É inevitável não sermos absorvidos pelo universo criativo da ilustração, quando há na narrativa visual um poder inerente que faz transitar, do artista para a obra, uma qualquer história que se quer contar, que quer chegar até nós. Na ilustração de ficção científica e fantasia encontramos o trabalho do artista português André Mata, que recentemente se aventurou no panorama internacional, onde encontrou, no presente, a realização profissional que faz dele um Ilustrador do Futuro.
André Mata é um dos mais recentes vencedores da competição internacional Illustrators of the Future, que atribui prémios a escritores e ilustradores de todo o mundo desde 1988. O talento na área da ficção científica concedeu-lhe a oportunidade de um trabalho publicado, já este ano, no volume 37 da antologia L. Ron Hubbard Presents Writers of the Future. Este mesmo trabalho, concorre para a competição final, Golden Brush Award, que reúne em outubro de 2021 os anteriores vencedores, em Hollywood.
Durante cinco anos foi militar da Força Aérea, mas sempre mantendo o gosto pelas artes, livros e ilustrações que o acompanhavam desde a infância. Um entusiasmo que se intensificou quando, há cerca de dois anos, decide mudar de rumo para se dedicar inteiramente à ilustração. Licenciado pela Universidade de Solent, em Southampton, Reino Unido, regressa a Portugal com a convicção de criar, sob uma ideia muito própria, um novo caminho profissional, assente no verdadeiro sonho e concretização.
É no campo do romantismo da ilustração que se assume enquanto artista, na preservação da crueza dos materiais tradicionais, presentes nas suas obras através dos pigmentos, tintas, acrílicos e carvão, que engrandecem a cor e a textura de uma experiência visual ficcional de inspiração realista.
Em entrevista ao Gerador, André Mata realça a importância de arriscar em novos desafios profissionais, que o levam à descoberta do gosto pela criação artística, dentro e fora do território nacional, num percurso pela ilustração que ainda agora começou a ser desenhado.
Gerador (G.) - Quando surgiu esse fascínio pelas artes, mais concretamente pela ilustração?
André Mata (A. M.) -Eu comecei a desenhar desde criança, sobretudo personagens, muito influenciado pelos filmes da Disney. Sempre gostei de banda desenhada, filmes, jogos de computador, tudo o que tinha narrativa visual. Apanhei a era dos anos 90, com os point and click adventures games. Tudo isso facilitou a minha escolha pela área das Artes no secundário. No entanto, só há alguns anos é que me interessei verdadeiramente pela ilustração, resultado de uma profunda insatisfação com o emprego que tinha na altura, na Força Aérea. Comecei a ler avidamente histórias e contos de vários géneros literários, de aventura, ficção científica, fantasia, mistério, entre outros, como forma de me abstrair da previsibilidade do meu trabalho. Foi então que percebi que muitos dos livros que escolhia, deviam-se ao facto de terem na capa ilustrações que eu admirava muito, e de contarem histórias que me levavam a imaginar cenários, personagens e criaturas do reino do fantástico. Devido a esse fascínio pela área da literatura e da ilustração, comecei a procurar online mais informação sobre os autores e os artistas que seguia, por exemplo, ilustradores do Magic the Gathering, acabando por encontrar vários recursos que me ajudaram a desenvolver capacidades na área do desenho e da pintura. E foi aí que acreditei ser possível desenvolver as capacidades necessárias. Apostei ao procurar informação, estudar por mim e decidi de vez ir para fora do país.
(G.) – Essa saída de Portugal foi importante para impulsionar a mudança de vida profissional?
(A. M.) - Era fundamental para mim mudar a minha vida e arriscar o mais cedo possível. Sei, por experiência própria, que a indecisão, o medo e a incerteza do futuro, ou até a necessidade de uma sensação de segurança, levam a uma inércia paralisante, perdendo tempo e oportunidades essenciais, acabando, inevitavelmente, a fazer algo que não gosto, o que me deixa profundamente insatisfeito. Por questões emocionais e mesmo de saúde mental, fazer algo que não se gosta acaba por ser prejudicial, não me sinto bem a fazer algo que não gosto. Sinto necessidade de fazer este tipo de coisas, não só na ilustração de ficção científica e fantasia, mas também em todo o universo criativo. Resolver um problema criativo, contar uma história. É importante na escolha dos temas e na forma de trabalhar, sendo flexível, mas fazendo o que gostamos. Sair de Portugal ajudou-me a seguir este meu objetivo.
(G.) - O que mais o cativa na ilustração e que géneros gosta mais de explorar?
(A. M.) - O desafio, imaginar o potencial do conceito, criar e desenvolver a imagem e vê-la ganhar vida. Tenho interesse em paisagem, retrato, veículos, animais, tudo o que conte uma narrativa visual. Confesso que de momento estou mais fascinado pela área da ficção científica, acho que se adequa ao período em que vivemos, com o desenvolvimento das tecnologias, a exploração espacial, as mudanças climáticas e o futuro da humanidade. Eu sou influenciado por poucos artistas, mas o ilustrador James Gurney sempre foi uma referência para mim em termos de trabalho e formação, porque abrange todos os géneros, quer seja retrato, paisagem, maquetes, conhecimentos de perspetiva. Eu acho que toda a observação e procura por um pouco de tudo acaba por complementar as ideias de ilustração. É uma rotina e um sistema de estudo que me ajuda a desenvolver capacidades, disciplina, rigor.
(G.) - Fale-nos de como é o processo criativo de um ilustrador. Desde o momento em que inicia o projeto, a pesquisa, os rascunhos, até ao resultado final.
(A. M.) – Começa por uma ideia para a qual crio vários esboços pequenos, geralmente a caneta preta, em que faço pequenas indicações sobre a narrativa da imagem, os vários elementos e até a cor e outras ideias ou versões que posso querer vir a desenvolver. Estas indicações são normalmente para me recordar da ideia inicial, principalmente quando desenvolvo vários projetos ao mesmo tempo. Em seguida, volto a desenhar esse pequeno esboço num formato maior, em que desenvolvo ainda mais o desenho, acrescento detalhes, dou mais expressão aos personagens e melhoro o design do cenário ou dos veículos. Muitas vezes, faço estudos à parte dos vários elementos que compõem a imagem, tudo isto ainda a caneta preta, que me ajuda a pensar graficamente e a criar mais versões num curto espaço de tempo. Após esta fase inicial, costumo fazer novamente outro desenho, desta vez a grafite ou carvão, de forma a desenvolver o design tonal, a luz e as sombras. É normalmente nesta fase do projeto que faço uma pesquisa geral de referências fotográficas que me possam vir a ajudar a desenvolver ainda mais a imagem. Muitas vezes faço maquetes dos veículos, criaturas, personagens e cenários que posteriormente me ajudam a estudar os efeitos da luz em condições naturais que depois fotografo e uso como referência. Também costumo posar e tirar fotos de mim mesmo quando existem personagens nos quais me possa usar como modelo e referência, principalmente para expressões e estudos tonais. Depois de reunidos todos os desenhos, estudos, referências e maquetes, faço sempre um desenho preliminar a grafite ou carvão, geralmente do mesmo tamanho da pintura final, ou ligeiramente abaixo, que por fim amplio e transfiro para o papel aguarela, ou placa MDF preparada com gesso ou tela. Antes de começar a pintura, faço sempre um estudo de cor em formato digital e outro geralmente em acrílico. Quando tenho resolvido todo este processo é que começo a pintura final.
(G.) – Há uma certa tendência para uma ilustração muito manual, tradicional, que se torna mais demorada. O digital aparece apenas como ferramenta de apoio nesse processo.
(A. M.) – Sim, o que se torna digital é o processo de desenvolvimento, as experiências rápidas. Sempre gostei mais da experiência tátil, e como quero fazer originais há uma estética que acaba por ser mais apelativa para ver em galerias. Eu sinto essa relação ao ver o trabalho com imperfeições, cor, relevo, textura. Já cheguei a fazer digital, tenho interesse, mas tenho muito maior gosto a fazê-lo a pigmento, em tinta. É uma ideia romântica da ilustração, diria.
(G.) – Quando decidiu concorrer à competição internacional Illustrators of the Future?
(A. M.) - Após regressar a Portugal, na altura comecei a procurar mais intensamente concursos, já com a intenção de submeter trabalhos e ter algum feedback sobre o que estava a acontecer na indústria. Uma coisa é publicar o trabalho nas redes sociais, outra é ser visto por profissionais. Depende sempre do público e da plataforma. Quando encontrei esse concurso reconheci ilustrações de Frank Frazetta, Bob Eggleton, entre outros. Tudo isso me deu confiança para submeter o meu portefólio no Illustrators of the Future, que é uma competição internacional só para ficção científica e fantasia. Da primeira vez tive menção honrosa, depois, em agosto de 2020, candidatei-me uma segunda vez já com um novo portefólio.
(G.) - Que trabalhos levou a concurso? Fale-nos um pouco sobre a inspiração e o processo de criação dessas obras.
(A. M.) - Levei três trabalhos a concurso, todos eles diferentes mas dentro do género da ficção científica. O que foi constante nessas ilustrações foi a presença de uma narrativa que eu criei e escrevi para cada imagem, com exceção de uma delas, que foi baseada nas “Vinte Mil Léguas Submarinas” de Júlio Verne, o que me facilitou na criação e desenvolvimento da narrativa visual. Tive como propósito a criação de três cenários distintos, um no espaço, outro no fundo do mar e outro com várias personagens a reagir à mesma situação de forma diferente. Para todas estas imagens apliquei praticamente todo o processo de desenvolvimento de um projeto de ilustração, como falámos. A seleção dos trabalhos acabo por fazer por comparação com trabalhos anteriores. Quando fiz estas ilustrações, tentei contar uma história, mas apresentar diversidade. Aquilo que me apelava mais foi o que acabei por submeter.
(G.) - O que representa este prémio de Ilustrador do Futuro e que novos desafios surgem com o concurso?
(A. M.) - Eu já tinha concorrido num concurso de ilustração contemporânea portuguesa em 2019, quando regressei a Portugal, e ao vencer esse concurso ganhei alguma visibilidade. Mas vencer este prémio, Illustrators of the Future, é uma enorme honra, uma vez que foi atribuído por profissionais da indústria que eu acompanho e admiro há vários anos. É no mínimo um bom indicador de que estou no caminho certo e de que vale a pena continuar a trabalhar e investir nesta área. O prémio é, para mim, um reconhecimento do meu trabalho, algo que eu muito aprecio. No entanto, a área da ilustração continua a ser bastante competitiva e de elevada qualidade, e o desenho, a pintura, o design, a composição e a perspetiva continuam a ser competências difíceis de dominar. Os vencedores do ano passado voltam a concorrer este ano, 2021, no Golden Brush Award, com as ilustrações que fizemos para as histórias do volume. Esse será um outro desafio que me permitirá expandir os contactos.
(G.) – Fala que esse prémio é também um reconhecimento por parte dos profissionais da indústria. Que ilustradores nacionais e internacionais o inspiram?
(A. M.) - São demasiados para mencionar, mas a nível internacional diria James Gurney, Michael Whelan, Frank Frazetta, Donato Giancola, John Harris, Syd Mead, entre muitos outros. A nível nacional, gosto dos trabalhos do Ricardo Cabral, do Jorge Coelho, da Joana Afonso e do Jorge Jacinto. Para quem aprecia este género de arte ou semelhante, recomendo blogues que eu também acompanho, tais como o Gurney journey ou o Muddy Colors. De tempos a tempos encontro trabalhos online que me impressionam bastante, as ilustrações para as Histórias de H.P. Lovecraft de François Baranger, as ilustrações de Kilian Eng ou mesmo os trabalhos dos famosos Karl Kopinski, Katsuya Terada e Kim Jung Gi.
(G.) - Como vê a profissão de ilustrador em Portugal?
(A. M.) - Eu creio que é possível ser ilustrador em Portugal, mas é difícil. Há espaço para um ilustrador de ficção científica, mas talvez na arte de autor, embora leve mais tempo a ser divulgado, acabando por produzir os próprios livros. O mercado a nível internacional é muito mais extenso. O Jorge Coelho, por exemplo, faz ilustração para a Marvel. Uma coisa que nota é que há uma estética portuguesa que aprecio, mas que não é a que faço, a nível de desenho de linha, aguada de cor, geralmente em digital… é tudo o que não estou a fazer. Por isso digo, é possível, mas é difícil.
(G.) - A ilustração, como forma de expressão artística, pode ser um meio de exposição de questões sociais? Recordo que falávamos da ilustração de ficção científica que se interliga com a atualidade, as tecnologias, a exploração espacial.
(A. M.) -Eu julgo que sim, acho até que essas questões sociais podem ser enquadradas na área da ficção científica, mas são mais frequentemente observadas na área da ilustração editorial. O meu objetivo é criar ilustrações que desenvolvam uma resposta emocional positiva e inspiradora, que faça o observador voltar a essa imagem novamente. Acho que a ilustração como meio de exposição é algo perfeitamente válido e deve ser utilizado, mas eu iria até mais longe e aplicaria a ilustração como meio de sensibilização e alerta para temas mais abrangentes tais como as mudanças climáticas, o excesso de população, a sustentabilidade do planeta e o futuro da humanidade. Estes são temas, para mim, bastante apelativos e relevantes, os quais pretendo abordar em futuras ilustrações.
Texto de Ana Mendes
Fotografias da cortesia de André Mata
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