Caso não se recordem o prémio Nobel da Paz foi este ano atribuído a dois jornalistas: Maria Ressa e Dmitry Muratov. Maria Ressa é uma filipino-americana que ajudou a fundar o Rappler, um website jornalístico que começou como uma página no Facebook e que tinha por objetivo lutar pela democracia e liberdade de informação nas Filipinas, tendo antes trabalhado durante anos como repórter da CNN no sudoeste asiático; e Dmitry Muratov é um jornalista russo que, em 1993, fundou e dirigiu o jornal Novaya Gazeta, cujo objetivo era criar uma publicação que fosse "uma fonte honesta, independente e rica" para os cidadãos da Rússia. A missão do jornal é conduzir investigações aprofundadas sobre questões de direitos humanos, corrupção e abuso de poder. Em 1993, Mikhail Gorbachev usou o dinheiro de seu Prémio Nobel da Paz de 1990 para ajudar a Novaya Gazeta a comprar seus primeiros computadores. Em ambos os casos coexistem três factores de sucesso: vontade de fazer jornalismo independente, capacidade de investigação séria e bom aproveitamento da tecnologia para que os conteúdos cheguem a mais pessoas.
Desde 1935, quando Carl von Ossietzky ganhou, em 1935, o Nobel da Paz, que o galardão não era atribuído a jornalistas. Ossietzky acabou por nunca receber o seu prémio porque, aquando da atribuição, já era prisioneiro num campo de concentração nazi. Muito tempo passou desde essa altura e todos sabemos que o número de jornalistas assassinados ou perseguidos nas últimas décadas, em todo o mundo, continua a ser uma realidade.
É curioso notar que, hoje em dia, a mesma tecnologia que fornece os meios para o crescimento de notícias falsas, também pode ser aproveitada para fazer chegar o jornalismo de investigação, que descobre factos e denuncia crimes, a mais gente. Distinguir o que é falso do que é verdadeiro é um desafio relevante do jornalismo contemporâneo e a tecnologia pode e deve ser usada como acelerador da possibilidade de investigação e de difusão das notícias.
Na realidade, no mundo contemporâneo, torna-se por vezes difícil saber quais os factos que importam e que podem ajudar a combater a desinformação. Sem investigação dos factos não podemos saber o que é verdade - e é isso que o Nobel da Paz deste ano premiou, o esforço de dois jornalistas, em geografias tão diferentes, em mostrar os efeitos da corrupção e das ameaças na ocultação da verdade. Sem verdade não pode ser criada confiança com os leitores e sem confiança toda a comunicação é destruída. Infelizmente, se a tecnologia nos permite facilitar a investigação e a difusão de notícias, também apresenta vulnerabilidades que as grandes plataformas internacionais das redes sociais sabem existir, mas não fazem nada para travar. A realidade, nos últimos anos, tem sido alterada pelas redes sociais globais que, sob a alegação de que dão voz a toda a gente, tanto facilitam a difusão de mentiras como de verdades. Em última análise, a falta de vontade das plataformas tecnológicas em exercer um controle do que é verdadeiro ou falso proporciona uma visão distorcida da realidade. Num artigo recente do Nieman Lab, uma organização que se debruça sobre o jornalismo hoje em dia, Maria Ressa sublinha que os jornalistas devem utilizar todas as ferramentas à sua disposição para tentarem reconstruir e manter uma realidade partilhada que combata as falsidades e ameaças globais. Vai mais longe ao recomendar que a tecnologia deve ser usada como um acelerador para procurar a verdade num mundo onde essa mesma tecnologia é frequentemente utilizada para propagar a desinformação. “Temos que saber combater a tecnologia com a própria tecnologia, sabermos mobilizar comunidades que possam agir, dinamizarmos organizações que possam fazer a verificação de factos e a denúncia de acções de desinformação online”. Aquilo que já podemos observar, e que veremos certamente crescer nos próximos tempos, é assistir ao desenvolvimento de organizações noticiosas e coligações de jornalistas de diversos países que asseguram que os factos são divulgados de forma rigorosa, combatendo a desinformação. Se olharmos para o que aconteceu este ano em relação às revelações sobre a forma de funcionamento do Facebook e a maneira como impacta na democracia é um bom sinal. Cada vez mais a colaboração global, a capacidade de investigação jornalística e a boa utilização da tecnologia proporcionam revelações - como aconteceu com a descoberta da forma como a tecnologia Pegasus era utilizada para vigiar o trabalho de jornalistas e meios de comunicação, até às revelações dos Pandora Papers que expuseram métodos de ocultação de financiamentos e fortunas. O trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação sobre os Pandora Papers, que descobriu, descodificou e tornou acessível uma base de dados oculta sobre esquemas financeiros, envolveu 150 entidades jornalísticas com recursos tecnológicos partilhados, plataforma que permite agora a centenas de repórteres em todo o mundo analisarem, de forma segura, documentos sensíveis. O desafio é conseguir que hoje em dia os jornalistas e as empresas de comunicação detenham a tecnologia e os meios para aprofundar investigações que permitam voltar a ganhar a confiança do público na informação, separando o trigo do joio, o mesmo é dizer, separando a verdade das fake news.
-Sobre Manuel Falcão-
Manuel Falcão iniciou-se no jornalismo pela fotografia e, ao longo de duas décadas, desenvolveu a sua carreira como repórter e redactor. Foi fundador do Blitz e de O Independente, trabalhou nas Agências Notícias de Portugal e Lusa, no Expresso, no Se7e e na Visão, entre outros. Realizou vários programas de rádio. Dirigiu as áreas de produção de TV e de novas edições da Valentim de Carvalho e foi diretor do canal 2 da RTP. Foi também Presidente do Instituto Português de Cinema, Diretor do Centro de Espectáculos do CCB e administrador da EGEAC. Durante 15 anos, foi Director-Geral da agência de meios Nova Expressão. Em 2013 fundou a editora Amieira Livros, dedicada à fotografia e, em 2020, criou a SF Media onde desenvolve os seus projetos pessoais.