Ahmad ajudou-me a subir na plataforma de comboio em Valência. Pepe ficou na plataforma, depois de uma despedida com lágrimas e abraços, virado na minha direção mas olhando para o céu, com o bastão branco na mão, acenando. Prometeu visitar-me em Lisboa para conhecer António e assim que pudesse, depois de tantos anos de ausência.
A viagem de comboio até Madrid era curta. Depois da paisagem florestada próxima de Valência e das montanhas a Oeste, entrámos num extenso deserto com poucos arbustos, onde enormes dunas se erguiam. Ahmad finalmente permitiu-me contactar pessoas em Lisboa. Assim que me passou o telefone, liguei para a Lia.
- Lia. Sou eu. - um suspiro de alívio surgiu do outro lado.
- Oh, Alex! Que bom ouvir a tua voz. - Perguntei-me se ainda poderíamos voltar a ficar juntos.
- Também é muito bom ouvir-te, Lia. Como é que vocês estão?
- Estamos enfiadas com o António na sede do Tratado há semanas. Agora nem me deixam ir trabalhar. Mas conta-me, estás mesmo bem? Fizeram-te mal?
- Trataram-me mal, mas não me torturaram ou algo assim. Estou prestes a chegar a Lisboa.
- Em dois dias, não é?
- Como sabes?
- Já há anúncios da tua chegada na rádio e na net. Há cartazes nas ruas. Estás muito famoso.
- Famoso?
- Sim. Tu e a tua mãe também. Há duas estátuas dela só em Lisboa.
- Estátuas da mãe? Quem é que fez estátuas dela?
- Uma foi o movimento, e fui eu que fiz a proposta! A outra foi um grupo de cidadãos. Está a haver um grande esforço para recuperar a memória dela. Começou com as notícias do massacre montado pelos pacifistas. Mas o teu rapto tornou tudo ainda mais popular. Eu estava envolvida em algumas iniciativas, mas há uns novos contornos estranhos. Várias pessoas foram expulsas do movimento. A maioria fugiu para a cidade livre.
- Quem foi expulso?
- Pacifistas, ou pessoas associadas ao pacifismo. Foram expulsas depois da condenação no julgamento.
- O que têm essas pessoas daí a ver com o massacre?
- Foi exatamente o que eu disse. Mas estão a acontecer ajustes de contas. A notícia da fuga do Gianni tornou muitos elementos da Justiça Histórica paranoicos. - suspirou - Por falar nisso, como é possível o Gianni ter estado envolvido na morte da tua mãe, Alex? No teu rapto?
- Ele… Foi ele que me tirou de lá, foi ele que me libertou, trocou de lugar comigo. - Senti a voz embargada. Não podia ficar emocionado pelo carrasco da minha mãe.
- Eu pensava que tinha sido a equipa do Tratado a resgatar-te.
- Não. Foi o Gianni que organizou tudo. Ele arranjou uma equipa para me ir buscar e trazer até casa. Ofereceu-se para ser refém e moeda de troca em vez de mim.
- Então não foi Gianni e os pacifistas a organizar o teu rapto?
- Foi o Hector. Quando o Gianni descobriu, decidiu salvar-me.
- Então não foi a Liz que te salvou.
- Não.
- Se tivesses morrido, serias mais um trunfo político. - A Lia tinha razão.
- Mas estou vivo.
- Sim, meu querido. Felizmente estás seguro. O que vais fazer quando chegares? O que vais dizer na manif?
- Manif?
- Há uma manif marcada para a tua chegada. Os velhos descarbonários e a malta da Justiça Histórica estão a convocar uma marcha para celebrar o teu regresso. Vão querer que fales. Já me tentaram contactar, para que eu estivesse lá a discursar e para saberem de ti.
- Não sabia de nada disso. Não sei se quero falar. Quero descansar, não meter-me em manifestações logo nos primeiros dias. Quero estar convosco em casa e dormir uma noite inteira numa cama em condições.
- Em casa? Estamos na sede do Tratado. E não estou sozinha. - Mei. Ainda não conseguia falar sobre aquilo.
- Depois podemos falar?
- Claro que podemos falar, Alex. Temos todo o tempo do mundo para falar quando voltares. - Aquela não-promessa aliviou-me um pouco.
- Outra coisa. O Gianni disse-me que alguém dos pacifistas nos tinha mesmo roubado caixas, lembras-te?
- Claro que me lembro. As caixas não podiam ter simplesmente desaparecido.
- Recuperei uma delas, tenho-as comigo.
- Como é que as recuperaste?
- É uma longa história, quando chegar conto-te. Posso falar com o António?
- Sim, claro.- Do outro lado, ouvi os seus barulhinhos, a respiração profunda.
- É o pai. - António fez uma série de sons agudos e disse sílabas sem sentido, uma algaraviada divertida. Eu tinha perdido muito. Ele devia estar mesmo a começar a falar.
- Ele já fala?
- Não, Alex. Mas está sempre a parlar. Já não deve faltar muito.
- Papá - disse eu, como um tonto, por telefone. Ahmad olhou para mim, divertido. - Pa-pá. Pai. - depois de uns minutos nisto, o António começou a chorar.
- Vou dar-lhe comida, Alex. Vemo-nos assim que chegares a Lisboa. Diz-me quando souberes a hora exata. Vou negociar com a equipa de segurança daqui para te irmos receber.
- OK, Lia. Aviso-te assim que souber.
- Muitos beijos, Alex.
- Beijos, meu amor.
Enquanto falávamos olhava pela janela, para os vários ferros-velhos no deserto, pilhas sobre pilhas de carros, autênticas montanhas degradando-se à espera de reaproveitamento. Como não tinha reparado nisto na vinda? A reciclagem de metais e outros materiais dos automóveis tinha-se tornado uma das maiores indústrias do mundo. Antes da Grande Mudança, havia mais de mil milhões de carros por todo o mundo, um volume gigante de materiais. A reciclagem de carros fornece metais e peças usadas em construção, embora todas as partes sejam reutilizadas nos bons ferros velhos: lâmpadas, cadeiras, espelhos, vidros, pneus e as várias partes dos motores. Pensar em mecânica e logística ajudava-me a não pensar no meu rapto, no medo e no isolamento. O telefone tocou. Elizandra.
- Olá Liz.
- Olá, Alex. É bom ouvir-te.
- Já sabes que estou a chegar a Lisboa?
- Fui informada há três dias que já estavas em segurança. Alguém próximo do Gianni contactou-me. Alex, não sei se as pessoas com que estás te informaram sobre o Gianni…
- O quê?
- Sobre o Gianni. Ele está morto. Mataram-no. - Não foi propriamente uma surpresa. O que não significa que não me tenha dado um nó no estômago.
- Eles queriam trocá-lo por prisioneiros. - Ela tinha feito uma escolha muito intencional.
- Nós não negociamos com os fundamentalistas. - respondeu-me em tom formal.
- Podemos ser honestos um com o outro, Liz. Foi útil deixar o Gianni morrer, não foi?
- Resolveu um problema que podia ser complicado.
- E o Gianni sabia disso, não sabia? Só manipulou o Daesh.
- Ele sempre foi muito inteligente. E escolheu sacrificar-se por ti. - Por outro lado, a Liz podia ter negociado o meu resgate mas não o fez. Mas decidi não começar aquele conflito. - Quase de certeza que foram os pacifistas que mandaram raptar-te e matar as seguranças do tratado. Nunca os vamos deixar voltar do exílio. Olha, a Lia está bem e à tua espera com o António.
- Já falei com ela. Chego a Madrid hoje e vou tentar sair diretamente para Lisboa.
- Espera mais um dia em Madrid, encontro-me contigo lá.
- Vens à Europa?
- Estou cá. Vim para o julgamento.
- Quero ir para Lisboa o mais rápido possível. Não vejo a Lia e o meu filho há seis meses.
- Quero falar contigo em pessoa sobre o que vai acontecer agora. Espera por mim em Madrid. Depois talvez possamos ir juntos para Lisboa. Pensei na tua proposta.
- O que me vais propor, Liz?
- Como te disse, e tu concordaste, precisamos criar mais comunicação, jornalismo. Nunca nos recuperámos do colapso da imprensa, da internet global e das grandes redes. O que ainda há é demasiado formal, demasiado institucional. Precisamos reconstruir a comunicação social, de trazer de volta sentidos comuns.
- Porque achas que tenho capacidade para fazer isso?
- Estás há onze meses a fazer jornalismo de investigação. Conheceste quantos países? Setenta? Leste quantos livros e artigos no último ano? Ouviste quantos podcasts e entrevistaste quantas pessoas? És um jornalista. Descobriste uma grande história que está a mudar o movimento. Não sei de outra pessoa, hoje, que tenha a capacidade e a energia para levar um grande projeto nesta área em frente. E a credibilidade.
- Mas o que significa eu fazer imprensa? Que significa reconstruir a comunicação social? Já não existem muitos dos meios que existiam há vinte ou trinta anos.
- Precisamos de falar em Madrid para eu te explicar o que pensámos.
- Pensámos quem? As Borboletas?
- Não. Aliás, já não há borboletas. Pensámos algumas pessoas do Tratado e do movimento. Logo podemos falar melhor. Se ainda não o fizeste, liga à Lia, Alex. Ela vai ficar satisfeita de ouvir-te. Estava muito preocupada contigo.
- Falámos há pouco. Onde nos encontramos, em Madrid?
- Eu trato com a equipa do Ahmad.
- Vemo-nos lá.
- Tchau, Alex. Fico feliz que estejas bem.
- Obrigado. Até já.
Abri a caixa que Pepe me tinha dado. Gianni tinha-lhe enviado a caixa antes de ir salvar-me no Egipto. Revirei o conteúdo. Não percebia o motivo de me terem roubado aquilo. Dentro de um livro, descobri um volume de cartas. Rasguei o envelope. Eu tinha recebido tão pouco contacto da minha mãe, e um contacto tão seco, que nem me lembrava daquelas cartas. Será que as tinha lido sem atenção? Era muito estranho não me lembrar.
Meu querido Alexandre,
Espero que estejas bem. Como vai a nova escola? Soube que tens vários amigos novos que são do movimento. O que é que eles fazem no movimento? Não estás interessado em envolver-te mais? Penso que grandes coisas acontecerão em Portugal e na Europa nos próximos meses. Se te queres envolver, este é um momento-chave.
Entristece-me que não respondas às minhas cartas. Tento escrever-te com a máxima frequência que consigo, mas confesso-te que ao fim de tantos anos, a falta de respostas tuas me aflige e desmotiva. Já te expliquei várias vezes que não podia mais ficar aí contigo, com o teu pai e com a minha família, enquanto tudo colapsava. Estou a fazer a diferença, como deves saber. O movimento cresceu e isso deveu-se a pessoas que decidiram empenhar-se em voltar a construir um futuro. Eu sacrifiquei estar contigo, estar convosco, para construir um futuro para toda a humanidade. Sei que não te perguntei se estavas disponível para isso, que te impus um sacrifício sobre o qual não tiveste qualquer opção, mas espero que acredites em mim quando te digo que eu não poderia ter ficado e sido algo mais do que um espectro, um fantasma a viver na incerteza sobre o significado da minha vida. Ou pior, não poderia ter ficado a viver na certeza da inexistência de significado da minha vida perante a hecatombe.
Não sei quanto é que o teu pai te contou, mas fui raptada durante algumas semanas. Consegui fugir e estou há quatro meses a recuperar num antigo hospital. É um sítio muito bonito, nas montanhas. É frio, mas este frio tem-me feito muito bem. Estou a descansar bastante, finalmente tive tempo para ler alguma coisa que não fossem relatórios nem ensaios políticos. Estou a ler Duna, de Liliana Colanzi. Devias ler, se conseguires. Acabei de ler os Cem Anos de Solidão do García Marquez. Que prazer embrenhar-me em palavras, em mundos mágicos. Sinto-me muito bem, mas por vezes acordo aterrorizada a meio da noite. Por vezes estou muito bem e quando fecho os olhos aparecem-me imagens do que me aconteceu. Fui muito maltratada. Felizmente eles eram mais emocionais do que racionais, e muito burros. Mantiveram-me presa com pouca força, e evitei resistir demais para ter hipóteses de fugir. Eles esperavam conseguir que lhes desse informação e menti-lhes descaradamente durante vários dias. Finalmente consegui convencer um idiota de que estava apaixonada por ele. Apesar de alguns ferimentos ligeiros e queimaduras de cigarros, consegui fugir. Felizmente não foram as pandilhas a raptar-me, mas sim uns machistas fundamentalistas religiosos. A minha sensação de impotência durante aquele tempo é algo que ainda me atormenta - a ideia de estar tão privada de liberdade, de não poder escolher o que fazer, de não poder resistir, de alguém poder tocar o meu corpo sem o meu consentimento continua a perseguir-me. A sensação de ser menos pessoa pela força de outros ainda agora me faz passar noites sem dormir. Quando revejo na minha cabeça a cara daqueles homens, o seu cheiro, os meus dentes apertam-se de tal forma que sinto que os posso partir. Nunca nada me fez sentir tão fora de controlo. Mas como te disse, estou melhor. Sinto-me a voltar a mim mesma, pouco a pouco.
Queria falar-te sobre uma batalha que borbulha sob a superfície do nosso movimento. Uma batalha que sinto que, quanto mais tarde ocorrer, mais devastadora será. É a batalha entre os que falam de estabilizar a situação e os que compreendem que a revolução ainda agora começou. Sei que estamos muito distantes, mas esses dois campos levam a atitudes completamente diferentes em relação, por exemplo, aos neanderthais que me raptaram e maltrataram, mas principalmente à atitude em relação às migrações. A Rota do Futuro, que ainda agora começou, está sob forte ataque e tem de ser defendida. Centenas de milhões, milhares de milhões de pessoas têm de ser levadas para locais do planeta onde possam viver. Não existe nenhuma barreira, nenhuma fronteira, nenhuma arma que o possa travar. Essa necessidade é simplesmente a necessidade de estar vivo. Obstaculizá-la em qualquer momento significa criar uma monstruosidade de problemas para acrescentar aos problemas reais que já existem. Sinto-me cada vez mais no campo que não permitirá que a revolução pare, embora sejamos de momento uma minoria.
Quero muito que me respondas, que me digas o que achas sobre o que te escrevi, que me digas como vês a situação e, claro, que me digas se queres visitar-me. Seria uma grande alegria para mim, para alegrar e dar mais força ao meu coração de mãe, poder estar contigo, abraçar-te, beijar-te e ver com os meus olhos o homem em que te tornaste. Consigo organizar as coisas de maneiras a que venhas cá, mas tens de me dizer.
Um enorme beijo da tua mãe que te ama.
M.
15.out.2032
Nunca tinha lido aquela carta. Nunca tinha sabido do seu rapto e da violência contra ela, ainda por cima diretamente da sua boca. Nunca me tinha sido apresentada a ideia de visitar a minha mãe. O meu pai tinha-me escondido esta carta. E provavelmente muitas outras também. Porquê?
Olá, Alex
O ressurgimento da Muralha, que foi capaz de tomar a Aliança das Cidades Independentes e proibir a entrada de refugiados climáticos nas cidades livres é apenas mais um sinal do que há muito temo. Temo que em breve algo de mau vá acontecer. A reeleição da presidente americana reforça o isolacionismo e as barreiras à Rota do Futuro. Não sei se alguma vez nos vamos livrar do capitalismo. É como um fantasma que está sempre dentro de nós. Foram séculos de repetição de que é a natureza humana. Talvez seja mesmo. Mas se aquilo é a natureza humana, temos de renegar a natureza humana e tornarmo-nos outra coisa. Os limites foram atingidos, já não vivemos no mesmo planeta. Não podemos continuar a ser a mesma espécie. Mesmo após o desmantelamento da Descarbonária nós, a justiça histórica, somos considerados uma ameaça.
Tenho muita pena da profunda divisão entre mim e ti, e tenho de dizer-te que culpo diretamente o teu pai por isso. Ele escondeu-te de mim, impediu o nosso contacto, tão difícil para mim. Como poderias ter outra interpretação além de que eu te tinha abandonado? Não espero tão pouco que esta carta chegue a ti. Tentei contactar-te através de várias outras pessoas, mas o António criou uma bolha à tua volta, mesmo agora que já és adulto. Se o teu avô não tivesse morrido tão cedo, talvez tivesse sido possível manter-nos em contacto, mas fui ingénua sobre o teu pai e tu é que pagaste. Perdoa-me mais esta falha. Ainda assim, fiquei muito muito feliz de te ver em Lisboa, e triste por te teres rejeitado até a falar comigo. Culpo-me por não ter insistido, mas a verdade é que me sinto em perigo e temi pôr-te em risco.
Esta carta é uma despedida, Alex. Quero que saibas que desde que nos separámos em 2026, todos os dias pensei em ti. Pensei em ti enquanto lutava, enquanto treinava pessoas, enquanto escrevia, enquanto derrubava fascistas e facínoras, enquanto servia a humanidade. E fazia-o por ti, meu amor. Sei que pela minha ação contribuí para manter aberta a janela para o futuro. Mas ainda há tanto para fazer. A bolha que o António criou à tua volta também foi uma bolha contra o movimento, o movimento que um dia foi meu e dele, mas que ele nunca me perdoou ser tão importante para mim. Acredito que um dia entenderás como é importante estares no movimento, construires história, o futuro. Nunca parei de acreditar no futuro e tu és a prova viva disso, tu és o futuro. Cresceste num mundo diferente daquele em que eu cresci e viverás num mundo novo, melhor em muitas coisas por causa da ação ecomunista, pior em muitas outras porque não fomos tão rápidos e eficazes como era preciso. Nada está fechado, não há destino, Alex. O que há são pessoas, coletivos, sociedades, que definem as suas regras e que lutam, muitas vezes dentro de si, para construir um caminho que lhes permita ser melhores e mais felizes, serem seres cada vez mais inteligentes e completos, que abarquem a dimensão da vida humana na sua plenitude. A luta das gerações futuras, primeira das quais a tua, será construir o funcionamento da sociedade num planeta já diferente onde as regras bárbaras do capitalismo que nos trouxeram à beira do precipício têm de ser abolidas, varridas, desde as pequenas às grandes. É uma missão assustadora mas também inspiradora. A humanidade está a recomeçar. Não pode perder de vista a informação, a história do que aconteceu, aquilo que a trouxe até aqui e de como o pior foi parado. Senão, de nada servirá tudo o que fizemos nos últimos veinte anos. Antigamente costumava explicar o que estava a acontecer às pessoas que estava a recrutar com uma metáfora espacial: imaginem descobrirmos no espaço, a uma distância próxima, um planeta parecido com a Terra mas cuja temperatura era 3 graus mais quente do que cá - não quereríamos ir para esse planeta? De certeza que sim. A tua geração acabou de aterrar nesse planeta. Espero que um dia tu saibas tudo o que eu fiz. Digo-te por quem o fiz. Fi-lo por ti, meu filho. Que possas pegar o futuro e continuar a construir sobre o que eu e milhões de outras como eu já fizeram.
Sou a tua mãe, Marta, que te amará sempre.
30.ago.2036
Acabei de ler a carta com lágrimas nos olhos, enquanto o nosso comboio parava em Madrid. Tive de me recompor e guardar as coisas na caixa. Do lado de fora havia uma grande animação, com uma banda e um grupo de pessoas acenando bandeiras. Ahmad olhou e disse-me que aquela multidão estava ali por minha causa. Falámos e decidimos não descer no meio da multidão, mas antes pelo outro lado, chamando pouco a atenção e reduzindo os riscos de segurança. O telefone de Ahmad tocou e ele atendeu Elizandra, que disse que nos esperava do lado de fora, na multidão. Ahmad estava a falar com a presidente do Tratado Mundial do Clima, mas podia estar a dar um raspanete a uma criança. Disse-lhe sem hesitar que eu não sairia do comboio para o meio da festa e que me levaria até ao ponto de encontro combinado sem carnavais políticos. Ainda ouvi Liz a reclamar do outro lado, mas Ahmad entregou-me as coisas, pegou-me pelo braço e levou-me para fora do comboio, depois escondeu-nos no meio dos passageiros de outros comboios, até chegarmos à saída da estação, onde um drone de transporte nos esperava para levar à casa segura.
Elizandra chegou trinta minutos depois de nós à casa. Vinha muito zangada, reclamando da nossa fuga irracional, que a tinha deixado pendurada frente à multidão que me esperava. Ahmad estava tão calmo como sempre o tinha visto. Não levantou a voz, manteve-se completamente neutro e pouco reativo. Explicou que enquanto não me deixasse em Lisboa, era ele o responsável pela minha segurança, que tinha uma equipa que nos acompanhava, e que depois de terminada a sua missão eu poderia fazer o que quisesse. Liz ainda esteve uns minutos a bufar antes de se acalmar e dar-se por vencida perante a passividade do homem. De qualquer maneira, não voltaríamos à estação em breve e, portanto, o espetáculo estava estragado.
Há vários meses que não via a Liz, e a minha imagem dela tinha mudado. Antes, parecia-me uma mulher enorme, difícil de perceber, dona de tanta informação e tanto poder que a admiração era o meu principal sentimento em relação a ela. Agora, depois de vários meses e também de muita informação, ela parecia-me mais baixa, mais magra, mais pequena. Em mais do que um sentido. Pedi-lhe que me explicasse o seu plano e Liz, já calma e séria, começou.
- Na tua história da Grande Mudança, conseguiste entrevistar alguns jornalistas?
- Que eu saiba, apenas o Dewi e o Sukumar. Porquê?
- Porque as últimas décadas foram uma catástrofe para a imprensa e para a comunicação social. Os poucos jornalistas que restavam tornaram-se alvos da Muralha, do crime organizado e dos fundamentalistas religiosos. Uma das grandes falhas que o movimento ainda não conseguiu resolver foi criar uma verdadeira comunicação social, uma ferramenta de informação útil para toda a sociedade e que permita interações em maior escala.
- Mas há boa comunicação sobre as coisas essenciais: as condições ambientais, as catástrofes climáticas, o estado da agricultura e das colheitas, reuniões em que é preciso participar, celebrações e festas…
- Falta comunicação mais internacional, mais profunda sobre as mudanças de grande escala que estão a acontecer no mundo. Precisamos que as pessoas percebam que a urgência não passou, que a transformação não acabou, que não entrámos num novo normal.
- Sei mais ou menos o que aconteceu às Big Redes, mas não o que aconteceu aos jornais, à imprensa. E continuo sem perceber porque achas que posso trabalhar nisto.
- Como sabes, houve um momento em que a Inteligência Artificial inundou a imprensa com notícias falsas em massa, falsificando fontes, clonando websites, inventando pessoas ou pondo pessoas reais a prestar declarações que elas nunca fariam. Simulou acontecimentos que nunca ocorreram, fabricou uma realidade alternativa, sabotou o crowdsourcing…
- O Gianni contou-me que o movimento hackeou a Inteligência Artificial…
- Sim, perto do fim. Mas quando isso aconteceu já havia uma guerra total na comunicação online. A extrema-direita e depois a Muralha tomaram as principais redes, Musk ofereceu-lhes o X, Zuck o Meta. Quando as revoluções explodiram a era do smartphone já estava a acabar, a indústria tinha colapsado. O movimento também contribuiu para isso, atacando a infraestrutura das redes sociais e da internet, que nessa altura eram apenas um espaço de recrutamento dos contra-revolucionários.
- O que tem isso tudo que ver com a imprensa?
- A imprensa, a maior parte da imprensa, posicionava-se contra os movimentos revolucionários. Posicionava-se ativamente como contra-revolucionária, pelo que não a íamos apoiar. Além disso, a imprensa tinha naquela altura uma relação quase umbilical com as redes sociais e com a internet. Poucos jornais publicavam ainda em papel, a redefinição de notícia em conteúdo tinha criado um vazio. A imprensa como fonte de informação estava comprometida e a tentativa de competir com o que era produzido nas redes sociais tinha-a ferido de morte. Mas claro que as pessoas queriam saber, como ainda querem saber, a realidade, conhecer verdades. Começou uma procura de “fact-checks”, de fontes credíveis, que manteve alguns à tona de água. Mas no fim, também eram negócios capitalistas no meio da maior crise financeira da história. Os que não se transformaram em outras coisas, simplesmente caíram. O estigma ligando a imprensa e às redes sociais e às mentiras era muito forte. A própria internet era vista apenas como uma ferramenta de manipulação.
- Como é que o movimento lidou com isso? E claro, como é que se manteve em contacto com as pessoas, como é que se informava a si mesmo?
- Já tínhamos criado um grande serviço de informação. Inicialmente, era interno, só para nós. Precisávamos de boa informação para poder tomar boas decisões. Depois, uma parte desse serviço começou a ser público, disponível online e em papel. Mas foi e continua a ser muito formal e técnico, as pessoas não o procuram de forma ativa, excepto quando precisam de alguma coisa. Algumas das antigas agências de informação como a Reuters e a Associated Press ainda existem. Mas têm poucas pessoas e pouco acesso a informação.
- E a tua proposta é que eu faça o quê?
- Eu quero dar-te acesso às redes de informação do tratado para criares uma plataforma de comunicação que possa apoiar milhares de pequenos meios de comunicação, pequenas rádios e jornais que aparecem todos os dias por esse mundo fora e ajudar a redinamizar a comunicação entre o movimento e a população, e entre diferentes povos. Propomos que encontres antigos jornalistas para que possam voltar a trabalhar e que estabeleças regras sobre como investigar e comunicar. - A proposta entusiasmou-me.
- Parece-me uma excelente ideia, Liz. Mas quais são as contrapartidas?
- Não há contrapartidas, Alex. Tens de parar de pensar assim. Se aceitares a nossa proposta, haverá uma definição clara do que poderás fazer, dos meios a que terás acesso e das ferramentas para fazê-lo. Terás de manter informada a cúpula do tratado, naturalmente.
- Naturalmente.
- Que me dizes?
- Preciso de tempo para pensar. Mas como já disse, a ideia é excelente. Posso escolher uma equipa de pessoas para fazer isto comigo?
- Acho que dentro do razoável, podes.
- Ok. Obrigado.
- Isto não é uma recompensa ou uma prenda. Eu e várias outras pessoas pensamos que tu podes ser a pessoa certa para fazer isto.
- Obrigado pela confiança, então.
Na manhã seguinte partimos para Lisboa. Liz quis vir comigo. Percebi que ela queria sair do comboio em Lisboa comigo, e perguntei-lhe se era mesmo essencial isso acontecer, qual a vantagem de sermos vistos juntos, quando eu estava tão claramente do campo dela? “A política nunca vai acabar, Alex.”. Pedi à Lia para que não fosse ter comigo ao comboio na Estação do Oriente, onde a manifestação ia acontecer. À saída do comboio havia mais de duas mil pessoas à minha espera, gritando o meu nome. Muitos, conhecia: amigos novos e velhos, pessoas dos movimentos que eu tinha conhecido a vida toda. Outras eram totais desconhecidos. Fiz um discurso curto, com excertos de coisas que tinha dito na minha viagem africana. Queria chegar rapidamente a casa. No meio da multidão, pareceu-me ver uma cara conhecida, mas era impossível a Chida estar ali.
À hora do almoço cheguei à sede do Tratado Mundial do Clima. Ahmad despediu-se e entregou-me um cartão com o seu contacto.
- Agora que vais ser um chefão, já sabes. A minha equipa está sempre disponível para ajudar o movimento.
Abracei-o e afastámo-nos. A Liz disse-me que tinha de ir trabalhar e que poderíamos ver-nos mais tarde. Indicou-me o número da porta e afastou-se. Caminhei pelo corredor até uma porta branca com o número 93 em cima.
Bati.
Tempestade
O coletivo editorial: Alex Garrido Águas, Amaru Yahari, Chida Kusuma, Dewi Rahmawati,
Lia V. Gomes, Mila Morozova, Olivia Anwar, Xiang Jianmei
Começar um novo projeto é sempre começar uma aventura. Gostaríamos de vos garantir de que daqui em diante tudo será tranquilo e sem convulsões, que o clima parou de mudar, que a Muralha não regressará jamais, com aquele ou outro nome, que a terra está de novo em harmonia connosco. Não é assim. Estamos aqui para vos dar informação, para procurá-la, pesquisá-la, percebê-la. Sabemos que no passado a informação e a comunicação foram transformadas em armas tantas vezes usadas para o mal. Estamos aqui para ajudar-vos a conhecerem cada vez melhor o mundo que perdemos, mas também o mundo que estamos a construir. Não será uma tarefa fácil. Não vos levaremos pela mão o caminho todo, a muitas conclusões terão de chegar sozinhas. Mas estaremos convosco, ao vosso lado.
Não prometemos imparcialidade. Somos militantes, somos cidadãs ativas e engajadas em diferentes movimentos, não somos fiéis da balança de um equilíbrio falsificado, que nunca existiu. Mas prometemos questionar, investigar e publicar o que encontrarmos, em conjunto com outros. Temos um compromisso com a integridade, tal como temos um compromisso com a construção do futuro.
Vimos de diferentes locais e de diferentes contextos, trazemos connosco uma história e também o sentido da justiça histórica. Daremos o melhor de nós neste serviço, um serviço para toda a população, que terá diferentes componentes que anunciaremos em breve. Pretendemos aprender e melhorar, criar novas ferramentas e inventar a comunicação do futuro. Contaremos com a vossa resposta para saber os caminhos vamos seguir.
Começar um projeto novo é começar uma aventura. A aventura humana, com os seus amores, horrores, alegrias, sofrimentos, coragens, tristezas e superações, está longe de acabada. Para ultrapassar a tempestade, precisaremos do melhor da humanidade reconciliada com a natureza. Estamos aqui para ajudar a construir os barcos e os portos que nos protejam na tormenta.
FIM
Texto de João Camargo