Josephine deve ter uns sessenta anos, mas não parece ter mais que quarenta. Muito alta e magra, a sua pele negra reluz neste fim de manhã de Outubro. Está muito frio em Bruxelas. Ela recebe-nos na estação de comboio com abraços calorosos e apertados, com muito mais força que os seus magros braços pareciam revelar. Prega-nos beijos nas faces. Depois, dá um passo atrás e liga o seu tradutor de pescoço antes de começar a falar.
- Olá, Alex. Lembras-te de mim?
- Não. Nós conhecemo-nos?
- Eu conheci-te quando ainda eras pequeno, devias ter uns sete ou oito anos. Os teus pais vieram a Bruxelas para um encontro sobre Trabalho e Clima. Foi pouco antes de começar a primeira epidemia de Covid.
- Não me lembro, desculpa.
- Não tem problema. Estou muito feliz por aqui estares. Por aqui estarem, aliás. Bem-vinda, Lia. E o pequeno António também. Fez-lhe um carinho na bochecha.
- Obrigado - sorriu a Lia.
- Eu sou Josephine Mulumba Alphonse. Sou a presidente da Organização Europeia do Trabalho. E tenho muito prazer em ser a vossa anfitriã enquanto estão na nossa cidade.
Entretanto, Gianni desceu da carruagem com Ettore. Gianni e Josephine cumprimentaram-se com um aceno amigável de cabeça.
- Como estás, camarada? Perguntou o italiano.
- Bem, Gianrocco. Bem. - Deu-lhe um beijo na face e sorrindo para Ettore, abraçou-o.
Voltando-se novamente para mim, agarrou-me pelo braço e encaminhou-me na direção da saída.
- Espero que a viagem não tenha sido cansativa.
- Não, foi bastante tranquila, consegui trabalhar mas também descansar. Viajar de comboio é muito bom.
- Óptimo, óptimo. Vamos levar-vos para uma casa que temos um pouco fora do centro. Sabes que a nossa cidade livre está dividida em dezanove partes? Vamos levar-vos para a floresta. Por falar nisso, não me pareces muito equipado para o frio.
De facto, a nossa roupa estava muito desajustada. Deviam estar uns 5ºC e tanto eu como Lia tiritávamos. Josephine tirou o seu pesado casaco e pô-lo por cima de Lia. Eu abri a minha mala e tirei de lá uma camisola de lã que tinha, vestindo-a.
- Temos de ir ao armazém de roupas buscar-vos umas coisas para ficarem agasalhados nos próximos dias.
- Mas nós não temos carbos. - Disse-lhe Lia, baixinho.
- Fica tranquila, não é preciso troca para ter roupa.
Chegámos a um carro elétrico, o único na rua, ainda pavimentada e cheia de carris de trams, que iam passando nos dois sentidos. Josephine colocou as nossas bagagens na traseira. Gianni e Ettore aproximaram-se de nós e começaram a despedir-se.
- Pensava que vinham connosco. - Disse surpreendido.
- Não, nós vamos ficar aqui pelo centro. Reuniões. Perguntaram-nos no outro dia como é que nós organizámos as revoluções e a resposta é muito menos heróica do que estavas à espera. Reuniões. Reuniões, reuniões, reuniões. - Josephine e Ettore riram-se e Gianni sorriu-me.
- Mas voltamos a ver-nos?
- Sim. Estamos em contacto e vamos falar antes de voltares. Aproveita a Josephine e todas as pessoas que ela te apresentar. E aproveita Bruxelas, se tiveres tempo.
- OK. Preciso saber mais coisas sobre a mãe. - Gianni estendeu-me a mão, puxando-me para um beijo na bochecha. Beijou Lia e António. - Vais saber. - Acenou-nos e afastou-se com Ettore, de volta à estação.
Entrámos no carro e Josephine conduziu a viatura pelas ruas empedradas, seguindo o caminho dos trams. Enquanto nos levava pela cidade, explicava-nos a evolução da cidade nas últimas décadas, até à proclamação de cidade livre, ocorrida há poucos anos. Com o fim da União Europeia, a cidade perdeu uma parte da sua população e foi apanhada pelo separatismo flamengo. Mas Bruxelas não era separatista e não seria a capital da Flandres. Também não poderia ser Valónica. E assim, mais por exclusão do que por independentismo, Bruxelas tornou-se uma cidade livre. A sua localização geográfica e o facto de ter tanta gente de tantos países - e tanta gente que tinha trabalhado para e à volta das instituições europeias - fez com que algumas das novas instituições montassem também aí novas representações. As mais importantes eram a Universidade Mundial, a MIGRATUR, a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, o Banco Europeu do Clima e a Organização Europeia do Trabalho. Se fosse possível, ia levar-nos a visitar alguns deles. Fomos diretamente ao Matongé, a que chamou “pequena África no coração da Europa”. Inicialmente um bairro de migrantes congoleses, nas últimas décadas tinha aumentado de população e também de diversidade, tornando-se um bairro com mais de 40 nacionalidades, principalmente africanas. Foi ali mesmo que parámos para ir ao grande Bazar. Desde que saímos do carro toda a gente cumprimentou Josephine entusiasticamente. Jovens e idosos aproximavam-se para lhe agradecer e beijá-la. As crianças gritavam “Ujasiri mama, usajiri mama!”. Josephine sorria e fazia-nos sinal para avançarmos rapidamente.
- Desculpa, mas porque te agradecem?
Apontou para uma parede atrás de nós onde aparecia a sua cara, determinada, num grande mural com o seu dedo em riste. Atrás, caminhavam milhares de pessoas, sorrindo. Por cima, dizia “La Route de l’Avenir”. Entrámos no gigante armazém, na Chausée de Wavre. Tinha uns 20 metros de altura, com prateleiras cheias de roupas, de todos os tipos de roupa. Algumas pessoas andavam de um lado para o outro com carrinhos de compras, subindo escadas e recolhendo coisas em diferentes sítios.
- Agradecem-me sempre por causa do meu trabalho no Mundo Novo. Mas principalmente por causa da Rota do Futuro, da qual fui uma das principais autoras.
- Ah! A Fatima Idrissi falou-me sobre a rota. - Respondi-lhe enquanto escolhia calças e botas para o frio.
- Sim, a Fatima foi uma grande viajante. Ela estava sempre pronta para se meter em mais uma aventura. Foi uma heroína no terreno. Eu apenas fiz uma viagem. Mas olha, a Marta foi das primeiras a fazer a rota mais difícil, na América Central para o Norte, ainda antes da rota ou da Carta do Refugiado terem sido aprovadas.
- A minha mãe? Foi por isso que ela foi para a América?
- Não sei porque é que é ela foi, eu soube que ela fez esta rota porque o relatório que a equipa dela escreveu foi uma das bases para escrever a rota. Foi uma viagem com 50 mil pessoas entre conflitos e atravessando vários territórios de milhares de quilómetros. Foi duro, mas conseguiram proteger aquelas pessoas. Eram mesmo duras, as descarbonárias.
- Ainda tem o relatório? - perguntou Lia, que já tinha duas camisolas e calças grossas consigo.
- Acho que esses documentos estão em biblioteca, não guardo essas coisas comigo. - e apontando para o que Lia trazia nas mãos, reparou - Não precisam trazer pouca roupa, porque para secar as coisas no tempo húmido é difícil e se vão ficar connosco algum tempo, mais vale terem o que trocar. E no fim, devolvem. Não sei o que Gianni falou convosco, mas não poderão ficar muito mais do que duas semanas. - pegou nas roupas todas que tínhamos nas mãos e colocou-as num carrinho, - vão buscar luvas e cachecóis, que pode ser que tenham uma surpresa. - sorriu.
- Mais frio? - Encolheu os ombros, encaminhando-nos para as roupas de criança e para os provadores de roupa. O armazém era mesmo grande, parecia ter roupa suficiente para uma cidade inteira.
Josephine levou-nos até à saída, onde um senhor registou as peças de roupa que levávamos, sorrindo muito. Quando saímos, chovia copiosamente. Corremos para o carro. Josephine levou-nos pelas ruas, avançando silenciosamente e seguindo devagar o caminho dos trams. Passámos vários jardins cheios de lagos e atravessámos as ruas cada vez mais arborizadas enquanto nos afastávamos do centro. Meia-hora depois, chegámos a uma zona de aldeia, com casas mais pequenas e baixas.
- É Watermael-Boitsfort, uma das zonas mais a sul de Bruxelas, nas fronteiras com a Valónia.
Deixou-nos numa bonita casa com dois andares, com um lindo jardim que dava para uma floresta escura. - Volto daqui a umas horas. - Depois de partir e quando a chuva finalmente parou, depois de já termos comido e mudado de roupa, fomos dar um passeio nessa floresta. Era tão diferente das florestas que tínhamos em Portugal, esta “Forêt des Soignes”. Comecei imediatamente a pensar nela como a Floresta dos Sonhos. Com as nossas novas roupas e botas, o frio não era um problema. Avançámos ao longo de uma grande alameda cheia de enormes abetos. Havia outras pessoas que passeavam também, e crianças agachadas que apanhavam cogumelos e pequenos ramos. Avançámos pela alameda até esta começar a ficar mais pequena e fechada, altura em que voltou a chover. Abrigámo-nos debaixo das árvores nesta zona mais fechada em que as copas faziam um guarda-chuva perfeito. Era muito bonito e o cheiro a pinheiro magnífico.
- Ainda bem que viemos. - sussurrou-me Lia ao ouvido. Ouvi galhos a partir-se e olhei para o lado. De repente, a menos de 10 metros de distância surgiram dois veados e uma cria. Ficaram parados a olhar para nós e nós parados a olhar para eles. Não estava nada à espera de vê-los ali tão perto, tão bonitos, vapor a saindo dos seus focinhos molhados. Estavam com as cabeças levantadas e os ouvidos também, com um ar muito desperto, olhando-nos concentrados. Pensei em quantas espécies tinham desaparecido nos últimos anos por causa do calor, das secas e dos incêndios. Eu sabia que os veados não estavam em perigo, mas vê-los ali, quase ao alcance da mão, era incrível. Lia estendeu lentamente a mão na direção da cria, mas eles fugiram, desaparecendo em segundos pelo meio das árvores. Que experiência incrível. Quando chegámos a casa, Josephine estava de volta e levou-nos de regresso ao centro no seu pequeno carro elétrico. Contei-lhe acerca dos veados e ela disse-me que era preciso ter cuidado com os javalis e com os lobos. - E há projetos de introduzir ursos quando a floresta for expandida por toda a Valónia até à Ardenas, voltando ao seu tamanho ancestral. Todas as auto-estradas que não foram utilizadas para expandir caminhos-de-ferro foram levantadas para dar caminho à natureza. Faz parte do projeto da Federação das Cidades Livres para compatibilização do rural-urbano.
Josephine levou-nos até à sede da ELO (European Labour Organisation), no antigo edifício Kohl do Parlamento Europeu. Eu estava à espera de um edifício gigantesco, mas não era. À frente e à volta tinha jardins cujas plantas pareciam bastante secas, apesar da chuva. A nossa anfitriã explicou-nos que o verão tinha sido demasiado quente e seco. A cidade estava a desenterrar o rio Senne há alguns anos, troço a troço, para aumentar a área verde e também para aumentar a disponibilidade de água. O rio tinha desaparecido durante mais de um século debaixo das estradas e do asfalto. Com o processo de renaturalização das cidades iniciado pela Federação das Cidades Livres, Bruxelas, uma das maiores, acelerou o processo de transformação urbana. É hoje uma cidade completamente autossuficiente em produção de frutas e legumes e produz toda a energia que consome. A antiga cintura verde de Bruxelas foi recuperada, mas a produção alimentar ocorre em toda a cidade, mesmo no centro, quer em jardins comestíveis, quer em telhados verdes. Segundo Josephine, mais de um milhão de pessoas em Bruxelas trabalha pelo menos algumas horas por semana em agricultura.
Entrámos no edifício e Josephine guiou-nos até ao seu escritório. Apesar da estrutura do elevador, ninguém o utiliza - Só usamos para transportar coisas pesadas, de resto é escadas e pernas. O seu escritório era bem grande, com janelas com vista para o jardim à frente. Várias pessoas trabalhavam no interior, todas bastante jovens. Cada uma tinha um computador onde trabalhava e cadernos onde tomavam notas e faziam contas ao lado.
- Estão a verificar o algoritmo do Trabalho. - apontou-nos Josephine. Algumas das pessoas sorriram e acenaram na nossa direção.
- É aqui que se faz?
- Aqui é a última verificação do algoritmo, depois de três outros níveis, portanto aqui na verdade é o último nível de controle.
- Mas é o algoritmo do Trabalho em todo o mundo? - perguntou Lia, espantada.
- Não, apenas da Europa e apenas para os territórios que estão no Tratado Mundial do Clima. Por exemplo, os nossos amigos flamengos aqui de cima não entram, têm o seu próprio sistema. O que nos cria problemas, claro…
- Então o algoritmo é do Tratado Mundial do Clima?
- Não, não. Sentem-se que está na hora de vos contar um pouco da minha história.
- Eu já estava a gravar, desculpa.
- Não tem problema. Eu fui uma das fundadoras do Mundo Novo, há mais de 20 anos. Começou como um passo em frente em relação à ideia original de Transição Justa. A maior parte das pessoas na altura não sabia, mas esta ideia tinha vindo do mundo dos sindicatos e não dos movimentos ambientalistas e mais tarde dos climáticos. Foi nos Estados Unidos que surgiu a ideia de que era preciso uma transformação industrial de grande escala, não só para a indústria fóssil, mas para todas as indústrias poluidoras. Além do interesse ambiental desta transformação, era uma questão essencial para quem trabalhava nessas indústrias, que acabavam por ser dos principais afetados em termos imediatos e de longo-prazo na sua saúde.
- Eu sempre tive a ideia de que tinham sido os movimentos climáticos a lançar o Mundo Novo.
- Foi uma coligação entre cientistas, movimentos pela justiça climática e alguns sindicatos. Infelizmente não tanto os sindicatos mais poluidores. Décadas de propaganda capitalista tinham na verdade virado uma boa parte destes trabalhadores contra a ideia de transição, ao criar uma oposição entre ação climática e emprego. Eles simplesmente roubaram-nos os termos, a própria expressão “transição justa”. Em capitalismo, eles tinham sempre a faca e o queijo na mão. E para eles nunca poderia haver uma transição paga por eles. E como eles nunca iriam responsabilizar-se por essa transformação, a única coisa que eles estavam dispostos a fazer era receber dinheiro para fechar meia-dúzia de fábricas. A ideia de justiça deles é que os governos usassem o dinheiro dos impostos para compensá-los pelos lucros que eles esperavam ganhar. E sabem quem mais? Foi exatamente isso que vários governos fizeram durante mais do que duas décadas.
- Então vocês ficavam numa posição complicada, não?
- Sim. Imaginem, era preciso descarbonizar a economia, a ciência era claríssima sobre isso, era preciso cortar atividade industrial em grande escala, mas decidir o que é que era para cortar e o que é que era para manter. Era preciso transformar alguns dos eixos centrais do capitalismo, como produção de energia, transportes, comércio, não para garantir que os ricos se mantinham ricos, mas para garantir que o planeta não colapsasse. Mas eles não queriam saber disso para nada. É difícil de compreender em retrospectiva. Então acusaram-nos, desde o início, de querermos controlar a economia, como se isso fosse uma grande surpresa. Acusavam-nos de fazer exatamente o que eles faziam. - encostou-se para trás, soltando um suspiro. - Sabem como é que eles chamavam à economia deles? Economia de mercado livre. Ahahahahahaha.
- Como assim? - perguntei-lhe eu, enquanto ela se levantou para trazer uma garrafa de água com alguns copos para a mesinha onde estávamos. Entretanto o António tinha acordado e a Lia pediu-me que lhe mudasse a fralda.
- Mas pronto, eles chamavam àquela economia completamente planificada para manter milhares de milhões de pessoas na dependência total de alguns milhares de multimilionários de “mercado livre”. Era livre, no sentido em que esses multimilionários tinham liberdade total de mandar sobre a vida de toda a população mundial, em todos os sentidos. Não só obrigando quase toda a gente a fazer trabalhos inúteis, destruidores dos nossos cérebros e dos nossos corpos, como do próprio planeta onde vivemos. Mas também tinham um poder quase absoluto sobre a maneira como mandavam nas cabeças de toda a gente, como controlavam a informação de forma tão total. E manipulavam-na de maneira tão monumental que os próprios acreditavam nas coisas idiotas que metiam a sua comunicação a propagar. - Entretanto acabei de mudar a fralda de pano e levantei-me para ir deitar fora o “conteúdo”.
- Podem continuar a conversa, que eu vou deitar isto fora na casa-de-banho.
- Tens uma aí no corredor. - apontou-me Josephine, enquanto eu saía. - Mas perdi-me um pouco. Às vezes ainda fico furiosa sobre como deixámos as coisas chegarem a um ponto tão mau, como comemos e acreditámos em tanto lixo durante tanto tempo.
- Estávamos a falar sobre o início do Mundo Novo. - disse Lia.
- Sim. Eu fazia parte do Sindicato de Trabalhadoras em Cuidados, da FGTB. Tinha trabalhado muitos anos em hospitais e lares de idosos, mas depois fui eleita vice-presidente do sindicato. Eu era muito militante de causas sociais, a minha família sempre tinha sido muito ativa politicamente, essa tinha sido uma das razões pelas quais tinham tido que fugir do Congo. E as minhas filhas tinham participado nas primeiras greves climáticas também. - nessa altura eu voltei à sala. - E eu ia às marchas, às manifestações também. Conseguia até várias vezes fazer com que o sindicato e a federação apoiassem publicamente os protestos. E eu achava que estava a cumprir o meu papel. Estava a cumprir o papel que era possível naquela altura.
- Mas?… - prosseguiu a Lia.
- Mas claro que não chegava. Porque aquilo que o governo belga ia fazendo, aquilo que a União Europeia ia fazendo era simplesmente lançar medidas soltas, financiar as empresas e mandar a produção altamente poluente para outros territórios, até para outros continentes. Algum tempo depois eu subi para a direção nacional da federação sindical, mas foi na altura em que as guerras e as doenças fizeram com que o custo de vida disparasse. E a austeridade voltou. E nessa altura toda a gente, e eu também um pouco, deixámos de ligar à questão do clima. Havia coisas mais urgentes. Era preciso que trabalhadoras e trabalhadores tivessem comida na mesa, pensava eu para mim mesma. Os movimentos pela justiça climática pressionavam-nos, mas nós tínhamos de pensar em quem trabalhava.
- E o que fez as coisas mudarem?
- Não consigo identificar nenhum momento específico, mas houve um momento a partir do qual tudo se avolumou quase em simultâneo e nós sentimos pela primeira vez que estávamos completamente sozinhos, que os governos não eram só alguém com quem tínhamos de dialogar, mas alguém que estava contra nós. Isso aconteceu com a onda de extrema-direita e a austeridade. Aqui na Europa começou a política energética fascista da “Energia europeia para Europeus”. Eles levantaram as restrições sobre o investimento em carvão e petróleo, criaram uma programa nuclear europeu, anunciaram subsídios às grandes energéticas e sabem o que aconteceu?
- Não. - respondemos em uníssono.
- Aumentaram os preços dos combustíveis e os da energia aumentaram ainda mais. O capitalismo fóssil tinha a faca e o queijo na mão. Eles eram o governo da extrema-direita europeia. Eles tinham inventado uma série de partidozecos para deixarem de ter de negociar, eles governavam diretamente. A extrema-direita era o braço político da indústria fóssil e a indústria fóssil era o braço económico da extrema-direita. Não havia mais subterfúgios. Claro que em cima da austeridade, veio o programa cultural: esmagar os direitos das mulheres, das comunidades LGBTQ, perseguir migrantes e fechar fronteiras, acrescentando ainda o acordo migratório com a Líbia.
- Tempos escuros, imagino.
- Sim. Foram criadas prisões de trabalho um pouco por toda a Europa, instaladas de grandes redes de vigilância. Foi na altura em que toda a gente começou a usar novas maquilhagens para evitar o reconhecimento facial, especialmente em manifestações. - riu-se.
- E foi nessa altura que surgiu o Mundo Novo? - perguntou Lia.
- Sim, foi nessa altura. Começava a haver fortes tentativas de infiltração do mundo sindical pela extrema-direita e acho que toda a gente, até os trabalhadores da indústria fóssil, perceberam que sem um programa político de transformação radical, tudo ficaria para os fascistas. E finalmente conseguimos uma aproximação real aos académicos e aos movimentos climáticos que andavam a trabalhar na ideia de transição justa com planificação económica há anos. Mas até deixámos cair essa expressão. Precisávamos um programa contra as elites do capitalismo, não algo para negociarmos com eles. Era difícil porque essa era a tradição do nosso mundo sindical. Mas estava tudo a mudar. Em poucos meses de trabalho conseguimos fortes acordos políticos a nível europeu, e essa tendência expandiu-se para os outros continentes em pouco tempo. No verão houve uma greve geral na Europa de Leste em que este programa já estava nas principais reivindicações. Houve uma onda de calor enorme em que os patrões de várias plataformas logísticas na Sérvia, na Bulgária e na Roménia se recusaram a parar a atividade. Mais de 1500 trabalhadores morreram de calor num só dia. A greve que se seguiu foi muito forte e despertou a maior parte do movimento sindical. Começou noutros países a onda das greves pelo horário reduzido de verão e pela instalação dos sistemas de monitorização climática. Apesar da repressão policial, os governos cederam. Mas nós não aceitámos que estes sistemas de monitorização fossem geridos pelas empresas ou por outsourcing - eram os sindicatos que assumiam a responsabilidade de geri-los. Estávamos a encontrar a nossa força e tínhamos novos aliados. Eu achei que uma revolução estava ao virar da esquina, mas ainda era cedo.
- Nessa altura ainda não havia ecomunistas?
- Não. E acho que por isso é que não houve uma revolução nessa altura. Nós estávamos com força e com alguns planos, mas não tínhamos o plano de como passávamos da situação de caos em que estávamos para uma nova organização da sociedade. E a extrema-direita ainda tinha muita força, muitas armas e muita capacidade comunicativa. Precisávamos de mais planos, mais ligações, e nunca parámos de construí-las. Mesmo na altura do Setembro Vermelho, em que a maior parte dos fascistas caíram, apenas uma parte dos nossos planos puderam ser adoptados, o capitalismo ainda era muito forte. Mas não chegava, para travar o colapso social e climático, era preciso mesmo construir um mundo novo. Tínhamos evoluído muito em muito poucos anos. Já não falávamos só de “descarbonizar” os setores da energia e dos transportes, os nossos planos evoluíram para uma transformação do comércio a nível regional e local, para as migrações de massas, para a redução drástica do horário de trabalho, para o abandono das atividades inúteis e prejudiciais, a desmercantilização de todos os setores, a promoção das atividades de cuidado, de cuidarmos e repararmos tudo o que estava destruído, não só no planeta mas também na sociedade e em nós mesmos. Tinha há muito tempo deixado de ser um programa técnico, era uma nova ideia de sociedade, em choque direto com o capitalismo da morte.
- Mas o algoritmo do Trabalho é técnico.
- Não. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta política. Tem componentes técnicas. Mas sempre foi assim. A técnica, a tecnologia, servem para o interesse de quem a programa e utiliza. Nós desenhámos um algoritmo que organiza o trabalho à escala europeia, articulado no mesmo plano com os outros que organizam às escalas continentais, e que depois é ajustado nos territórios. Mas o trabalho sempre esteve organizado e planificado. E não estou a falar das quotas de produção da União Soviética. O que é que acham que era o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, as bolsas de valores, a banca de investimento? Eram tudo ferramentas de planificação económica para o interesse das elites capitalistas. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta da Grande Mudança, da revolução ecosocial. Temos a tecnologia suficiente para distribuir o trabalho necessário à satisfação das necessidades reais das várias populações que habitam a Europa. Essas necessidades variam semanalmente e por isso o algoritmo vai sendo ajustado, mas conseguimos prever o número de horas diárias que cada atividade requer e o número de pessoas disponíveis para executá-las em cada território. Não é uma coisa muito complicada, toda a gente tem o dever de conhecê-la.
- Sim, nós estudámos bastante bem o Tratado Mundial do Trabalho. É difícil perceber como é que antes as pessoas aceitavam que era possível e até normal haver desemprego e pobreza em grande escala.
- Fazia parte da planificação capitalista. Era uma arma de dominação, como antes tinham sido os chicotes ou os trabalhos forçados. O desemprego era simplesmente estúpido e o algoritmo resolveu-o. Temos tantas coisas para fazer que não faria qualquer sentido deixar alguém que quisesse trabalhar sem trabalho. E o algoritmo adapta-se: há alturas do ano em que as pessoas querem trabalhar mais horas e reajusta-se. Se mais pessoas querem trabalhar, temos mais projetos úteis que ainda não tinham pessoal ou partilha-se o trabalho necessário, diminuindo o tempo de trabalho para toda a gente. Se as pessoas não estão satisfeitas com o que fazem, podem pedir para mudar temporária ou definitivamente a sua atividade. Até queremos que rodem para conhecerem várias realidades. Empregos mais exigentes e de que as pessoas gostam menos significam em geral trabalhar menos horas e ter mais tempo livre. Há grande rotação dos trabalhos e também formações frequentes, para que a maior parte das pessoas mude de tarefas a cada três anos. Além de trabalho manual, precisamos de pesquisa o tempo todo. Como vocês sabem, podem mudar de emprego e procurar criar um percurso profissional autónomo, se for considerado útil. Por exemplo, podes propor que o livro que estás a fazer entre no algoritmo. Ou podes fazê-lo no teu tempo livre. - Sorriu e olhou pela janela. Nós também.
- Olhem. Está a nevar.