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Em prol de masculinidades mais conscientes

Masculinidade é um conjunto de atributos, comportamentos e papéis associados a homens. Se pesquisarmos a…

Texto de Patrícia Nogueira

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Masculinidade é um conjunto de atributos, comportamentos e papéis associados a homens. Se pesquisarmos a palavra “masculinidade” no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, esta vem, ainda que se trate de um nome feminino, associada a “qualidade de masculino, de varão”; “caráter másculo”; “virilidade”. Se pesquisarmos palavras relacionadas com “masculinidade”, salta-nos “vigor”, “força”, “energia”, “poder”, “potência”, “firmeza”, resistência”, “robustez”, “capacidade” ou “autoridade”. É fácil associarmos estas definições a “masculinidade hegemónica” e a palavras como “patriarcado”, em que os homens predominam em funções de liderança política, autoridade moral ou privilégio social.

Ao procurarmos o que significa masculinidade hegemónica, esta é definida como a prática que legitima a posição dominante dos homens na sociedade, subordinando as mulheres e outras formas de ser “um homem”, propondo explicar porque é que este mantém papéis sociais dominantes ao longo da história. Raewyn Connell, socióloga australiana e conhecida pelo seu trabalho em estudos sobre masculinidade, entendeu este conceito como uma forma de masculinidade determinada por um contexto histórico e social que legitima relações de géneros desiguais entre homens e mulheres, entre masculinidade, feminilidade — e ainda entre masculinidades, isto porque, para Connell, a masculinidade hegemónica está assente em quatro masculinidades não hegemónicas: primeiro, as masculinidades cúmplices, que apesar de não incorporarem a masculinidade hegemónica compreendem alguns dos benefícios das desigualdades de género; segundo, as masculinidades subordinadas, que são desviantes da masculinidade hegemónica, como os homens caracterizados como “afeminados”, ou seja, com atributos que não aqueles que definem masculinidade socialmente; terceiro, a masculinidade marginalizada que é discriminada devido a fatores como relações de género, classe, raça, etnia e idade; e a última, masculinidades de protesto, que são construídas como “hipermasculinidades” e formam-se como uma reação a posições sociais carentes de poder económico e político. No entanto, estes conceitos são, para Connell, mais abstratos do que descritivos, variando ao longo do tempo, da cultura e do indivíduo.

Em 1983, Gonzaguinha, músico brasileiro, dizia na sua música que “Um homem também chora”, escrevendo que este também:

deseja colo, palavras amenas| Precisa de carinho, precisa de ternura| Precisa de um abraço da própria candura| Guerreiros são pessoas tão fortes, tão frágeis| Guerreiros são meninos no fundo do peito| Precisam de um descanso, precisam de um remanso […] O homem se humilha se castram seus sonhos| Seu sonho é sua vida e vida é o trabalho| E sem o seu trabalho, o homem não tem honra| E sem a sua honra, se morre, se mata.

Em 2021, o também músico brasileiro, Tiago Iorc, lançou a música intitulada “Masculinidade”, na qual reforça “cuida irmão, do teu emocional”, escrevendo:

Aprendi que era errado ser sensível /Quanta inocência / Eu tive medo do meu feminino/ Eu me tornei um homem reprimido/ Meio sem alma, meio adormecido/ Um ato fálico, autodestrutivo/ No auge e me sentindo deprimido/ Me vi traindo por ter me traído/ Eu fui covarde, eu fui abusivo

Contando assim a sua história que, como todas as histórias, têm influências e vêm de um lugar:

Meu pai foi minha referência de homem forte| Trabalhador, generoso, decidido|Mas ele sempre teve dificuldade de falar|O pai do meu pai também não soube se expressar| Por esses homens é preciso chorar| E perdoar…|Essa dor guardada| Até agora, enquanto escrevo| Me assombra se o que eu digo é o que eu devo| Um eco de medo.

Também em 2021, Nelson Marques lançou o livro Os homens também choram – histórias da nova masculinidade, mostrando histórias de homens “cansados do velho guião da masculinidade tradicional, ao qual, hoje, opõem formas mais diversas e inclusivas”, homens que estão lado a lado com as mulheres na luta pela igualdade e combate à violência de género, e apelam “de modo contundente à revolução da masculinidade, porventura a mais importante do século XXI”, pode ler-se na apresentação do livro.

Durante muitos anos, a construção da identidade masculina era estereotipada. Por exemplo, quem usasse saia, como Mark Bryan, homem hétero, casado e pai de três, que usa saia e sapato de salto alto no seu dia a dia porque simplesmente gosta, ou Rafael Esteves Martins que entrou na Assembleia da República de saia, era considerado “menos homem”.

No início desta reportagem, falámos com homens, entre os 20 e os 30 anos, que referiram que, durante a sua adolescência tiveram poucas ou nenhumas conversas com os seus amigos sobre os seus sentimentos, sobre sexualidade ou sobre outros temas importantes para si, referindo ainda que, apenas começaram a ter conversas mais “profundas” com os seus amigos à medida que foram crescendo, no entanto não é sobre tudo, pois quando toca no tema “sexualidade” o “à vontade” para conversar deixa de existir. Um dos entrevistados, referiu que, apesar de na sua adolescência falar com os seus amigos sobre as descobertas que ambos faziam, “as raparigas têm mais facilidade, os homens têm um certo orgulho”, afirma. No entanto, todos os entrevistados disseram saber que, por mais que já sejam adultos, muitos dos amigos não se sentem confortáveis para falar de certos assuntos, independentemente da idade. O que leva a que os homens não conversem? Porque é que sensibilidade é vista como antónimo de masculinidade?

Desde cedo que a frase “os homens não choram” ecoa em casa, na escola e nos círculos de amigos. Desde sempre que os filmes, na sua generalidade, nos mostram um homem com as características masculinas acompanhadas de virilidade, que também não choram. O galã é apresentado como um homem dentro de certos padrões de beleza, que não aparece tendo as conversas como as mulheres têm, seja sobre sexualidade, maternidade, relações amorosas ou trabalho. A sexualidade é tabu. Na cozinha, grande parte dos chefs são homens, mas quando chega ao lar, saber cozinhar ainda é encarado com surpresa e uma ajuda à mulher. Olhando para dados relativos a suicídio, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), entre 2007 e 2014, os homens apresentam valores mais elevados no que diz respeito ao risco de tentativas de suicídio. No período de tempo analisado, a percentagem de suicídio nos homens cresceu 21,8 %, passando de um total de 11,9 para 14,5 suicídios, em comparação com as mulheres cujo
aumento foi de 10,3 %, crescendo de 3,9 para 4,3 suicídios. Em média, o suicídio ocorre 3,75 vezes mais frequentemente entre homens do que entre mulheres. Em 2019, a taxa de suicídios nos homens foi de 15,2 % e nas mulheres de 4,4 %.

Há homens que estão a mudar esta construção de masculinidade, traçando novas masculinidades através de círculos de homens. Se no passado era comum as pessoas reunirem-se à volta de uma fogueira para partilhar histórias, resolver problemas, receber conselhos e aprender, atualmente existem homens que se juntam, na natureza, num espaço seguro, para partilhar e fazer o que durante tanto tempo não lhes foi associado: conversar sobre o que sentem, para uma masculinidade mais consciente.

Conversar para desconstruir e traçar novos rumos

Encontrar apoio, falar sobre intimidades, frustrações e expor dúvidas, é isto que acontece nos círculos de homens. Durante muitos anos, a masculinidade comprometeu-se com um modelo hegemónico que pedia a muitos homens aquilo que lhe deixava de servir. Por isso, quem deixou de se enquadrar nesses moldes procurou outros caminhos. Conversámos com esses mesmos homens que veem mudança no ato da partilha, alguns facilitadores de círculos de homens, outros participantes, mas todos conscientes de que é no falar que está a evolução.

Luís Paulo ou Akshar tem 31 anos, é natural de Moçambique e trabalha com grupos de meditação desde 2014. Na altura, reparou que a maior parte dos participantes eram mulheres, como se existisse menos interesse ou predisposição por parte dos homens, uma falta de autoconhecimento e autocuidado. Começou a questionar-se sobre o porquê de os homens não procurarem este autocuidado, que, no seu ponto de vista, “diz respeito a toda a humanidade e não é uma questão de género”. Na altura, convidou alguns amigos e conhecidos e foi assim que começou. As sessões foram acontecendo cada vez com mais frequência, e hoje facilita círculos de homens também online, uma vez que está a viver no Brasil. No entanto, Akshar reforça que uma das coisas que o levou a iniciar estes círculos de homens foi a necessidade de encontrar um espaço onde pudesse ser ele, que até então só encontrava junto de mulheres, depositando assim esperança na criação de uma atmosfera onde os homens também pudessem mostrar afeto.

O que acontece nas rodas de homens é, nada mais, do que partilha sobre aquilo que, no dia a dia, estes ainda não se sentem à vontade para mostrar: “É uma roda de conversa onde somos nós que escolhemos o tema, sempre um tema diferente e também um orador diferente, porque a ideia do círculo é que não haja uma reação hierárquica, mas que todos possam passar a tocha uns aos outros. Por exemplo, eu abordo um tema que domino e levo-o em forma de apresentação, para criar reflexão, não quero que tenham todas as respostas. Mas há homens que se interessam mais pela paternidade porque estão nessa fase da vida, sensualidade ou sexualidade consciente, relacionamentos conscientes, propósito e missão de vida, e são vários temas que vão rodando. Eu sempre facilito as minhas conversas com meditação, técnicas de consciência, dou exercícios, mas há quem traga música, por exemplo. As duas vezes em que trouxemos o tema da parentalidade foi porque querem ser pais melhores do que os pais que tiveram, no que diz respeito ao contacto emocional e afetivo com os filhos, então fazemos exercícios sobre isso.”

Círculo de homens moderado por Akshar que também tem um podcast sobre o tema.

Mas quem são estes homens e que medos, crenças enraizadas, trazem consigo? Akshar diz que os participantes têm entre 18 e 50 e muitos anos. São homens que têm uma predisposição um pouco diferente do padrão da ideia concebida do que é a masculinidade, que, conta Akshar, já se questionam sobre este tipo de assuntos: “São homens que, apesar de terem vivido muito tempo neste paradigma, já questionaram aquilo em que vivem. Todos nós estamos em desconstrução, não quer dizer que quem participa está resolvido, pelo contrário, estamos a tentar resolver um pouco a cada dia, mas há uma abertura por parte destes homens que, sem ela e sem vontade, ninguém muda.” Sobre o que cada um traz para estas conversas, o facilitador conta que tem descoberto que a maior parte dos homens relata o mesmo: “Têm várias coisas que sentem, pensam que são os únicos, sentem-se isolados, estranhos, diferentes, e não falam sobre isso para não parecerem os únicos estranhos. Muitos homens não se permitem muitas coisas porque aprenderam que os homens não podem chorar, expressar os seus sentimentos, não podem ser muito emotivos, não podem ser muito carinhosos ou cuidadosos, então muitos homens deixam de fazer o que realmente querem fazer, porque são homens, ou acabam fazendo coisas que não querem pelo mesmo motivo.”

“Quem participa nestes círculos não é melhor, nem pior”, salienta Akshar, “há preconceitos, estereótipos, não estamos ilesos disso, inclusive nós que criamos os círculos temos preconceitos, talvez a diferença é que admitimos, queremos transformar alguns hábitos e crenças. Claro que requer coragem entrar num círculo de conversas destas, porque há preconceitos próprios. Há quem esteja de fora e não entenda, inclusive já fiz o convite a algumas pessoas e dizem que não entendem porque é que um grupo de homens se vai sentar e conversar sobre sentimentos e fazer ioga juntos, falam de uma forma maliciosa. Então, quase todo o homem que aparece no círculo precisa primeiro de ultrapassar barreiras próprias, barreiras que vêm de fora e importarem-se menos com isso, e não é fácil, pois temos uma necessidade muito forte de validação social, de pertença. Os homens têm medo, muito medo de várias coisas, e de entre elas é não serem considerados homens suficientes de perderem o estatuto da masculinidade, o que parece um pouco antagónico. Mas há um certo receio, porque embora o grupo seja de masculinidade consciente, o facto de alguns homens terem de admitir que ainda têm de aprender e não sabem tudo, e talvez a forma como têm agido não seja a melhor para eles e para os outros, é algo que dói e causa resistência.”

João Carqueijó, natural de Esposende, também facilita círculos de homens e, por outro lado, diz que os homens que chegam aos seus eventos vêm com desconfiança, através das mulheres, estão numa fase de mudança e querem validar o seu processo.

João conta que, tal como aconteceu com Akshar, a sua procura por comunicação veio da inexistência de comunicação no seu grupo de amigos. Cresceu com o mesmo grupo de amigos, maioritariamente homens, e foi percebendo que, apesar de serem “unha com carne”, havia um mundo que não era falado, que ninguém se atrevia dizer: “problemas em casa, problemas amorosos, e outros problemas mais íntimos”. Refugiavam-se no álcool, no consumo de drogas e lidavam com as coisas sem nunca tocar verdadeiramente nelas. “Enquanto no início o elefante era fácil de não ver, com o tempo o elefante tornou-se tão grande que era insustentável”. Por volta dos vinte e seis anos, afastou-se e tomou um rumo diferente, fazendo-o perceber que aquela era a realidade da maior parte dos homens: “encontram-se, mas não se conhecem”. Na altura, foi a um círculo de homens em Vila do Conde, e viu homens a partilhar a sua intimidade e os seus problemas de uma forma que o fascinou. Foi, assim, cultivando a ideia de criar algo do género.

O jovem de Esposende costuma organizar retiros onde aborda a sexualidade no masculino, “mais na ideia de através da partilha deixar fluir a conversa, sem que tenha um tema específico, por muito aleatório que possa ser, queremos ver onde vamos parar”. É um trabalho longo, e João coloca os participantes em determinadas situações que lhes permitam fazer uma auto-observação e entenderem o que realmente incomoda, para que coloquem nomes nas necessidades e nos sentimentos e assim possam expressá-los: “coloco as pessoas em situações extremas, num desafio físico intenso ou simplesmente meditar em reflexão”.

O problema, conta João, é sempre a comunicação, ou falta dela, por pensarem que é um sinal de fraqueza. “Este trabalho com homens tem sofrido muita reflexão porque esta questão da comunicação ultrapassa o homem como género, está muito entranhada na cultura humana ocidental, na sociedade industrializada, porque estes exemplos de comunicação não vemos noutras sociedades que não vivem este modelo capitalista. Nós não somos educados, de todo, a partilhar as nossas verdadeiras necessidades e fraquezas, e isso não está certo, porque se não o fazemos com os outros, também não o conseguimos fazer connosco. É comum os homens que aqui chegam dizerem que não sabem o que querem e terem dificuldade em dar nome às coisas. Não dizem que precisam de carinho, porque têm medo de serem julgados ou avaliados. Vamos crescendo com medo de que as nossas necessidades pareçam patetas. Vamos perdendo a capacidade de dar nome ao que necessitamos.”

Marcelo Oliveira — que também já facilitou retiros com João Carqueijó — tem 33 anos e começou a facilitar retiros em 2017. No entanto, Marcelo foca-se na “intimidade consciente”, abordando a “energia sexual”. Por volta dos 18 anos, conta, começou a questionar o sistema em que estava inserido, num modelo, não só de masculinidade, mas também de mundo, que não lhe servia. Recorda, antes de começar a facilitar estes círculos, um episódio que o marcou e lhe mostrou o poder de trabalhar a sua sexualidade: “Recordo a primeira vez que experienciei um exercício de troca de colo, tinha uns 22 anos, e estava muito fresco. Fiz um exercício de colo com uma mulher mais velha do que a minha mãe, conheci-a nesse dia, e quando acabámos a prática, olhei para ela e senti uma proximidade tão grande que ultrapassava todos os conceitos que tinha sobre sexualidade e a nossa energia. O sexo está na base de tudo!”.

“Quando descobri a magia sexual, percebi que este era o problema do mundo, um problema que criamos inconscientemente.” Marcelo diz que as sessões dependem dos homens presentes, mas que, no geral, aborda como funcionam os genitais do homem, exercícios de respiração, abraços, o toque, explora os sentidos, controlo da energia sexual e o seu uso consciente e a parte das partilhas é transversal a todas as sessões. A partilha, explica Marcelo, é muito importante, pois o homem foi incutido a não falar, a não partilhar, a não expor fragilidades, por isso o facilitador apela a todo o tido de partilhas, desde coisas mais íntimas a coisas que aconteceram em criança. “Já apareceram jovens nos meus círculos, inclusive num deles tive cerca de vinte, e coloquei-os a ouvir pontos de vista diferentes e percursos de vida também diferentes da parte dos homens mais velhos. Porque é um assunto que ninguém fala e se queremos desconstruir preconceitos, aquela coisa de “o homem não chora”, temos de falar, temos de eliminar todos esses preconceitos, porque tudo o que é íntimo está no saco da sexualidade”.

A masculinidade está, de forma intrínseca, associada à sexualidade. Akshar diz que aprendemos desde cedo que um homem, só é homem, se estiver com o maior número de mulheres, se quiser sempre fazer sexo, por isso, torna-se difícil dissociar estes dois nomes. Apesar de existir informação sobre o que é orientação sexual, sexo e género, Akshar explica que a visão hegemónica da sociedade continua a confundir os termos: “Essa ideia de os homens terem de provar a masculinidade o tempo todo, também tem muito que ver com a sua sexualidade e orientação sexual. A questão da virilidade, em que o homem tenta ser sempre sexualmente ativo, estar disposto, e nunca falhar, ou, por exemplo, a disfunção sexual que é um tabu gigantesco… O sistema não é justo, não quer dizer que só as mulheres ou só os homens sofram, mas muitos homens sofrem (estas questões) em silêncio.”

Mário JDS Santos, apresenta-se como pai feminista, é ativista pelos direitos humanos, sociólogo e doula, o único em Portugal. Também já facilitou círculos de homens – ainda que com poucas pessoas – para falar sobre parentalidade. Aponta como causa da pouca participação a estranheza que o conceito de círculo ainda causa aos homens, isto porque a própria socialização infantil das mulheres é feita através de círculos, enquanto os homens passam uma vida inteira sem estarem numa posição em que partilham coisas sobre si.

David tem 47 anos e nunca tinha ouvido falar de círculos de homens até ao dia em que o João e o Marcelo decidiram fazer um retiro na sua quinta. Na altura, confessa, foi um pouco estranho estar num grupo de homens e partilhar coisas que não partilha sequer com os seus amigos. “Apesar de ser estranho no início, quando havia partilhas, era muito rico, ajudava a perceber o nosso ponto de vista sobre determinados assuntos, sobre sexualidade, como devemos estar perante uma mulher, fazemos ioga, exercícios, e tudo isso nos ajuda. Mas, acima de tudo, a partilha abre-nos para conceitos, pensamentos e formas de ver as coisas. O trabalho começa a partir daí, não é um retiro que nos vai transformar, mas sim espicaçar”, conta, lembrando ainda que há uns anos as pessoas podiam falar sobre estas coisas e comentar de forma mais pejorativa, mas, hoje em dia, acredita, o homem está a tomar mais consciência, no geral e a aceitar mais este tipo de coisas.

O sociólogo, que entretanto deixou de facilitar estes círculos, sabe a importância destas rodas, muitas vezes o único lugar seguro que estes homens encontram. No entanto, nota que em muitos desses círculos de homens se recorre a símbolos externos que tornam visível a masculinidade: “É muito engraçado vermos que os símbolos que muitos grupos utilizam acontecem um bocadinho sobre o tema e desígnio do guerreiro, em que os homens estão em tronco nu, fazem pinturas, ou coisas muito masculinas. Essas coisas não acontecem por acaso, acontecem também para tornar aquele contexto um pouco mais seguro, confortável e familiar, nem que seja com a ideia do que é ser homem. E resulta, porque efetivamente os homens sentem-se mais confortáveis nesses meios. Ainda assim, apesar de serem ferramentas interessantes para abrir um caminho e proporcionar, talvez, o único momento de partilha na vida destes homens, não podemos aplicar o mesmo modelo e achar que vamos fazer círculos de homens e a coisa vai acontecer.”

Questionados sobre o porquê de fazerem círculos só para homens, Akshar diz que já tentou inserir mulheres nas conversas, com sucesso, mas o comportamento dos homens altera-se. Para João Carqueijó, no início, fez sentido criar apenas círculos só com homens pela sua ideia – que agora sabe errada – de que os homens têm mais dificuldade em conversar, no entanto, percebeu que os círculos tinham de continuar a ser de homens, porque os homens, quando estão com mulheres, tendem a agir de forma diferente e a desvalorizar, em aprofundar pouco, em ir para a piada, quase de forma instintiva. Apesar de não deixar de fazer trabalho só com homens, também pela necessidade que estes têm de estar em grupo – assim como as mulheres têm de estar só com mulheres –, João não descura a hipótese e a importância de fazer círculos abertos para que os homens ganhem mais consciência do porquê de se comportarem de determinada maneira. Marcelo não tem dúvidas: “Costumo dizer que os meus círculos são para pessoas que nasceram com o órgão genital masculino, porque, de resto, abordo todos como pessoas.”

Retiro moderado por João Carqueijó que de 22 a 24 de abril irá facilitar mais um retiro de homens na Quinta do Minho, em Fafe.

Não é um ataque às mulheres ou aos homens, nem um excesso de devoção

A masculinidade saudável aparece de mãos dadas com o movimento do feminismo. Akshar diz que um dos grandes contributos da masculinidade saudável é mostrar que o homem também tem deveres, não só defeitos. Nestes círculos, por exemplo, fala-se de paternidade (cuidar dos bebés, trocar a fralda, mostrar afeto, amar, cuidar), e tenta-se trabalhá-la. “Os homens têm de reconhecer que têm deveres, que o facto de eu não saber cuidar da casa não faz de mim mais homem, faz de mim um adulto com limitações. Se chego à vida adulta e não sei varrer o meu quarto, não deveria ser visto como algo positivo, porque é uma limitação minha não saber cuidar de mim e esperar que uma mulher cuide. A abordagem da masculinidade consciente está alinhada com a visão feminista, não vem para competir ou contrariar.”

Crescemos dentro de um sistema machista, racista e “um monte de istas, que não são saudáveis e é como mergulhar num lago e tentar sair seco, é impossível, estamos dentro de um sistema de opressão, um sistema que está podre, não nos serve, tanto para homens com para mulheres”, sustenta Akshar, que quer fazer entender que estes círculos de homens não são “nem um ataque à masculinidade, nem um excesso de devoção”. A masculinidade consciente não diz que o homem é melhor do que a mulher, mas sim que todos e todas são bem-vindos/as, e que todas as pessoas que se relacionam com a masculinidade procuram encontrar formas saudáveis de ser homens, “sem precisar de violentar os outros, as mulheres, as crianças e o planeta”.

Por se apresentar como pai feminista e doula, Mário já foi alvo de um comentário em que lhe diziam que o feminismo era reservado apenas para as mulheres. Revela ainda que muitos cursos de doula não aceitam homens e que cursos dados numa perspetiva mais holística também excluem o homem, fazendo com que este fique de fora do processo reprodutivo e vivência da gravidez.

João Carqueijó explica a importância da mulher na construção desta masculinidade consciente com uma reflexão que os participantes fizeram num dos seus retiros: tinham começado o retiro a falar da mulher e acabaram o retiro a falar da mulher, a mulher esteve sempre presente. “A masculinidade consciente é isso, enquanto antes vivíamos numa masculinidade inconsciente e o homem era assim porque era, simplesmente replicava padrões, agora é utilizado este tema da masculinidade consciente para que o homem tenha a consciência do que está a fazer e a acontecer. Queremos crescer todos”, conclui.

Ainda podemos falar de uma só masculinidade?

“Eu não diria que existe uma nova forma de masculinidade, mas uma nova forma de masculinidades. Acho que uma grande lição destes tempos é permitir as singularidades, e que estas fazem parte de um padrão maior”, explica o jovem de Esposende. Akshar diz existirem tantas masculinidades quanto homens, e dentro de nós, sejamos homens ou mulheres, existe energia feminina e masculina, por isso, quando falamos de masculinidade, estamos a falar de todas as formas. “Se há uma nova masculinidade? Acredito que as pessoas estão mais abertas a entender que há muitas mais manifestações da masculinidade do que aquilo que se ensinou ao longo dos últimos séculos ou milénios”, defende.

Há também quem questione o próprio conceito de masculinidade, há quem rejeite esse conceito e quem proponha a abolição da ideia de feminino e masculino. Mário expõe que ao definir que alguma coisa tem uma propriedade de ser feminino ou masculino já estamos a ser incapazes de nos desvincular dessa ideia. “Mesmo as novas masculinidades continuam a definir o que é isso de ser masculino e feminino e, realmente, o que eu sinto é que muitas dessas coisas começam a ser uma tentativa de abolição destes conceitos. Também sei que pode não ser assim para todas as pessoas, porque, para todos os efeitos, as pessoas podem querer ser masculinas. Queremo-nos agarrar às ideias que temos e não ultrapassamos as ideias de feminino ou masculino, não vemos que, acima de tudo ‘tenho de ser eu’.”

Em 2020, o The Guardian lançou uma série sobre Masculinidade Moderna, avançando com a questão: “O que faz um homem?” Todos os entrevistados abordaram a influência do pai, em quem são enquanto adultos e também a influência dos pares. Apesar de muitos não concordarem com algumas coisas, acabam por replicá-las de forma inconsciente, tendo a violência como algo que não nasce connosco. Como se cada homem trouxesse em si influências masculinas e femininas, e, por isso, transportasse em si uma única e irrepetível masculinidade.

Mário JDS Santos descontrói o papel do homem através do seu instagram.

O aceitar da incompetência e a importância da representação

Mário diz viver numa bolha de privilégio, mas nem sempre ter sido assim. A sociedade lembrava-o de que havia problema em, por exemplo, pintar o cabelo de azul. Muitas vezes, foi-lhe dito, de uma forma direta e indireta, que o caminho que estava a seguir não era o certo, ora porque não jogava futebol com os amigos, ora porque estava sempre com raparigas. Isso foi sendo incutido e, por isso, lembra o dia em que descobriu que os ganchos para o cabelo também podiam ser utilizados por ele e não só pelas mulheres. “Comecei a usar ganchos, porque um dia estava na fila do bar e vi um rapaz com um rabo de cavalo e um gancho, e o meu cérebro, pela primeira vez, pensou que podia ser uma possibilidade. Tenho irmãs mais velhas, a minha mãe sempre foi muito presente, vivo com a minha mulher e as minhas duas filhas, em casa há muitos ganchos, não era por falta de exposição. Mas nunca tinha associado que os podia utilizar, porque na parte de trás da minha cabeça tinha a etiqueta de feminino.” Aí, percebeu que os modelos importam e que aquilo que é considerado show-off por muitos é importante. É também importante trazer as discussões da esfera privada para a esfera pública, para além de dividir tarefas de casa, “é importante mostrar à entidade patronal que vamos ficar em casa porque os filhos estão doentes e precisam de nós, não é por sermos homens que não podemos cuidar deles”.

O problema também está no “atestado de incompetência” que a sociedade passa aos homens. “Toda a formação, toda a educação, e toda a repercussão social que implica coisas que nem sequer pensamos que estão lá, proporcionou umas certas condições de privilégio às mulheres nas competências do cuidado, da gestão doméstica, do ensino, do cuidado físico, do corpo, mas também dos cuidados com a casa. Esses tipos de competências foram sendo aprendidos por mulheres sem se aperceberem disso, e os homens foram desenvolvendo uma incompetência nisso sem também se aperceberem”, explica Mário, acrescentando que tem de existir uma transformação e não apenas um delegar de tarefas abrupto, “não é só chegar e dizer que és um incompetente, isso não ajuda nada. Pelo contrário, conduz ao eu não sei fazer, faz tu ativando uma aceitação dessa incompetência. Porque o normal é ter incompetência, e os homens serem incompetentes a cuidar, isso é o mais comum, estatisticamente é o mais normal. Mas, se calhar, temos de deixar de ver esta incompetência como uma piada e deixar de criar bodys que ilustram como o pai deve vestir o bebé e perceber que os homens vão precisar de uma exposição à incompetência para conseguirem aprender. Então, precisam de ficar sozinhos e muita gentileza dentro das famílias para acolher essa incompetência”, concluindo que a incompetência masculina não depende do facto de terem nascido com um órgão masculino, "depende de uma determinada socialização e aprendizagem que aconteceu".

A forma que Mário encontrou para mostrar a outros homens e mulheres que o papel do homem é também um caminho de desconstrução foi através da sua página de Instagram, na qual partilha assuntos que associamos a mulheres como violência obstétrica, babywearing, pintar as unhas, como lida com as filhas e também tricotar. O seu caminho, admite, ainda é longo, e há situações que o deixam na dúvida sobre se está a arriscar demasiado. É investigador na Escola Nacional de Saúde Pública e, no início, confessa, não usava o cabelo solto por medo de não ser aceite. Foi duas ou três vezes com as unhas pintadas para o trabalho, mas não o fez de uma forma tranquila. Ainda que na sua página as pessoas o aceitem, quando chega ao mercado de trabalho e à rua existe o receio de não ser aceite. “Ou seja, as coisas estão dentro de nós, mesmo que não haja pressão do lado externo e mesmo que ninguém me tenha maltratado, mas os receios estão lá porque a nossa educação é assim, e muitos homens são educados para não mostrar sentimentos, serem fortes. Mesmo que agora façam uma desconstrução ativa do que é ou não a masculinidade, essas coisas estão lá e vão para além do racional.”

Se os homens falassem mais, esta desigualdade de género entre homens e mulheres deixaria de existir? Akshar acha que sim. Há muitos homens que só têm determinadas ações porque não querem ser considerados menos homens. Outros obrigam-se, a si próprios e às mulheres, a fazer coisas que não querem porque aprenderam que era assim, acabando a ser misóginos, violentos verbal e sexualmente. O moçambicano diz que não desculpa ninguém, “mas muitos vão destratando as mulheres porque querem ser bem-vistos por outros homens, querem mostrar que dominam a sua mulher, que são opressores e mandam em casa, muitos vão contra si mesmos para se encaixar, e acredito que se houvessem mais círculos e redes de apoio, paralelamente ao trabalho que tem sido desenvolvido pelo movimento feminista, as coisas seriam diferentes. Assim como se homens também tivessem o trabalho de dizer a outros homens que está tudo bem em sentir, chorar, pedir ajuda, muito seria resolvido de outra forma, nesse leque de emoções que muitas vezes é expresso em forma de raiva. É possível estares triste e, ainda assim, seres homem. É possível pedir ajuda, ir a um terapeuta ou psiquiatra, isso não faz de alguém menos homem”.

Como foi dito no início da reportagem, constata-se que o número de suicídios é maior nos homens. Também existem mais carcerários do sexo masculino do que feminino, e a maioria dos homicidas são homens. E porquê? Akshar explica que muitas vezes são os únicos caminhos que os homens acreditam ter para digerir o que sentem e ainda assim manterem o estatuto da masculinidade. “A ideia do círculo é mostrar que há outros caminhos. Há formas saudáveis de existir como homem que não passem pela violência e demonstração constante de virilidade e força física.”

“Assumimos que as mulheres sofrem os efeitos do machismo, mas que os homens não, mas sofrem também”, expõe Mário, levando-nos numa viagem à forma como o homem sempre foi representado e educado. “Ao longo da nossa vida, somos muito bem treinados, enquanto homens, para fugir destas coisas e é muito importante que quem está no papel de facilitador destes círculos de homens possa ajudar a trazer essas coisas para a discussão, para o debate.”

Assim, também Tiago Iorc termina a música “Masculinidade” com o desejo de ser um

Homem real e não ideal
Ser homem por querer se aprender, todo dia
Dominar a si mesmo
Apesar de qualquer fobia: respeito.

Texto de Patrícia Nogueira
Ilustração de Marina Mota

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

3 MARÇO 2025

Onde a mina rasga a montanha

Há sete anos, ao mesmo tempo que se tornava Património Agrícola Mundial, pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o Barroso viu-se no epicentro da corrida europeia pelo lítio, considerado um metal precioso no movimento de descarbonização das sociedades contemporâneas. “Onde a mina rasga a montanha” é uma investigação em 3 partes dedicada à problemática da exploração de lítio em Covas do Barroso.

20 JANEIRO 2025

A letra L da comunidade LGBTQIAP+: os desafios da visibilidade lésbica em Portugal

Para as lésbicas em Portugal, a sua visibilidade é um ato de resistência e de normalização das suas identidades. Contudo, o significado da palavra “lésbica” mudou nos últimos anos e continua a transformar-se.

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