosa da Revolução dos Jovens, onde é?

- A da troca dos emblemas nacionais?

- Sim.

- É no edifício onde reunia o Comité Central, no final desse mesmo dia. Eram duas camaradas Jovens Marxistas a derrubar o antigo emblema do “Socialismo com características chinesas”, colocando no seu lugar o emblema nacional do comunismo ecológico. São Shi Xianggu e, claro, Jieling Zheng.

- Aquela é a Jieling Zheng?

- Já ouviste falar?

- Sim, mas não a conheço. Estou aqui na China para encontrá-la e entrevistá-la.

- Para isso terás de ir a Pequim. - Começou a levantar-se, pondo a camisa para dentro do cinto.

- Sim, é esse o meu plano. E conhece a camarada Biyu Zheng?

- Nunca ouvi falar dela. - Estendeu-me a mão.

- Boa sorte, rapaz. Se precisares de ajuda com alguma coisa contacta-me. - Passou-me um cartão para a mão com o seu nome e contactos: Deng Ming, Comissário Político Permanente, Membro do Politburo.

©Nuno Saraiva

Quando o comité revolucionário saiu do edifício, a multidão começou a cantar mais alto, as bandeiras foram novamente levantadas e a parada seguiu rua abaixo, já sob noite cerrada.

Texto de João Camargo

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2 Outubro 2024

42: Panamericana

25 Setembro 2024

42: O ano do Leão

18 Setembro 2024

42: Como explodir um gasoduto

18 Setembro 2024

Quase 1300 pessoas e uma centena de coletivos pedem ação política contra escalada do ódio

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura II – Redação de candidaturas [online]

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Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

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Viver, trabalhar e investir no interior [online]

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Comunicação Cultural [online e presencial]

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Jornalismo e Crítica Musical [online]

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Escrita para intérpretes e criadores [online]

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Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

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Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

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Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

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Criação e manutenção de Associações Culturais (online)

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Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

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