Hoje publicamos a entrevista do Vasco Durão, a nossa autoridade local no Alentejo, à artista Joana Villaverde. Descobre tudo aqui ;-)
Fazer arte é fazer política
Porquê vir para aqui para o Alentejo?
A mudança foi só há 4 anos. Em 2000, andávamos à procura de casa para comprar em Lisboa, porque queria deixar alguma coisa às minhas filhas para o futuro. Era tudo um balúrdio e de repente a Patrícia viu no Expresso uma casa em Avis por 6000 contos. Ainda eram contos. E eu disse: vamos lá ver onde é que isso fica. Ainda perguntei onde é que era a praia mais perto e a resposta foi “a Costa da Caparica”. Quando viemos ver a casa, entrámos pelo quintal e ficámos apaixonadas. Conseguimos baixar para 4000 e comprámos.
Então foi um mero acaso?
Foi mais uma loucura e uma paixão. Uma coisa romântica. Nunca pensámos nisto como a casa da vida. Talvez da velhice. Só decidimos mudar quando começou a ficar difícil estar em Lisboa. Aqui era melhor para fazer o meu trabalho e a Câmara cedeu-me um espaço junto à muralha do convento para trabalhar. Em contrapartida, eu tenho de dinamizar o espaço. E quero fazê-lo, porque, depois da exposição no ano passado, percebi a relação de estranheza das pessoas com a arte contemporânea. O que me interessa fazer ali é desmistificar essa coisa. É para toda a gente. Mas o principal objectivo é ter ali um espaço para trabalhar e chamar outros artistas, sobretudo para conversar com as pessoas de igual para igual. Eu tive de dizer muitas vezes durante a exposição que também não percebia nada de arte. E não percebo, faço.
Quando é que decidiram mudar-se definitivamente?
A mudança foi porque tive de largar o atelier que tinha na Fábrica Braço de Prata e fiquei sem sítio para trabalhar. Saímos de Lisboa em 2012 e eu e a Patrícia casámo-nos nesse mesmo ano, já em Avis.
Não havia nenhuma ligação particular com o Alentejo?
Sinto-me uma alfacinha maluca que se mudou não sabe muito bem porquê. Mas sempre tive uma relação emocional e política com o Alentejo. Eu acho que os artistas sempre foram politizados. Fazer arte já de si é um acto de resistência. Não é fácil decidir-se que é isto que se faz da vida. Portanto, fazer arte é fazer política. Está tudo ligado. O que é estranho é ter havido períodos em que se disse que arte não era política. A minha relação com a política é por amor. Por estar atenta ao que se passa à volta.
Porquê o tema da Palestina, que resultou na tua primeira grande exposição em Avis?
Começou há muitos anos em Nova Iorque, onde há uma grande diáspora palestiniana. Vi lá algumas coisas e aquilo começou a interessar-me. Depois li imensa coisa, mas como não queria só teoria, fui para lá fazer investigação, como fazem os antropólogos. Fui ver e falar com pessoas. O que é isso de fazer arte sobre a Palestina e não ir lá? Mostrei duas vezes o trabalho. Primeiro aqui em Avis, dentro de uma cavalariça, porque queria fazer a relação Alentejo-Palestina, e depois em Lisboa, na Appleton Square.
Qual é a relação Alentejo-Palestina?
A terra é parecida. A resistência alentejana. A resistência palestiniana. A resistência do artista. Havia uma relação qualquer. É só emocional, mas se algum teórico for estudar isto cientificamente, talvez haja algum sentido racional. Uma peça muito importante da exposição é um carro. Um Peugeot 404 que já estava no sítio onde eu ia expor. Era uma presença muito forte. Antes de montar a exposição fui à Palestina uma segunda vez. E não é que em Belém vi um Peugeot 404 igualzinho ao que estava em Avis? Liguei de lá para o Presidente da Câmara de Avis a dizer: eu preciso desse carro; ele tem de fazer parte do meu trabalho. Então, enfiei-o dentro da cavalariça, cheio de pás lá dentro, todas pintadas com personagens que representam a forma como as pessoas são tratadas: como lixo.
Como reagiram os avisenses?
Uns acharam muito impressionante. Outros fizeram paralelos: lá é como aqui. Houve um senhor que começou a falar da fábrica, que já não há sindicatos e que as pessoas têm medo de falar em todo o lado. Outros que tinham sido empregados dos donos da cavalariça e que tinham viajado dentro do carro. Uma senhora tinha um namorado sírio e começou a falar árabe. Eu só abri aquilo aos fins de semana e era eu que lá estava, pelo que tive toda a relação com os visitantes. Houve um miúdo que atirou a folha de sala para dentro de um alçapão onde eu tinha posto a projecção de uma animação. Quando estava a sair, eu pedi-lhe para ele tirar o papel. Para veres a importância que há em fazer qualquer coisa aqui, o miúdo teve medo de tirar o papel. Nem foi o confronto, mas sim o medo do que estava lá dentro. O curioso é que no dia seguinte apareceu lá com a mãe a mostrar a exposição.
Já fizeste algo mais dedicado ao Alentejo? A Avis?
Já pensei nisso, mas agora estou a fazer uma coisa que não tem nada a ver. Tem a ver com o mar, o Atlântico. Lá vou eu num cargueiro. Eu tenho de viver.
É o meio que define a técnica que vais utilizar?
Essencialmente pinto, mas o sítio onde mostro é que define o trabalho final. Com a Palestina eu queria que aquele espaço, a cavalariça, fosse um pouco a Palestina. O mar eu não sei de todo como vai ser. E eu mostro tudo, mesmo o que acho que está péssimo, porque faz tudo parte do processo. Os erros estão cá todos. Eu estou lá escarrapachada. E vou descobrindo com os erros pelo caminho.
Porquê o nome Animal’s Nightmare?
Porque a exposição foi inspirada pelo livro Nothing to lose but your life da autora palestiniana Suad Amiry, onde ela conta a história de se vestir de homem para ir clandestinamente trabalhar para Israel. Há um capítulo chamado “Animal’s Nightmare” em que ela fala sobre os bichos que vão de encontro ao muro e questiona-se sobre o que vai acontecer à biodiversidade. Eu mostrei isso na exposição. Bichos em forma de pessoas e pessoas em forma de bichos a irem de encontro ao muro. Não houve nada que não tenha sido pensado. Não foi pensado a priori, mas sim quando estou a montar. E sobretudo pela dignidade da Palestina. É uma terra que se vê muito mal e foi essa a inspiração. Não foi nenhum gesto espalhafatoso de chamar a atenção para aquilo. Não era panfletário. Era para as pessoas irem para casa pensar no assunto. Eu chamo trabalho ao momento em que mostro, para não dar hipótese nenhuma ao espectador de ver de outra forma que não a que eu quero. E normalmente tento criar um sítio para estar, ficar e sentir o ambiente todo.
Preocupa-te a crítica?
Preocupa-me mais que a crítica de arte, enquanto disciplina importantíssima que é, esteja a desparecer. Para mim, como sou de alguma forma uma outsider no meio artístico, é-me muito mais fácil não ligar tanto à crítica. O que vier é sempre bom e prefiro uma crítica negativa à ausência de crítica.
Para fechar com os pontos nos is, o que é que aprendeste sobre a questão israelo-palestiniana?
Aprendi que naquele lugar não há nenhum conflito. Há, sim, uma força ocupante e um povo ocupado. Aprendi que Israel é um estado colonialista, como foi Portugal até ao 25 de Abril, e que a Palestina ainda existe, não foi dizimada como foram os índios na América, porque na Palestina há resistência. Tive, e tenho, a certeza de que o mundo é muito pequeno e que os seres humanos não têm todos os mesmos direitos. Infelizmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrita em 1948, não serve a todos.
Entrevista por Vasco Durão
Ilustração por David Penela