Dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera1 mostram que, a 28 de fevereiro, 4,5% do país estava em seca moderada, 29,3% severa e 66,2% extrema.
Segundo estimativas da Universidade de Aveiro2, entre os anos de 2046 e 2065, Portugal continental vai sofrer uma diminuição da precipitação média anual de 10% na zona norte e em todo o litoral e de cerca de 30% nas zonas interiores e no sul.
Um estudo divulgado, no final de 2020, pela Agência Portuguesa do Ambiente3, veio revelar um decréscimo de 20% nas disponibilidades hídricas em Portugal, nos últimos 20 anos, situação que se pode agravar mais 10 a 25%, em resultado dos efeitos das alterações climáticas. O mesmo estudo mostrou ainda que, para o mesmo período de tempo, também a precipitação sofreu uma diminuição de cerca de 15%.
Todos assistimos, cada vez mais, a meses de precipitação atípica. É caso para dizer que o clima já não é o que era. Perante este cenário de ausência de chuva, não é sensato falar-se em novas barragens e mais área de regadio como se fossem a derradeira salvação de um país que entrou, há muito, num agravamento do índice de aridez, com mais de 60% da sua superfície suscetível à desertificação.
Neste momento, trata-se de correr atrás do prejuízo. Não basta poupar água, temos de criar as condições necessárias para a natureza voltar a produzir água na quantidade de que precisamos. É necessário repor água nos aquíferos, nos solos, em todo o ciclo da água, para mitigar o sentido em que as alterações climáticas nos estão a levar, e não agravar e contribuir para os crescentes desequilíbrios. Isso só se consegue mudando a maneira como entendemos e intervimos na paisagem.
Focados no rame rame do dia a dia, nas eleições seguintes ou nos efeitos imediatos da inflação, incapazes de planear o médio e longo prazo e sem coragem de tomar decisões baseadas na ciência, deixamo-nos levar pelo dinheiro fácil e rápido que não cria riqueza para o país, mas apenas para aqueles que exploram até ao tutano a natureza que os sustenta, assacando sistematicamente a responsabilidade ao comum dos mortais (e não a todas as entidades que a têm) sobre a quase totalidade do desperdício e descuramos a água como recurso estratégico.
Ao cidadão pede-se que poupe alguns litros na lavagem dos dentes, do automóvel ou nas descargas de um autoclismo. São poupanças importantes, mas apenas uma parte na contabilidade geral de um país cujas perdas na rede de abastecimento de água se contam, por si só, em centenas de milhões de metros cúbicos e que abraça novas culturas de regadio intensivo numa altura de óbvia escassez.
Porque é disso que se fala, de um recurso absolutamente estratégico, sem o qual não há vida.
Estudo, discussão, planeamento, regulamentação, implementação, monitorização e fiscalização são atividades que precisam de saber, persistência, organização, estruturação e colaboração. Essas palavras estão ausentes do nosso sistema burocrático e ainda mais do nosso calendário político.
A gestão da água não pode ser pensada quando ocorre seca, tem de ser prevenida antes que ocorra e a intervenção é multidisciplinar, abrange as mais diversas áreas e pode ter inúmeras abordagens.
Uma das abordagens mais importantes tem a ver com o entendimento e a intervenção na paisagem.
A renaturalização dos rios, a reflorestação das cumeeiras com espécies nativas e o respeito pela orografia do terreno e pelas condições edafoclimáticas, num cuidado rigoroso pelas estruturas biofísicas fundamentais, são etapas fundamentais.
Os rios são estruturas vivas que devem ser mantidas em equilíbrio natural, sem intervenções de maior, mantendo a vegetação aí existente, permitindo aos ecossistemas ripícolas cumprir a sua função de manter a água limpa, as margens estáveis e os caudais abundantes.
A desflorestação causada pela superexploração, pelos incêndios e pela convicção que solo nu é sinal de terra bem cuidada, impede a infiltração e a retenção naturais da chuva no solo diretamente para o ciclo da água, deixando-a escoar em grande velocidade, arrastando consigo o solo e perdendo-se no mar.
O foco em Portugal tem sido desde há muito tempo, em particular na última década, a instalação de grandes aproveitamentos hidroagrícolas, o que tem provocado uma transformação dramática dos sistemas de produção de forma localizada, levando a um aumento dos consumos totais de água, ao mesmo tempo que se favorecem culturas totalmente dependentes de rega e de fatores de produção, desfasadas do seu contexto edafoclimático.
Tem-se promovido a especialização, que na prática significa a proliferação de monoculturas em sistemas altamente dependentes de recursos externos (incluindo pesticidas e fertilizantes de síntese, mas também de maquinaria e equipamentos), pouco adaptadas às características das parcelas, numa procura de homogeneidade e automatização, tirando partido da subsidiação dos fatores de produção - uma agricultura que mais se adequa a multinacionais, marginalizando e eliminando muitos pequenos e médios agricultores. O solo é muitas vezes tratado como um mero meio de enraizamento das culturas, desprovido, em larga medida, da sua função de fertilidade e, em particular, da sua função de retenção de água.
O tão falado ordenamento estratégico do território é outro dos caminhos a percorrer rapidamente, implantando o mal amado mosaico, incentivando os pequenos e grandes proprietários a tratar a natureza como sua aliada, potenciando o lucro não só a curto prazo, mas sobretudo a médio e longo prazo, no respeito pelo equilíbrio dos ecossistemas, optando pela diversificação de culturas, pela captura de água, pela manutenção de zonas tampão, pela cobertura dos solos para potenciar a infiltração, pela diminuição de aplicação de insumos externos e de operações culturais, pela cooperação com os proprietários vizinhos, que pode potenciar a rentabilidade e a estabilidade de rendimentos.
A pensada construção de uma central de dessalinização no Algarve, com uma capacidade anual de produção de 8 milhões m3 de água potável, que poderia, à partida, parecer uma solução para minimizar o problema, não é isenta de impactos já que se trata de um processo com elevados custos energéticos, que dá origem a águas residuais com elevado grau de salinidade, para as quais é preciso encontrar um destino final adequado. Mais prioritário do que investir numa solução de dessalinização será encontrar soluções eficazes para o problema das perdas de água registadas no sistema de abastecimento que, de acordo com os dados do último relatório da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos4, só na região do Algarve chegam a quase 15 milhões de m3 perdidos anualmente em fugas e extravasamentos.
Ainda assim, parece-nos que a opção por soluções diversas é sempre preferível à uniformidade, pois permite-nos avaliar ao longo do tempo as vantagens e desvantagens das várias escolhas e agiliza a inflexão caso os resultados não sejam os esperados. Insistir sempre nas mesmas soluções fecha o mercado à inovação e torna a opção por outros sistemas mais eficazes, mais pesada e onerosa.
Para gerar o máximo de resultados com o menor custo possível, sobretudo a longo prazo, é preciso investir na Natureza e urgentemente permitir-lhe que exerça a sua capacidade de, autonomamente, se regenerar e restabelecer o equilíbrio de que tanto precisamos.
1 IPMA - Monitorização da Seca Meteorológica
2 Mapping green water scarcity under climate change: A case study of Portugal Paula Quinteiroa; Sandra Rafaelaa; Bruno Vicentea; Martinho Marta-Almeidab; Alfredo Rochab; Luís Arroja; Ana Cláudia Diasa.
3 Avaliação das Disponibilidades Hídricas Atuais e Futuras e Aplicação do Índice de Escassez WEI+ Rodrigo Proença de Oliveira - Bluefocus / Técnico – U.Lisboa
4 RASARP 2021 - Volume 1 - Caracterização do setor de águas e resíduos
-Sobre Ana Serrão-
Ana Serrão frequenta atualmente o curso de Agronomia na Escola Superior Agrária de Santarém e é licenciada em Tradução pelo ISLA. Como associada da "ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável”, tem trabalhado em iniciativas de ligação da associação à sociedade, com foco na mudança de mentalidades, hábitos de consumo e na gestão do arvoredo urbano.