- Lia?
- Sim. És tu, Liz?
- Sim, sou eu.
- Tenho uma má notícia.
- O que aconteceu ao Alex?
- O Alex foi raptado, Lia. - não sabia o que pensar. Que já estava à espera de um desastre destes, claro. Tudo apontava para isto. Que havia de perguntar? Oh Alex, foda-se. Dez, onze, doze segundos.
- Quem foi?
- Ainda não temos a certeza. Ninguém nos contactou.
- E a segurança, Liz? Tu não tinhas posto mais segurança com ele? Eles não achavam que o risco de lhe acontecer alguma coisa era grande?
- Mataram toda a equipa de segurança.
- Estás satisfeita? Estás satisfeita por tê-lo manipulado para ser um peão nas tuas lutas de poder?
- Lia, estás a ser muito injusta.
- Não estou a ser injusta. O Alex já devia estar de volta a casa há muito tempo. Tu mantiveste-o nessa roda viva para poderes derrotar os pacifistas.
- Eu fui completamente clara com o Alex. Ele sabia o que era a sua responsabilidade, mas deixei a porta aberta para ir para casa. Ele decidiu que continuar era o seu caminho. Todas as decisões que nós tomamos a este nível têm grandes consequências. O Alex sabia disso. Mas eu tenho confiança de que o vamos conseguir recuperar. Não faz sentido matá-lo nesta altura.
- O que vais fazer, então? O que é que eu posso fazer? - decidi calar a minha raiva e esconder as minhas críticas, não tinha nada a ganhar agora.
- Temos equipas a procurar por ele, a questionar personagens duvidosos, criminosos, ex-muralhistas, fundamentalistas…
- O que é que eu posso fazer?
- Eu não sei se não valia a pena…
- O quê?
- Falares com o Ettore. Vocês não têm contacto?
- Não falo com o Ettore há meses. Especialmente depois de saber o papel de Gianni no massacre…
- Podias contactá-lo?
- Sim, posso. Mas porque é que o raptaram?
- Imagino que o queiram como moeda de troca. Não sei. Enquanto não nos contactarem não sabemos.
- Quem é que achas que o raptou?
- Há poucos grupos que ainda o fazem. Máfias, fundamentalistas religiosos, cisões de Ma, apocalípticos, estado islâmico… Não acredito que sejam os neoluds, o Alex não tem nada que ver com technos. Pequenos grupos como a nova Descarbonária raptam, mas não querem nada contra a Justiça Histórica, eles apoiam a nossa política…
- Então foram os pacifistas.
- É o mais provável.
- Que papel tem o Ettore nos pacifistas?
- É um contacto seguro, vocês conhecem-se. Contactá-lo pode obrigar o Gianni a movimentar-se. Se não foram eles, o Gianni vai falar. Mas vamos atrás deles, foi aprovado no secretariado do Tratado. E o desaparecimento do Alex depois da morte do Sukumar faz com que eles estejam cada vez mais incriminados. Não têm mais para onde fugir.
- Ouço isso há semanas, Liz. Mas em vez de haver justiça a ser feita, o que aconteceu foi raptarem o Alex.
- Eles serão punidos. Vamos recuperar o Alex.
- Certo. - disse exasperada enquanto pensava como tudo isto era conveniente para ela. - Liz, eu estou em segurança? Preciso saber.
- Esse era outro assunto de que te queria falar. Lia, quero que te mudes algum tempo para a sede do Tratado em Lisboa.
- Acho que é melhor.
- Vou falar com a minha equipa, podes ir com o António para a sede, num sítio chamado… Graça?
- Sim, mas eu também quero que a minha companheira vá.
- Sim, claro. Não há qualquer problema. Enviarei um destacamento de segurança para vos ir buscar em pouco tempo. Entretanto prepara algumas coisas, roupas, medicamentos. - Estaria a pôr-me na boca do lobo? - Tenho de ir. Muita força, Lia.
- Adeus, Liz.
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- Lia, como estás?
- Quem fala?
- É a Josephine.
- Ah, Josephine. Que bom ouvir-te. Como estás?
- Estou furiosa com o que aconteceu ao Alex. Como estás tu, minha querida?
- Fui mudada de casa. Estou com o miúdo e com uma companheira na sede do tratado.
- O que sabes sobre o rapto?
- Pouco. Falei com a Liz, depois falei com o Ettore. Ligaram-me algumas pessoas de Moçambique. Depois fui contactada por várias pessoas que não conhecia, preocupadas com o Alex.
- Quem?
- Dewi, um Luiz, Mirabelle.
- O que falaste com o Ettore? Como foi a conversa?
- Foi muito estranha. Ele pediu desculpa porque me disse que não sabia do papel do Gianni no massacre de ’36, disse-me que eles já não estavam juntos, que ia tentar descobrir se o Gianni tinha alguma coisa que ver com o que aconteceu ao Alex.
- E tens mais alguma informação?
- Não sei mais nada, Josephine. De certeza que tu sabes mais do que eu.
- Não, querida. Desculpa. Por aqui está tudo uma grande confusão há algum tempo, em particular desde que começaram as conversas sobre o massacre de ’36 e da responsabilidade dos “pacifistas”. Sabes que muita gente do Mundo Novo e da Organização Europeia do Trabalho sempre se identificou mais como Pacifista do que como Justiça Histórica. Então há muita desconfiança. E só soube do rapto do Alex ontem à noite.
- Josephine, desculpa ser assim direta: acho quase impossível não saberes da responsabilidade deles no massacre, na morte da Marta.
- Desculpa?
- Tu estás no centro disto há muitos anos. Estiveste nas Asas de Borboleta. Mais do que uma vez. Não me vais dizer que isto é tudo uma surpresa.
- Por quem me tomas, Lia? Vou dizer-te isto de forma calma porque estás num momento difícil: eu não tenho nada a ver com o que está a acontecer. Claro que eu suspeito há anos do que aconteceu no massacre. Mas a minha grande surpresa foi o Alex aparecer aqui contigo, pela mão do Gianni. Eu fiz tudo para proteger-vos e afastar-vos do Gianrocco. Mas foi a vossa vinda que desencadeou tudo o que está a acontecer. As asas foram construídas para terem autonomia umas das outras e fazerem o movimento como um todo avançar. Passaram quinze anos a fazer articulações e não a questionarem o que as outras asas faziam ou fariam. Será que todas as decisões foram corretas? Não. Houve quem abusasse da sua posição nas asas? Eu espero que tenhamos um julgamento de quem o fez. Eu não. Há muitas pessoas que se querem promover à conta de acesso a pequenas peças de informação, mas eu sempre agi como uma dirigente cujo papel é ouvir muita coisa e perceber o que é relevante e real. Eu não tinha nenhuma indicação definitiva acerca do papel pacifistas no massacre até há meses atrás. Até vocês aparecerem.
- Então quando estivemos juntas, já sabias disto?
- O Sukumar tinha-me contactado, mas de forma muito ambígua. Ele disse-me o que achava, mas não tinha como provar. Eu pensei que podia ser só mais luta política. Sabes que ando cá há muitos anos e a luta entre pacifistas e justiça histórica é só mais um capítulo das lutas internas do movimento. Já se degladiaram os luddys contra os tecnologistas, os decrescentistas contra os modernistas, o culto de Ma contra os evangélicos, e tantos outros. Em cada região surgem questões específicas, sobre classe, sobre nação, fronteiras, sobre materialismo, sobre alianças, energia, água, comida, a coisa nunca pára. As asas têm de saber perceber o que é o essencial e fazer o movimento andar. Se eu alguma vez tivesse achado que os pacifistas tinham mandado matar os dirigentes da justiça histórica, nunca teria ficado calada. Nunca! - fiquei calada alguns segundos.
- Desculpa, não estava a sugerir que estavas a protegê-los. Mas podias ter-nos dito alguma coisa. Podias ter tentado afastar o Alex do Gianni…
- Tentei. Fiz a Liz envolver-se, tentei mandar-vos para perto de aliados. Mas o mundo é um lugar muito grande e ainda descobri sobre ti e o Ettore. - Eu arrependia-me do que tinha acontecido, mas agora também achava que podia ter caído numa armadilha política. - Contactei com o Sukumar, ajudei a descobrir o que aconteceu. E nessa altura era preciso fazer jogo duplo até estarmos preparados para avançar. O Sukumar exigiu-me que fosse ele a falar com o Alex, e eu também estava tão distante… - começou a chorar.
- Desculpa, Josephine.
- Não há nada a desculpar. Eu devia ter agido mais cedo, devia ter feito tudo para trazer o Alex rapidamente para casa. Perdoa-me, Lia.
- Preciso que o Alex esteja bem, são e salvo.
- Farei o possível. Usarei todos os meios à minha disposição para encontrá-lo e trazê-lo para casa em segurança.
- Obrigada.
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Há duas semanas que o Alex desapareceu. Aconteceu a 14 de março, na República do Nilo. Mesmo pessoas em posições tão elevadas como Elizandra Márquez ou Josephine Alphonse não me conseguem dizer quem o tem ou porque foi raptado, embora tenhamos todas suspeitas similares. Começo a achar que nunca mais vou saber dele, pai do meu filho e meu antigo companheiro. Não é o facto de nos termos separado que me faz ter menos afecto, menos carinho por Alex. Dou voltas e voltas à cabeça a tentar perceber porque é que o raptaram agora e não há meses atrás, quando ele já estava no trilho da informação sobre a sua mãe mas ainda ninguém sabia quem ele era. Se o objetivo era impedir o movimento de pedir a cabeça dos Pacifistas, o efeito foi contrário. O movimento ecomunista está em polvorosa, até aqui em Lisboa. No meio do Rossio foi inaugurada uma estátua da Maria Garrida, descoberta por causa do massacre e de quem se fala o tempo todo agora. Nas paredes da cidade já vi grafitada a pergunta: “Onde está o Alex Garrido?”.
Onde está o Alex? Chegam-nos notícias de que começou o julgamento dos pacifistas responsáveis pelo Massacre de 36, que incluem o Gianrocco Fratin, o Hector Crespo, Jieling Zheng, entre outros. O julgamento passará ao vivo na intranet por todo o mundo. Ontem o António disse a sua primeira palavra. Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo, quando ele disse a palavra Mei.
A Liz ligou-me para me contar em primeira mão sobre o desaparecimento de Gianni, que não se apresentou no tribunal na Colômbia nem esteve online. Outros membros dos Pacifistas afirmaram não saber onde ele está. Por outro lado, os contactos de Liz estão convencidos de que Alex foi raptado pelo Daesh, um dos pequenos grupos que sobrevive do antigo Estado Islâmico, que faz parte da federação islamista que tomou conta do Canal do Suez há cinco anos. Porque teriam eles raptado Alex?
Mais de cinquenta “Pacifistas” foram considerados culpados pelo massacre de dirigentes da Justiça Histórica em 2036. Os Pacifistas, liderados pelo Hector Crespo, Giancarlo Fratin, Chen Gongsun e Heidi Gustafsson, foram condenados por entregarem o nome de mais de 300 dirigentes e quadros da facção à qual se opunham, para conseguirem ter uma maioria política nas principais organizações revolucionárias do movimento ecomunista em países por todo o mundo. Os traidores entregaram ainda 200 outros nomes a diferentes organizações criminosas e muralhistas, para disfarçar o objetivo político do massacre. Em 2036, a comissão nomeada para investigar o massacre na altura, liderada por Jieling Zheng, tinha concluído que nada de estranho se tinha passado, escondendo o crime dos seus camaradas de facção. Zheng também foi condenada. As organizações Universidade da Paz, Onda pela Paz e Sindicatos pela Paz, entre outras, foram consideradas implicadas no crime e serão desmanteladas. A Associação Política Ecomunistas pela Paz, cuja direção na altura tomou a decisão política do massacre, será dissolvida. Os restantes membros das Asas de Borboleta do mandato 2034 - 2036, Bonolo Deviliers, Lewis Anwar, Fazil Tarkan e Claude Wemba, foram considerados inocentes, não havendo qualquer prova ou testemunho que os implicasse no crime. Continuam as investigações a outros membros da facção política Pacifista. Os pacifistas considerados culpados vão ser exilados para os assentamentos no Norte de Kalaallit Nunaat e do Canadá. Quando o resultado do julgamento foi anunciado, uma festa explodiu nas ruas. Da minha janela na Graça observava as multidões que passavam, gritando “Justiça! Justiça!”. A Liz pediu-me para gravar um vídeo com o António a pedir aos raptores que libertassem o Alex.
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Não sei quantos dias estive preso até alguém falar comigo. Perdi completamente a noção do tempo. Do que me lembro mais é das dores. O chão debaixo das minhas costas era cimento. Durante muito tempo estive atado de tal maneira que quase não me conseguia mexer. De vez em quando, imagino que uma vez por dia, alguém entrava na sala, levantava-me o capuz da cabeça até ao nariz, punha-me um comprimido na boca e dava-me água. Gritei até a minha voz falhar. Acabei a fazer as necessidades nas calças, uma e outra vez. Às vezes, a pessoa que entrava, pontapeava-me as costas, mas mantinha-se em silêncio. A primeira vez que falou, fê-lo enquanto me chutava, insultando-me numa língua que não entendia. Pedi para falar inglês, mas a resposta que tive foi outro pontapé.
As noites, que eu só percebia pelo desaparecimento completo da luz, eram muito frias. Sentia os meus pés e mãos gelar, enquanto entrava e saía do sono, sem saber quando sonhava ou acordava. Comecei a espirrar, depois a tossir, vomitei de tanto tossir. Nessa altura, retiraram-me a venda e pela segunda vez vi alguém. Era um homem jovem, com a cara tapada por uma keffiyeh verde e branca, vestido com uma macacão verde camuflado. Limpou-me a cara e deu-me de beber uma mistura de água com algo oleoso e ligeiramente doce. De seguida, injetou-me algo no braço. Tentei resistir, mas continuava demasiado amarrado para me conseguir mexer. De estar imóvel tanto tempo, o meu ombro e a minha anca estavam feridos do lado para o qual eu estava quase sempre deitado no chão. O homem pela primeira vez soltou a corda que prendia as algemas das minhas mãos aos meus pés, permitindo-me esticar-me os braços e pernas. Lembro-me do alívio e das dores musculares que se seguiram. Dessa vez, o homem saiu sem me tapar a cara. Enquanto saía, consegui ver que a porta dava para a rua e que estava muito sol lá fora. Assim que saiu, o homem começou a discutir com alguém que estava fora da sala. Quando a porta se fechou novamente, devolvendo-me à escuridão, percebi pelo contorno da porta ténues raios de luz. Ouvi outras pessoas que lhe respondiam enquanto se afastavam, até o silêncio voltar. Pouco tempo depois, o homem voltou, acompanhado por outro, também com a cara tapada, vestindo roupas largas. Levantaram-me enquanto me queixava de dores. O segundo trazia um Babel, talvez o meu - pensei. Cortou-me as cordas que uniam os meus pés.
- Vais tomar banho. Mexe-te.
Tentei andar, mas as minhas pernas não responderam. Caí ao chão.
- Levanta-te! - o ajudante pontapeou-me nas costelas enquanto o outro o agarrava, zangado.
- Não consigo. - apenas um sussurro saiu da minha boca.
Os homens discutiram entre si, até finalmente os dois me levantarem e arrastarem para fora da sala onde eu estava há dias, semanas ou meses. Estava muito sol e os meus olhos choraram de impressão pela luminosidade. Demorei alguns segundos até me habituar à luz. Estávamos numa zona cercada, talvez um forte. O chão era areia avermelhada, da qual se erguiam vários edifícios castanhos e amarelos, cercados por um muro da mesma cor da areia do chão. Levaram-me para uns balneários com paredes de ladrilho branco sujo. Largaram-me e caí novamente ao chão. Discutiram um com o outro apontando para mim e gesticulando. Finalmente, trocaram o Babel, passando o meu primeiro raptor a falar comigo.
- Vamos tirar-te as algemas. Se tentares alguma coisa, não voltas a usar as mãos. - Acenei com a cabeça. Ele abriu as minhas algemas e vi pela primeira vez as feridas infectadas que tinha nos pulsos.
- Depois do banho, limpamos as feridas. - disse-me o homem.
Lentamente fui conseguindo levantar-me.
- Despe-te. Estás imundo.
- Não escolhi estar assim.
- Cala-te!
Tirei lentamente a roupa. Tinha várias feridas cujo sangue seco se colara ao fato de macaco, no tronco e nas pernas. A peça de roupa estava imunda. Muito lentamente caminhei até às torneiras de um dos chuveiros. Com as mãos entorpecidas girei as torneiras, que não funcionavam. Comecei a ouvir barulho atrás de mim. O homem de vestes largas trazia uma mangueira e começou a atirar-me água para cima. A água tinha pouca pressão e por isso apenas me ardeu quando atingia as feridas. Começou por ser tépida e finalmente ficou fria. O outro atirou-me uma barra de sabão que com dificuldade apanhei no chão. Apesar de me sentir humilhado, o banho devolveu-me um sentimento de limpeza e humanidade que tinha sentido desaparecer durante a estadia na sala fria. No final do banho, deram-me um macacão laranja forte.
Fui mudado para outro edifício, para um quarto onde havia uma cadeira e uma cama com lençóis, almofada e cobertor. No chão estava um candeeiro que podia acender ou apagar. Depois do banho, não voltei a ser amarrado ou vendado. Alguma coisa tinha mudado e o meu tratamento também. Passou-me pela cabeça que me iriam executar. Se tivesse mais energia, teria entrado em pânico, mas a minha exaustão acabou por acalmar-me. Ao fim do dia trouxeram-me comida sólida. O meu raptor trazia um tabuleiro com água, fruta e um pão redondo sob o qual estavam pedaços de um queijo muito amargo, que devorei.
- Cuidado, não comas demasiado rápido ou vais vomitar. O teu estômago está com falta de treino.
- Há quanto tempo estou aqui?
Fechou a porta, deixando a luz acesa. Uma hora mais tarde regressou e começou a tratar de alguns dos meus ferimentos nos braços e pés.
- Dos teus ferimentos entre as pernas tratas tu. - passou-me um frasco de plástico com um unguento malcheiroso.
- Como te chamas?
- Não estou aqui para ser teu amigo. Não vamos falar.
- Vocês vão matar-me? Podes dizer-me há quanto tempo estou aqui?
Não me respondeu, abanando a cabeça e recolhendo o material que tinha usado para desinfectar as minhas feridas, colocando-o no tabuleiro vazio da comida. Tirou o Babel do ouvido e pô-lo também sobre o tabuleiro. Abriu a porta e virando-se para trás levantou dois dedos, dizendo “Fi aman ala”. Dois quê? Semanas? Meses? Comecei a tentar perceber, que referências tinha? Finalmente foi através do tamanho das minhas unhas que cheguei à conclusão que tinham de ser duas semanas. Não me lembrava da última vez que tinha cortado as unhas, mas não estavam tão grandes que pudessem ter estado meses sem cortar. O meu corpo ainda estava muito dorido, mas massajei os meus músculos das pernas e braços para tentar aliviar. Seria a minha última noite? Apesar da ansiedade, de barriga cheia e alívio das dores, adormeci imediatamente.
Na manhã seguinte fui novamente vendado e retirado do quarto. Com mais energia comecei a questionar-me se seria o meu fim. Tentei perceber para onde era levado pelo caminho, pela sensação nos pés ou pela pouca luz que entrava pela venda. Comecei a ouvir pessoas e a ficar aterrorizado. Eram muitas pessoas. O que me iriam fazer? Ouvi uma porta abrir e fui atirado para o chão.
Apressadamente tirei a minha venda. Para minha surpresa e alívio, alguém me ajudou a levantar. Estava dentro de uma cela, com pelo menos mais uns vinte homens, todos com o mesmo macacão laranja que eu. A maioria dos homens que ali estava só falava árabe, mas alguns falavam francês e um até inglês. Explicaram-me que estávamos num campo de prisioneiros do Novo Daesh, um grupo islamista fundamentalista composto por guerrilheiros de várias nações e antigas nações. Ninguém sabia exatamente onde estávamos, tinham sido apanhados em locais diferentes: Egipto, Sudão, Emirados Sauditas, Ha’il. Expliquei-lhes que tinha sido apanhado na República do Nilo, mas eles já sabiam. Sabiam que havia um prisioneiro especial, e que esse prisioneiro era eu. Explicaram-me que os guardas falavam de um ecomunista kafir importante que ia render a libertação de vários combatentes de Allah. Em poucas horas explicaram-me que eram acusados de ser infiéis por pertencerem a Ma, o novo culto da água no Mediterrâneo, mas rejeitaram que Ma fosse incompatível com o islamismo ou com os princípios do comunismo ecológico. Os fundamentalistas que nos tinham presos estavam a tentar recompor a organização do Estado Islâmico. Eram talibãs paquistaneses, o movimento da 4ª Intifada, os jihadistas das novas repúblicas que sucederam à Arábia Saudita e sobreviventes do califado da África Oriental.
Os prisioneiros com quem partilhei a cela avisaram-me para ter cuidado com alguns guardas, nomeadamente o de roupas largas, a que chamavam “kalb”, “o cão”. Perguntei-lhes pelo meu raptor e chamaram-lhe “o filisteu”, o mais educado de todos ali. Explicaram-me que pertencia às Brigadas Haniyeh, uma cisão do antigo Hamas. O filisteu e o seu grupo rejeitavam a formação dos dois estados após terceira Intifada, apelando a uma quarta Intifada para instalar um estado palestino islâmico em toda a extensão da antiga Palestina. Desde os dias do derrube da monarquia da Jordânia e da revolução de Jerusalém, que levou à formação da cidade livre, estas brigadas tentavam vingar a ocupação judaica dos territórios da Palestina. Mesmo após a revolução que pôs fim ao apartheid e exilou a extrema-direita e dois milhões de colonos, estas brigadas rejeitaram o cessar-fogo, acabando por atacar o próprio Hamas e as forças políticas seculares que lhe sucederam no governo do estado da Palestina. Tal como os outros grupos do Estado Islâmico, eram anti-ecomunistas, chamando às catástrofes climáticas castigos de Deus pela incapacidade de espalhar a Sharia pelo mundo. Quando a desagregação da Arábia Saudita chegou sob o peso das ondas de calor e cheias, prepararam-se para o fim dos tempos. Para eles, o colapso da Rússia assinalava a queda da muralha que impedia a chegada de Ya’juj e Ma’Juj, figuras míticas do apocalipse. Faltava apenas a chegada de Dajjal, o falso profeta, que identificavam nas mulheres que lideravam o movimento ecomunista. Esta informação fez-me temer pelo meu futuro, mas a perspetiva de me considerarem alguém que podia ser trocado por prisioneiros dava-me esperança de voltar a ver António e Lia.
Durante uma semana, partilhei a cela com os meus novos companheiros, dormindo significativamente pior do que na noite solitária em que tive uma cama. Partilhámos histórias e contaram-me sobre as suas vidas. A maioria eram egípcios e libaneses, mas também havia turcos, curdos e até iranianos. Nem todos falavam, suspeitando de mim ou de outros. Contaram-me da explosão nuclear do Suez, reivindicada pelo Novo Estado Islâmico, embora duvidassem que tivessem sido de facto eles. Explicaram-me como Irão e Turquia tinham lançado grandes projetos de geoengenharia que tinham baixado a temperatura mas arruinado a agricultura nos países. Contaram-me como isto levou às revoluções do Irão, da Turquia e à criação da República Ecosocialista do Curdistão a partir da cidade livre de Erbil. Eu, por outro lado, contei-lhes acerca da minha viagem e também acerca da minha mãe. Apesar de parecerem simpatizar com as ideias do ecomunismo, nenhum confirmou pertencer ao movimento (reconheço que aquele não fosse o melhor sítio para dar essa informação).
Uma manhã fui retirado da cela e levado para uma salinha onde estava uma mesa e “o filisteu”. Mantinha a sua keffiyeh verde, vendo-se apenas os seus olhos escuros por uma fresta. Mostrou-me uma foto e perguntou-me quem era. Fiquei muito surpreendido.
- Gianrocco Fratin.
- De certeza?
- Sim.
- O italiano, famoso dirigente do movimento ecomunista?
- Sim.
- Tu conhece-lo?
- Conheço, porquê?
- De onde o conheces? - Não vi motivo para esconder.
- Conheci-o em Madrid e viajámos até Bruxelas.
- Trabalhas para ele? São amigos? Amantes?
- Não. Ele mandou matar a minha mãe. É um traidor.
O filisteu levantou-se e saiu da sala. Pouco tempo depois, outro guarda veio buscar-me.
- Foi ele que me mandou raptar? É ele que vos vai pagar? - gritei enquanto me levavam de volta.
A meio da noite, fui acordado com um pontapé. Era o kalb, o “cão”.
- Levanta-te. - gritou através do meu Babel. Vendou-me e pôs-me um saco preto sobre a cabeça, prendendo-me com algemas de plástico por trás das costas, reabrindo algumas das minhas feridas que estavam quase curadas. Fui levado para um veículo, onde me sentaram e me puseram um cinto de segurança. Perguntava-me para onde me estariam a levar. Andámos durante várias horas. Na rádio, ouvi um homem a recitar o Corão. Na escuridão total, adormeci. Mais tarde acordei ao som de uma música pop inglesa, que já tinha ouvido, mas cuja letra não conhecia. Quando finalmente parámos, fiquei sentado pelo menos umas duas horas. Já devia ser dia, porque sentia a temperatura do carro aquecer e via ligeiríssimos sinais de luz de dentro da venda e do saco que me tinham posto na cabeça. O saco fazia a minha cara suar. Perguntei onde estávamos, mas percebi que não havia ninguém dentro do veículo comigo, só o rádio que continuava a tocar. Comecei a mexer-me até tocar com a cabeça numa janela. Pouco depois, ouvi o barulho de outro carro a chegar e a travar, abrindo as portas. Nessa altura, alguém veio buscar-me e puxou-me para fora. Tiraram-me o saco da cabeça. O “cão” deu-me um murro nas costelas e ordenou-me “Fala!”.
- Que queres que diga?
À minha frente ouvi uma voz que reconheci apesar de ter dito uma só palavra através de um Babel.
- Certo.
- Quem está a falar? - recebi outro murro nas costas.
- Stop! - repetiu a mesma voz.
- Gianni! Vais-me matar como mataste a minha mãe? - Uma fúria descontrolada tomou conta de mim. Avancei na direção da voz, tentei pontapear o traidor, mas fui puxado pelo ombro até aterrar no chão.
- Stop it! - disse Gianni.
Fui levantando por um par de mãos, que me arrastou para trás vários metros. Tiraram-me a venda. Estávamos atrás de uma carrinha Toyota Hilux, cor azeitona. Olhei à volta, enquanto os meus raptores começaram a tirar-me o macacão laranja. Via ao longe Gianni e outros homens. Eu ia morrer ali, no meio de um deserto qualquer, decapitado por fundamentalistas e traído pelo mesmo homem que traíra a minha mãe. - Que destino miserável! - pensei. Por outro lado, não sentia medo, apenas raiva. Pelo menos toda a gente sabia que ele era um traidor e eu tinha tido um papel nisso. Depois de me tirarem toda a roupa, abriram um saco onde estava o meu macacão azul.
- Vou libertar-te para te poderes vestir, kafir. - disse-me o kalb. - Não te ponhas com brincadeiras.
Cortou-me as algemas de plástico e o outro guarda, que eu não conhecia, deu-me roupa interior, o meu macacão azul e as minhas botas. Um vento forte com areia batia no meu corpo nu enquanto me vestia, apertando os olhos para evitar que entrasse. Quando acabei de me vestir, passaram-me a minha mochila para as mãos. Kalb deu-me o meu Babel, encostando ao mesmo tempo uma pistola à minha cabeça. Aqui estava, ia mesmo acontecer.
Em vez de disparar, ele apontou para o Babel, fazendo-me sinal para o pôr no ouvido.
- Avança. - apontou para o sítio onde estava Gianni, com dois homens armados ao seu lado. Os homens de Gianni apontavam na minha direção e o outro apontava uma metralhadora na direção deles. Comecei a caminhar na direção de Gianni e ele começou a caminhar na minha direção.
- Não quero gestos em falso, infiel. Caminha lentamente. - kalb apertou-me o braço.
Gianni avançava com os homens ao seu lado. Olhei-o nos olhos, furioso. Ele estava impassivo, como se nem estivesse ali. Quando estávamos a dois metros um do outro, ele mudou ligeiramente de direção, começando a caminhar na direção do segundo guarda, estendendo as duas mãos à frente. Nessa altura, “o cão” largou o meu braço, empurrando-me na direção dos homens de Gianni, que me agarraram e puxaram para trás. Olhei para trás, enquanto o kalb algemava o Gianni e o puxava para a carrinha Hilux de onde eu tinha sido trazido. Os homens levaram-me para o outro jipe e enfiaram-me no banco de trás com a minha mochila, arrancando a grande velocidade na direção contrária. Olhei pelo vidro de trás para ver o Gianni ser enfiado na carrinha.
- O que é aconteceu? - perguntei-lhes, confuso.
- A troca está feita. - respondeu-me.
- Que troca?
- A troca combinada pelo camarada Fratin. - o homem que ia no lugar do passageiro voltou-se para trás e estendeu-me a mão. - Sou Ahmad Fowad. - Apertei-lhe a mão.
- Alex.
- Eu sei. Toda a gente sabe, camarada.
- O que acabou de acontecer?
- Tu é que vais ter de nos explicar mais tarde.
Conduzimos durante várias horas. Estávamos no Egipto e os dois homens, Ahmad e Reif, explicaram-me que tinham sido contactados por Gianrocco para garantir o meu regresso em segurança a casa, e que o fariam. Perguntei-lhes inúmeras vezes se eram ecomunistas, mas nunca me confirmaram, explicando apenas que eram amigos do movimento, um egípcio e o outro sírio. Evitámos o Cairo e atravessámos o Nilo pelo túnel Tahia Masr. Quando entrámos na península Sinai outros dois jipes passaram a acompanhar-nos, fazendo escolta. Ao contrário de outros sítios, aqui ainda havia bombas de gasolina e apesar de vermos poucos automóveis, os nossos não eram os únicos veículos nas estradas preenchidas por pessoas, pequenas motas e bicicletas. Atravessámos sem parar Palestina e Israel, parando no Líbano para descansar uma horas, num complexo não muito diferente daquele em que eu tinha estado preso. Apesar dos meus insistentes pedidos para que me explicassem o que tinha acontecido, os homens não sabiam ou não me queriam dizer. Pedi-lhes para contactarem a minha família e explicaram-me que por motivos de segurança não o fariam e que eu também não podia fazê-lo. Depois de me deixar dormir num sofá com ar sujo, fui acordado de madrugada. Íamos arrancar de novo. Demorámos mais de 20 horas até chegar ao nosso destino final: a cidade de Cannakale, no Estreito de Dardanelos. Eu e Ahmad embarcámos num barco que nos ia levar rumo a casa. Uma vez a bordo, Ahmad entregou-me um envelope de Gianni. Abri-o e comecei a ler a longa carta que ele me deixara.
Dear Alex,
If you are reading this letter it means you are in relative safety. Ahmad and his team are very reliable, one of the most effective organisations I have ever worked with. I have put mine and many lives in their hands and they have never failed so far. Please do as they tell you and you will be safely delivered at home to continue your life.
I was devastated when I found out that you were abducted. It was never my intention to put you or your family in harm's way. Please believe me when I tell you this.
When you called me all those months ago I was quite shocked and surprised, overwhelmed by feelings and a sense of guilt that I had long forgotten I was capable of. That feeling only got worse when we actually met and when I got to know you and your family. I have nothing else to hide, so I will be completely honest with you: I deliberately tried to mislead you away from any suspicion or confirmation of my involvement in your mother’s death, putting you up to the task of looking to the movement in general instead of into your mother’s role and demise. I will tell you all of the story, so you know exactly what happened.
I was never a very close friend of your mother, although I very early on understood her many talents and resolve. She was an invaluable leader in the movement and I doubt the Great Revolutions would have occurred the way they did without her actions. We coordinated together for years and she never failed. We began diverging politically after she was kidnapped by christian fundamentalists. Resourceful as she was, she was able to run away by herself, well before we had the capacity to mount any meaningful rescue mission. After she reappeared, she recovered in hiding for over a year. During that period she underwent what I felt was a political transformation. That is not to say that it was just her kidnapping that pushed her into a more violent doctrine, but that was the period in which her new political position came to public in the movement, next to names like Grimelda Asunción, Amisha Kusuma and Elizandra. Your mother was already very popular due to her action in Brazil, but in the following years she would become an insurmountable figure of action in Southern America. Her action permanently crippled organised crime and its reactionary politics and capability.
While Maria was in America, the world was changing with huge speed. The United States, the biggest ideological and cultural bulwark of capitalism, the main obstacle to stopping the climate collapse, had completely changed, losing its biggest states and dropping the fossil economy in disarray. The tecnolords were defeated in the struggle with AI and reactionary states. Russia had gone from a reactionary giant with imperial ambitions to an orthodox christian state and finally was stripped strictly to its Russian component, a semi-agrarian state under the collapse of oil and gas trade, as happened to the Gulf States. There were flourishing cities in Russia, but they refused to embrace ecommunism and were struggling. Europe was ecommunist in all but its northernmost countries. The Chinese youth revolution had been a brilliantly executed almost bloodless coup, shifting the technological and social winds into the ecosocial ideal. The African continent, where the revolutionary momentum had begun, was leading a political and social complexification process and a technological transition that we hoped could finally end the historical destruction reaped on its peoples and territories. We were moving dozens of millions of refugees every year, placing them within territories and communities that could sustain them. The World Climate Treaty was working better than we ever thought would be possible. The World Labour Treaty, MIGRATUR, the schools, the speed and changes we were achieving were marvelous beyond our wildest dreams.
We needed peace to keep things going and to consolidate the huge victories we had won. We had organised and successfully executed dozens of revolutions, we had for the first time and in a very short period been able to exercise a major change in the way humanity was socially connecting among itself and also producing and consuming. We had set up a global trade flow rooted on necessity and surplus. We had achieved almost all of this in a non-authoritarian way. No revolutionary movement in history could compare to us.
The rising Historical Justice current was a massive challenge to this. We tried for years to keep them at bay, with their ambitions in check and regionally locked in Latin America and Africa. Their energy and decisiveness was particularly important there, where some of our most staunch opponents still had a lot of effective power. An uneasy relationship developed within the movement as they dominated certain regions and the action-oriented parts of the movement such as the Green Army, the Decarbonari or the ORCA. But that was a problem in itself. If all you have is action-oriented cadres, they will always push into more action, even when violent action is no longer necessary or the best tactic or strategy to win. I felt they were hammers, everything they saw looked like nails. We were able to dismantle the Decarbonari, but other groups were still active.
When your mother and other leaders of the Historic Justice current came to meet in Europe, the last time you actually saw her, our political current was terrified that if they would gain more power in Europe or in North America, new different conflicts would start, and older ones reignite. We knew they were decisive enough to bring back the Decarbonari or create a new bold armed wing. And yes, we were negotiating with organised crime and trying to redeem muralists and other reactionaries, managing multiple shaking peace talks and conflicts, all the while famine was still ongoing, while catastrophes would ravage huge territories every year. We, as a movement, had decided not to drench the new system of ecommunism in blood. Your mother and many of her companions had also decided this. It was the movement’s decision. Yet, their political propositions would lead into a new and probably bigger spilling of blood than in the first revolutions. And trust me, I was not afraid of blood, I dirtied my hands for the revolution, but never gorged in the blood of our enemies or felt happy when blood was spilled.
It would be easy to blame Hector, Chen or François for the decision to promote the massacre, but I was one of the people who made the proposal. I have to tell you that it was the most difficult decision I ever made, and I have decided on things like crashing the internet or hacking AI, shifting significant resources into overtaking the technolords. I knew deep down that I was proposing a morally unjustifiable act, but at the time I was fully convinced that they were the biggest threat the movement faced and so I went ahead. I would deal with morals after guaranteeing that the movement succeeded. I have since regretted my decision. I’m not just saying this because we were discovered, I have nothing to win anymore. I feel that since what we did, and probably also because of what we did, events have proven your mother’s political current to be right. We needed to press onwards. We need to press onwards, even if that means an increase in conflicts, as there is a new status quo establishing that is endangering many of the things we have fought for. In no other case has this been more clear than with the terrorist attack on the Three Gorges Dam.
Immediately after we had your mother and the others killed, we decided we would do no more acts of that sort, and tried as much as possible to cover it up. Some cadres of the Historic Justice current rightfully suspected something was wrong but we kept it well covered. I’m sure Elizandra, Deng Ming, Sukumar and others knew, but a rotten peace settled inside the movement and we came into prominence, sharing some of the power in the less action-oriented organisations. We hoped that Elizandra would not ruffle many feathers if she was given a position of power with a lot of work, so she got the presidency of the World Climate Treaty. But she is too dogged, she never quits. Don’t trust her blindly, Alex. She is very ambitious and would and has used you to promote her agenda.
When I heard about your kidnapping and saw the video of you being held by the New Daesh, I immediately understood it had to be Hector. He is a lying bureaucrat that has manipulated a lot of people for many years. I thought I might be able to keep him in check as we aligned politically for a long time, but his is a proper conservative, demeaning and cynical agenda. I am glad he will be cast out. He had you kidnapped to hold the judgement in check, to blackmail the court and the World Climate Treaty into being lenient with them in return for your release. But they would have had none of it. I knew Liz well enough to know she would not trade her revenge and political victory for your life.
That is why I made a deal with the New Daesh. I offered them a much bigger bounty to trade. I offered myself, both an historic leader of the ecommunist movement and a soon to be wanted political renegade, that everyone wants to punish, to be exchanged with you. I am happy to trade my life for yours.
I accompanied your travels, and your growth in the process, even if it pushed you away from where I initially wanted. I was impressed by your political ascendancy in Africa. Yes, I saw some of your speeches, they were passionate, inspiring. I would follow you, if I still had that chance. I agree with the Historic Justice current. And much like I once believed the right thing for the movement was to defeat this current, I now know the thing the movement needs is the rise of Historic Justice, to relaunch the revolution and keep us afloat. I am happy to give my life for this to happen.
Things are not brilliant, we are losing millions to famines and catastrophes every year. Big currents are faltering. This has been growing in the last three years. Hundreds of millions are still stuck in territories which can no longer provide for them, and they need to be moved quickly, against not only the physical walls and obstacles, but mostly against the hard cultural and political walls, even within our very movement. I hope that my removal and that of the main leaders of the pacifists will help with this. But then, you need to step up into your historical responsibilities. You need to hear Lia more. Even if you’re not together romantically, she is very sharp and potentially a huge cadre for our movement. I would advise you to listen to Liz, but not to be dictated to by her, I see too much of myself in her actions. A key ally would be Josephine and I suggest to you to reach out to Ettore. I hurt him deeply and kept him in my shadow, but he’s one of the smartest people I have ever met. It will be difficult for him to lead anything publicly, as his association to me is too strong. He never knew about the massacre. Don’t let him go to waste. Hector had some documents from your parents stolen from your house. I have made sure they will get to you.
This is it, comrade. I don’t hope for yours or history’s pardon. I will await what happens to me calmly, as I feel that despite my mistakes, I have offered almost all of myself, my days and nights, my brains and emotions to keeping humanity alive, afloat, hopeful and, who knows, capable of recreating itself better after the long torture of capitalism and exploitation. I hope that by my mistakes I have not destroyed what I had built before, but I am tranquil in knowing that I have not stood by and watched as the world was consumed in flames. I did everything I could do. Even if my name is not remembered, or even if it's vilified, I hope you and others will remember that I was a revolutionary.
Gianrocco
Li e reli a carta várias vezes, sem saber o que pensar sobre Gianni. Era uma carta emocionante. Senti-me dividido mas também movido pela sua candura e pelo seu sacrifício para salvar-me. Ainda odiava o que tinha descoberto sobre ele, mas não tinha ficado igual depois da sua atitude e pelo seu compromisso com o movimento, mesmo depois de ser considerado um pária.
O nosso barco seguiu um caminho tortuoso nas semanas seguintes: de Dardanelos até Tessalónica no meio de uma frota da rota do futuro com refugiados, onde chegámos enquanto um enorme fogo devastava a costa, obrigando ao regresso dos refugiados. Enquanto eles voltavam para a Turquia, seguimos para Sul e Oeste até Djerba, na Tunísia. Descansámos um dia em terra, quando de repente ficou escuro. Uma tempestade de gafanhotos cobria o céu até os animais se atirarem sem hesitar na direção do Mediterrâneo.
Subimos até à Sicília e depois rumo a Oeste, onde uma enorme ilha de plástico flutuava no meio do mar, rodeada de medusas e caravelas portuguesas. Não se conseguiu ver o azul do mar durante as mais de 2 horas que fazíamos a perigosa navegação através do lixo. Chegámos a Skikda, na Argélia, descobrindo um cenário apocalíptico de reconquista pelo Novo Estado Islâmico e fome generalizada. Não desembarcámos, mas do mar pude ver com binóculos o que me pareceram ser fogueiras onde pessoas eram queimadas, ao lado das quais se estendiam longas filas de alimentação. Ahmad corrigiu a rota e fugimos rumo às Baleares, antes de finalmente chegarmos ao nosso destino em terra: Valência. No porto, um homem esperava quando descemos para o cais. Era uma cara que eu não via há muito tempo: Pepe Infante. Apesar de o ter reconhecido, ele não pareceu ter-me reconhecido. Ahmad levou-me até ele.
- Aqui está.
- Alex? - perguntou Pepe.
- Sim, sou eu. - Abracei-o. Ele tocou a minha cara.
- Estás barbudo. E alto. Espero que não te importes. - Pepe tinha uma ligeira névoa sobre os olhos. - Se ainda não reparaste, eu já não vejo.
Pepe segurava uma cana.
- O que te aconteceu? Há décadas que estás desaparecido.
- Oh. Eu deixei Portugal há muitos anos, ainda antes de perder a visão.
- E porque nunca voltaste?
- Porque o meu papel no movimento teve de mudar. Fiquei cego num ataque policial contra uma ação nossa. Fomos atacados com gás fora do prazo, mais uma tática para destruir-nos. Eu e outras pessoas perdemos a visão em poucas semanas. Depois disso, tinha duas opções: abandonar tudo ou mudar o que estava a fazer. Então mudei, passando de organizador para ideólogo e cientista. O movimento precisa de nós de inúmeras maneiras diferentes. - Não pude deixar de pensar sobre o enorme custo pago pelos movimentos e pelos militantes, o enorme custo de significou travar o colapso. E como a violência policial, as prisões e a repressão em massa tinham ditado o fim de tantas tréguas tácitas, o fim das ilusões sobre a não-violência e sobre mudar o sistema por dentro.
- Dá-me o teu braço. - Fomos os três até a um carro onde outro homem de Ahmad nos esperava.
- O que fazes em Valência, Pepe?
- Dou aulas e investigo na Academia do Futuro.
- Aulas de quê?
- Clima. - riu-se.
- E como estão as coisas?
- Já estiveram melhores. A Circulação do Atlântico Norte vai parar nos próximos 36 meses.
- O que é que isso significa? É grave?
- Significa que vamos ter um novo clima na Europa, de certeza. E provavelmente um novo clima no mundo. É algo que prevíamos há alguns anos, mas agora tem uma data. É grave, mas acho que estamos melhor para lidar com isso do que antes.
- O que podemos fazer agora?
- Preparar-nos para o novo mundo que aí vem. Soube da grande aventura que tu tiveste, Alex. Os teus pais ficariam orgulhosos de ti.
- Obrigado. - disse, sem ter bem a certeza do motivo pelo qual ficariam orgulhosos de mim, mas decidi calar-me.
- Por falar nisso, tenho uma surpresa para ti. - Pepe tinha uma das caixas desaparecidas dos meus pais.
Texto de João Camargo