É mais uma manhã no Centro de Experimentação Artística da Moita. Há um silêncio no ar, cá fora, que acompanha o edifício ainda praticamente vazio. Por ali, o grupo que prepara o espetáculo Meio no Meio, dirigido por Victor Hugo Pontes, tem ensaiado, convivido, partilhado. O edifício guarda agora as suas histórias e, hoje, os objetos que cada um deixou ao longo das bancadas do auditório dão-nos conta de que há pessoas que pertencem àquele espaço. Chegam, entretanto, Yana e Alegria. Pouco depois, junta-se Rolaisa. Sabemos, desde logo, que é com Yana e Rolaisa que vamos conversar sobre este processo de três anos em que Meio no Meio esteve nas suas vidas. Até nos sentarmos no chão da sala de ensaios para conversar, enquanto Alegria ensaia no auditório ao lado, só conhecemos os seus rostos e sabemos um pouco sobre a sua história, através de uma pequena biografia que recebemos no dia anterior:
YANA SUSLOVETS, 26 ANOS, BARREIRO
Depois o meu pai imigrou para Portugal. Depois a minha mãe imigrou para Portugal. Depois eu imigrei para Portugal. Agora já sonho em português. Do dia mais feliz não me lembro, mas lembro-me do mais infeliz.
ROLAISA EMBALÓ, 23 ANOS, VALE DA AMOREIRA, MOITA
O amor... difícil explicar, não sei se tem explicação... O desprezo deixa-me irritada.
– O que é que te poderia realizar ainda mais?
– Eu diria que não sei.
Quando Meio no Meio começou, Yana tinha 23 anos e Rolaisa, 20. Ambas viviam na Margem Sul, mas não se conheciam. Rolaisa, que participa com frequência em atividades artísticas e culturais na Moita, foi convidada para ser mediadora do seu território neste projeto. Um dia, no Centro de Experimentação Artística, foi a um workshop de Mariana Tanger Barros, organizado pela BoCA, e lançou um desafio aos participantes: juntarem-se a si neste projeto com direção de Victor Hugo Pontes, coordenado pela Artemrede, e com formações dadas por profissionais de diversas áreas. Yana, que estava na Moita apenas para frequentar este workshop, aceitou.
“Eu sabia que ia haver formações em várias áreas, e havia algumas com as quais ainda não tinha tido muito contacto e gostava de ter. Depois, também estava lá associado o nome do Victor Hugo Pontes, de quem eu já conhecia o trabalho, e achei que podia ser uma coisa interessante para fazer, ainda para mais no Barreiro, que tem muito poucas coisas consistentes a acontecer. Devo ter sido das primeiras pessoas a inscreverem-se. Se eu não tivesse vindo a esse workshop e se a Rolaisa não tivesse estado lá, provavelmente eu não saberia que ia acontecer. Foi um mero acaso”, partilha Yana enquanto olha para Rolaisa.
Para integrar um dos quatro grupos do Meio no Meio – na Moita, no Barreiro, em Almada ou em Lisboa –, não era preciso ter formação artística. “Muito pelo contrário”, indica Rolaisa. Os mediadores tinham como função primordial recrutar pessoas que quisessem ter uma experiência artística em comunidade, sabendo a priori que o projeto iria durar três anos e que todas as formações seriam gratuitas, mas que era preciso ter compromisso. O requisito era pertencerem a uma das quatro localidades e terem entre 15 e 25 anos ou mais de 45. Tinham de estar meio no meio, nas fases da vida que trazem mais questões sobre quem somos. Para Rolaisa, não foi difícil convencer pessoas das diferentes gerações a participar. “Houve uma altura em que até éramos mais de 15, que era o número limite de inscrições.”
Em tempos pré-pandémicos, quando tudo começou, faziam formações em conjunto, a Moita com o Barreiro e Almada com Lisboa. No caso de Rolaisa (Moita) e Yana (Barreiro), começaram com a formação de teatro com Carina Silva, no espaço do Barreiro. Além de Carina, os formadores foram Catarina Pé-Curto, nas artes plásticas e em representação de Almada, Mário Ventura, no cinema e em representação da Moita, e Nuno Varela, na música dentro do hip-hop e em representação de Lisboa. Ao longo de todo o processo, a dança foi sendo a disciplina agregadora, o que permitiu um acompanhamento por parte de Victor Hugo Pontes ao longo deste período de formação. Iam havendo sessões de partilha, em que se encontravam todos os participantes, formadores, responsáveis pelo projeto nas câmaras municipais e a Artemrede. Nestes dois anos, nunca se perdeu o rasto ao que foi sendo feito.
Quem sou? De onde venho? Para onde vou?
Quando nos sentámos na sala de ensaios do Centro de Experimentação Artística da Moita, estavam a dias da estreia na Baixa da Banheira. Por esta altura, havia ainda o nervosismo natural de quem mostra um espetáculo ao público pela primeira vez, mas a distância necessária do período de formações para entender como se chegou até aqui. Para fazerem de si mesmos na peça final, foram trabalhando o olhar para si mesmos. “Os trabalhos que fazíamos nas formações eram muito biográficos, já tinham as questões de partida e uma ideia do futuro, passado, presente. O que fizemos com a Carina tinha que ver com a nossa história, com a nossa biografia”, conta Yana.
“O Varela foi dando bases do que era o hip-hop e depois pediu que a gente escrevesse umas rimas. Eu inicialmente dizia que não queria escrever, não sabia o que escrever, não era boa nisso. Ia ser só mediadora. Quando dei por mim, já tinha escrito uma rima, depois já estava a cantar, no Isto é PARTIS já estava a ser convidada para cantar”, diz, de seguida, Rolaisa. Nestas formações iam ganhando ferramentas e competências artísticas, sempre com o objetivo de desafiar os limites de cada um. Se no caso de Rolaisa o grande desafio foi escrever as suas rimas, para Yana foi enfrentar o teatro, área que a deixava insegura desde os tempos em que tinha Expressão Dramática no Conservatório “todas as quintas-feiras”.
Quando chegou o confinamento, Meio no Meio não parou. “O formador de cinema, o Mário, também lançou um desafio em que ele enviava um som para uma pessoa, e essa pessoa tinha de fazer uma imagem para o som que recebia, e essa imagem que a pessoa fez ia para uma outra que fazia um som dessa imagem. No fim, ele compilou tudo”, conta Rolaisa. Esse cuidado na partilha das histórias também aconteceu na formação de Artes Visuais, em que cada pessoa selecionava fotografias antigas suas e passava uma a alguém que tinha de a recriar. Para Yana, ouvir as histórias de vida dos companheiros de projeto foi o que mais a tocou em todo o processo: “Lembro-me de que na primeira semana era algo que tinha muito impacto, ouvir-nos uns aos outros.” “Muitas das coisas aconteceram-vos a vocês, ou a nós no geral, parecem coisas de um filme. Mas são histórias de vida que acontecem, e que às vezes as pessoas tendem a não pensar.”
Quando a residência artística começou, Joana Craveiro juntou-se ao grupo para recolher estas histórias que mais tarde estariam no guião da peça final. Neste grupo que compõe o espetáculo há, nas palavras de Yana, “pessoas mesmo muito diferentes”, por muito que “possam ter em comum o facto de serem afro-descendentes ou de viver na mesma cidade em Portugal”. “Isto aqui é mesmo meio no meio — de idades, de nacionalidades, de tudo. Temos um pouco de tudo e numa boa quantidade”, diz Rolaisa com a aprovação de Yana entre risos. Mas mesmo na diversidade, há pontos em comum: “temos pessoas mais novas que se calhar não têm muitas condições financeiras, mas se calhar isso também se encontra na pessoa que tem 45, ou já passou por aí de uma forma diferente”, comenta Yana. “Os mais novos no grupo são quase todos malta que não é daqui, então há sempre uma relação diferente com Portugal. Mas mesmo pegando nas histórias de pessoas mais velhas que temos no grupo, não havendo a questão de ser estrangeiro, existem outras coisas. A certa altura na vida delas não havia, por exemplo, cuecas, que é uma coisa que vai aparecer na peça como referência de uma das participantes. São tempos diferentes, mas há muito em comum.”
Nos momentos de partilha com Joana Craveiro, cada um partilhou até onde quis. No fundo, como acontece na vida: há sempre pessoas com mais à vontade para falar sobre si, e outras que se mantêm mais reservadas. No momento do espetáculo, assumem que é algo próximo da ficção. “Cada pessoa sabe o seu fundo; quão fundo quer ir. Tu sempre tens aquela consciência de que por mais que estejas a partilhar, sabes até onde tu queres partilhar. E por mais que saibas que a Joana [Craveiro] não vai pôr as coisas em bruto , nunca sabes o que é que ela pode vir a usar para escrever a peça. Às vezes também estás numa situação de ‘já entrei, estou numa partilha, agora tenho de dizer, já entrei num sítio onde precisamos de uma continuação”, diz Rolaisa a rir. Ainda assim, estão certas de que todos se revêem no texto e têm consciência de que é entre a ficção e a realidade que se encontram.
“Quem sou? De onde venho? Para onde vou?”, foram questões de partida que seguiram do início ao fim do projeto. E que talvez habitem, ainda hoje, algures no questionamento dos seus participantes – agora com mais respostas.
A momentos do final da nossa conversa, questionámos Rolaisa e Yana quanto ao impacto que este projeto estava a ter, até agora nas suas vidas. Para Rolaisa, que inicialmente não contava em ser mais do que mediadora, “foi ótimo fazer mais do que esperava e participar no espetáculo final trazendo toda a bagagem das formações”. Para Yana que, como Rolaisa, já estava de alguma forma ligada ao meio artístico, foi uma oportunidade de trabalhar num projeto muito diferente de grande parte daqueles em que já esteve pelo espaço que havia para experimentar e errar.
Pouco depois do fim da conversa, começava mais um ensaio. Às duas da tarde, iam chegando os restantes membros do projeto e, finalmente, Victor Hugo Pontes. Na sala em que Alegria ensaiava de manhã, juntaram-se todos para um aquecimento ao som de The XX e Rosalía. A cumplicidade com que juntos se iam movimentando pelo palco em lona provava o que Yana e Rolaisa haviam dito de manhã: este não é apenas um projeto artístico que terminará na última apresentação.
Um projeto de onde todos saem diferentes – até os formadores
Uma semana depois da estreia do espetáculo, encontrámos Nuno Varela através de uma chamada telefónica. “Ainda bem que só falámos hoje, depois da estreia”, disse desde logo, já que a entrevista teve de ser adiada. “Parece que foi um sinal e que tudo se juntou no sentido do que a gente quer que é ter uma melhor análise deste projeto. Agora a minha análise é completamente diferente da ideia que teria quando comecei a falar contigo, porque o final do espetáculo deixou-me bastante emocionado e contente por ver que o que aconteceu nas formações foi ali integrado. Existe toda a influência e impacto das formações no resultado final — digo-o depois de ter visto.”
A conversa com Nuno Varela, que no meio do hip-hop é conhecido apenas por “Varela”, foi uma espécie de zoom-in em alguns dos pontos em que Yana e Rolaisa tinham tocado quando nos encontrámos na Moita. Varela recorda-se de que, no início, o rap podia não parecer a escolha mais óbvia já que é “um estilo de música muito específico”. “Não estamos a falar de canto, nem de rock, nem de fado, estamos a falar de um estilo muito consumido, mas ao mesmo tempo muito discriminado e que cria muitos preconceitos para quem não o conhece. E nestas formações houve muito isso: começaram com “não sei o que isto é” ou “tenho ideia do que isto é” e no final a mentalidade deles era “ah afinal isto é completamente diferente daquilo que eu pensava”. Isso fez com que andassem por zonas que não eram zonas de conforto deles, e eu acho que isso pode ter ajudado no espetáculo, porque o espetáculo também os põe fora das suas zonas de conforto.”
Para integrar os participantes das diferentes gerações, tentou criar pontos de ligação: “com as pessoas mais velhas do projeto eu peguei muito no facto de o hip-hop estar ativo desde 72 e peguei na cena de teres muitas figuras no hip-hop hoje em dia que têm a mesma idade que elas, entre os 60 e os 70 anos, e isso foi importante para elas verem que não é só uma coisa de miúdos”. Enquanto formador, acredita que foi uma experiência enriquecedora e uma aprendizagem para futuras formações, nas quais poderá tentar ter uma perspetiva ainda mais interseccional: “Vou tentar encontrar mais estes elementos de ligação que existem no hip-hop, seja com um indiano, um chinês, uma pessoa mais velha, mais nova, da comunidade LGBT; há muitas coisas que posso ligar aqui para que as pessoas se sintam enquadradas e que percebam que isto também é a casa delas.”
Se antes o hip-hop podia não ser a escolha mais óbvia para um núcleo de formações artísticas, Varela acredita que o facto de essa opção hoje ser feita naturalmente está diretamente relacionada com o facto de “esta cultura [do Hip-Hop] estar em constante movimento”. “Para mim este projeto foi bastante natural porque estamos num movimento que não está parado. As minhas formações começam por lhes perguntar o que é o Hip-Hop e uma ou duas pessoas conseguem explicar-me ou estar próximo daquilo que é a verdade. O resto voa numa resposta que está longe da realidade. O meu trabalho é abrir hipóteses.”
O resultado final deste projeto que abriu portas no (auto)conhecimento, e cuja banda sonora foi composta por Throes+The Shine, é apresentado novamente nos dias 2 e 3 de julho, no Barreiro.