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Bernardo Limas: “Acredito que todo e qualquer ser humano tem a capacidade de ser artista”

Bernardo Limas nasceu em Aveiro, tem 30 anos e é licenciado em Ciências da Comunicação,…

Texto de Ana Margarida Paiva

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Bernardo Limas nasceu em Aveiro, tem 30 anos e é licenciado em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Minho, em Braga. No entanto, é preciso recuar no espaço e no tempo, até à Escola Secundária Dr. Jaime Magalhães Lima, para darmo-nos de caras com um pequeno artista sonhador e ambicioso. Movido pela vontade em fazer mais e mais, é, atualmente, o rosto por detrás da Haff Delta.

É a tríade, entreter, desafiar e informar, que move a Haff Delta e todos os que lá trabalham. Criada em setembro de 2019, na região de Aveiro, é uma empresa que se dedica ao agenciamento de artistas, à consultoria de programação e eventos culturais e à promoção e produção de espetáculos e eventos culturais, corporativos e sociais.

Em pleno centro aveirense, Bernardo Limas, fundador da Haff Delta, falou-nos sobre o seu percurso, desde as suas origens até ao reconhecimento a nível internacional. Houve também espaço para falar sobre os desafios no setor cultural e como nem tudo é um mar de rosas. É assim que ficamos a conhecer um caminho marcado pela persistência e resiliência.

Gerador (G.) – Nascido e criado em Beira Mar, identificas-te frequentemente como um cagaréu assumido. De que forma é que as tuas origens te influenciaram para chegares até à pessoa que és hoje?

Bernardo Limas (B. L.) – Considero que as origens vêm sempre de forma indireta, mas, na verdade, passei a minha vida com a minha mãe e o meu avô no bairro da Beira Mar. Embora a minha mãe tenha tentado colocar-me no infantário e no ATL, preferia ir com ela para a escola (Escola Secundária Dr. Jaime Magalhães Lima, onde dá aulas) e jogar futebol com os alunos dela. Noutras alturas, ou andava com o meu avô no quintal ou ia passear com ele e, graças a isso, cheguei a percorrer Aveiro a pé. Portanto, este carinho que tenho pela cidade e esta ideia que me faz não querer, nem conseguir sair daqui, faz-me ser quem sou. O que é que me deu? Talvez conhecer pessoas mais velhas. Ultimamente, a Beira Mar tem vindo a mudar a configuração demográfica, mas, há uns tempos, era habitada por muitas pessoas antigas, ou seja, sempre convivi com malta mais velha, tais como amigos do meu avô e da minha mãe. Penso que isso acabou por me dar aquele gosto mais tradicional, fazendo-me gostar tanto da Beira Mar e de Aveiro.

G. – Falando em tradições, não faz muito tempo desde que te juntaste à Mordomia de São Gonçalinho.

B. L. – Entrei, há cerca de dois anos, através dum convite. Convidaram-me pela primeira vez quando tinha 24 anos, só que, embora quisesse muito, achei que não teria tempo, nem maturidade e acabei por recusar. Decidi aceitar um novo convite mais tarde, mas já sabia que mais dia, menos dia ia acabar por acontecer, porque ser da Beira Mar é gostar do São Gonçalinho. É um orgulho enorme ser mordomo de São Gonçalinho, porque trabalho, principalmente, para o meu bairro e para Aveiro, acabando por ser aquilo que me guia.

G – Atualmente, trabalhas no setor artístico. Como e quando nasceu esse gosto pelo mundo das artes?

B. L. – Foram pequenas coisas que foram surgindo. Há alguns momentos da minha infância dos quais me lembro muito bem. Para além de ser professora de Português e Francês, a minha mãe também dá aulas de Teatro – tirou o curso de Estudos Artísticos na Universidade de Coimbra. Quando ia para a escola com ela, não só assistia a algumas aulas, como também acabava por me integrar. Isto levou-me a participar no Auto da Barca do Inferno, que foi a primeira peça que a minha mãe fez com os alunos dela, onde interpretei o Pajem. Estamos a falar de um miúdo entre os cinco e os seis anos de idade. Imagina, um garoto a sentir-se tão importante ao ponto de estar em palco com uma personagem, isso marcou-me muito. Outra coisa que também me marcou muito foram os livros da Maria Alberta Menéres e da Sophia de Mello Breyner — lia tudo. Para além disso, também tinha um gosto incrível pela escrita, como ainda tenho hoje em dia, embora não o leve muito a cabo, a não ser nas redes sociais. Lembro-me de escrever cartas de amor para as raparigas de quem gostava na escola primária e era sempre em forma de poesia.

Porém, a partir do secundário, comecei a dar passos maiores. Comecei a participar nas Escolíadas de uma forma soft [suave] em palco, a escrever peças, a encenar e a criar todo aquele conceito artístico. Tendo isso em conta, acho que as Escolíadas acabam por ser um grande chamariz para mim, mostrando que: "Se calhar, até existe aqui qualquer coisa." Mais tarde, entrei para o staff, na área de Comunicação, porque a minha licenciatura é em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Minho (Braga). Quando terminei o curso, voltei para Aveiro e, juntamente com amigos, criei a Associação Tertúlia Aveirense. Retomámos as Jam Sessions que estavam esquecidas, fizemos stand-up comedy, e tudo isso, que era um hobby, acabou por me mostrar que, realmente, havia qualidade a mais para ser apenas um hobby, levando-me a profissionalizar-me e a chegar até à Haff Delta.

G. – Entre vários projetos que constam no teu currículo, um deles é as Comedy Sessions. O que te impulsionou a começar pela promoção de stand-up comedy?

B. L. – É uma resposta muito pragmática, não tem nada de poético. Produzir stand-up comedy é muito barato. Estamos a falar de duas colunas, um microfone, luzes e um artista em palco, ou seja, é muito mais económico do que ter uma banda com quatro ou cinco elementos ou uma peça de teatro, que também tem quatro ou cinco elementos, e, para além disso, toda a equipa por detrás. Para além disso, é fácil, dá dinheiro e sei como funciona. Não tenho nenhum gosto especial por stand-up comedy, aliás, devo confessar que raramente vejo, porque muito pouco me agrada verdadeiramente.

G. – Chegaste a trabalhar com nomes conceituados da comédia nacional, como é o caso do Salvador Martinha. Como conseguiste atingir esse patamar?

B. L. – Foi muito fácil, na verdade. Na altura, tinha um parceiro em Lisboa, o Ricardo. Neste momento, ele tem a KILT, que agencia o Diogo Batáguas, a Luana do Bem, o Dário Guerreiro, entre outros. O Ricardo estava apenas a começar, ou seja, estava numa fase completamente diferente da vida – isto quando (quase) ninguém fora da capital conhecia o Carlos Coutinho Vilhena, por exemplo. No entanto, o Ricardo conseguiu chegar a todos esses nomes. O Salvador Martinha foi superacessível, gostou da genica e do projeto que estávamos a desenvolver. Tenho de agradecer tanto a ele, como ao Carlos Coutinho Vilhena, porque ajudaram-me bastante a dar os primeiros passos e a fazer com que as pessoas me conhecessem, ou seja, foram duas pessoas essenciais no início do meu percurso profissional.

G. – Levaste as Comedy Sessions para outros cantos do país, para além de Aveiro. O que te levou a tomar esta decisão?

B. L. – Era um conceito que precisava de ser tirado das grandes cidades. Na minha perspetiva, há uns tempos, só duas cidades é que tinham stand-up comedy bem produzido. Com as Comedy Sessions, o nosso objetivo era transformar ambientes informais em salas de espetáculo, dando-lhes uma certa elegância. O caso mais gritante é o Cais À Porta, que é uma concept store [loja-conceito], em Aveiro, que vende várias coisas, mas que, de todo, é para fazer espetáculos. Chegámos a transformar a loja, de uma ponta à outra, com espaço para camarim, casa de banho – com tudo. Desta forma, queríamos também respeitar o artista, fora do espaço formal onde costuma atuar. Percebemos que conseguíamos fazer isto em outros sítios, da mesma forma que fazíamos em Aveiro, e acabámos por replicar o conceito em Coimbra, Viseu, Leiria, Braga, Guimarães e Vila Real. Desde então, o stand-up comedy começou a descentralizar-se. Outro objetivo das Comedy Sessions era levar nomes conceituados (da comédia nacional) para mais perto do público, ou seja, fora dos grandes palcos. Era o melhor dos dois mundos: os artistas podiam testar os seus textos, e o público podia entrar em contacto direto com os artistas, para além do palco.

G. – Há pouco mais de dois anos, fundaste a Haff Delta, uma empresa que se dedica não só ao agenciamento de artistas, como também à consultoria, promoção e produção de eventos culturais, corporativos e sociais. De onde surgiu esta ideia?

B. L. – Era o caminho a seguir. Antes da Haff Delta, passei por duas experiências profissionais e uma delas guardo com muito carinho – que é a Sons em Trânsito. Trabalhei lá dois meses e meio com o Vasco Sacramento, o Artur Figueiredo e a Lúcia Pinho. São três pessoas, a quem tenho de agradecer, porque me ensinaram imenso. No entanto, eu não me sentia completamente realizado. Na Sons em Trânsito, cada um tinha a sua fatia do bolo e, na altura, eu tinha uma fatia pequenina – que era a que me cabia. Conversei com o Vasco e disse: "Olha, quero mais, por isso acho que tenho de seguir outro caminho." Ele concordou comigo, porque, segundo ele, revia-se muito em mim e sabia que eu realmente tinha muita ambição. Uma ambição, por vezes, desmedida, que não é propriamente uma coisa muito boa, levou-me a criar a Haff Delta. Esta empresa não foi criada sem passar por todas estas etapas, aprendi mesmo muito com a Sons em Trânsito e, ainda hoje, o Vasco Sacramento e o Artur Figueiredo (que agora tem a Lazarus) são duas grandes referências para mim, em Aveiro. Um dia, se eu pudesse ser um bocadinho do que eles são em termos de agenciamento, ficaria muito feliz e era muito bom sinal. Portanto, a Haff Delta acaba por ser o culminar, porque eu ansiava mais do que fazer só uma coisa, ou seja, queria fazer muitas coisas diferentes, com muita gente, e isso levou-me a chegar até aqui.

G. – Quais os objetivos e desafios intrínsecos?

B. L. – Utilizo um conceito da BBC (Corporação Britânica de Radiodifusão): a tríade informar, educar e entreter. Para a Haff Delta, inverto e mudo uma palavra, ficando entreter, desafiar e informar. É com base nesta tríade que eu formo todos os objetivos da empresa e, se repararmos, é isso mesmo que estamos a fazer. Entreter pelo stand-up comedy e pela música. Desafiar por outros projetos culturais em que já participamos, como é o caso do Cultura Perto de Si, um projeto promovido pela Câmara Municipal de Aveiro, que leva diversos espetáculos a todas as freguesias, descentralizando a cultura no Município de Aveiro. Informar com os streamings [transmissões], porque nós transmitimos as reuniões de Câmara e as Assembleias Municipais. Também trabalhamos muito com minidocumentários e com outro tipo de conteúdos de vídeo, que não são propriamente vídeos institucionais, mas que se alicerçam nesta tríade.

No que diz respeito a desafios, há muitos para o futuro, há muitas coisas com que eu sonho. Quero internacionalizar-me cada vez mais. Como é óbvio, quero continuar a trabalhar com artistas portugueses, mas também quero trazer cada vez mais artistas internacionais a Portugal. Gostava muito que a equipa crescesse para poder trabalhar mais o agenciamento e a produção. Nesta parte, entra a tríade de que falei, se ela estiver sempre presente, com todos os desafios que daí vierem, acho que a coisa pode correr bem. Acredito, genuinamente, que todo e qualquer ser humano tem a capacidade de ser artista, em qualquer ocasião e domínio. A Haff Delta também trabalha, precisamente, para que isso aconteça, para tornar todos os seres humanos capazes de serem artistas, no melhor sentido do termo, porque eu detesto usar o sentido pejorativo do termo artista. Portanto, acho que se todos formos criativos, conseguimos que a sociedade chegue mais longe. É isso que nós queremos fazer.

G. – Há um projeto em concreto que descreves como sendo um dos mais especiais: o lançamento dos Perpétua. Como surgiu esse elo? Como tem sido o percurso do grupo até à data?

B. L. – Os Perpétua são o Diogo Rocha, o Rúben Teixeira, o Xavier Sousa (Xumiga) e a Beatriz Capote. O Diogo, para além de ser membro dos Perpétua, também trabalha comigo na Haff Delta, mas já o conheço, há algum tempo, de outras bandas. Ele já conhecia o meu percurso profissional e, de alguma forma, acreditou em mim, mostrando-me coisas dos Perpétua – ainda eles eram um embrião. Mal ouvi a primeira versão das músicas, disse logo: "Isto é espetacular, podemos fazer coisas maravilhosas com isto." O Diogo apresentou-me o Xumiga, o Rúben, que também já conhecia de outras batalhas, e a Beatriz, lembrava-me dela das Escolíadas. Começámos a conhecer-nos um pouco melhor e fomos crescendo em conjunto. Para mim, eles são geniais e acho que deveriam ser mais reconhecidos em Portugal. Só não o são, porque são da Gafanha da Nazaré, do concelho de Ílhavo, mas foi assim que se apresentaram e é assim que vai ser, até ao fim. Com isto, quero dizer que eles não vão beber copos aqui e acolá, ou seja, não conhecem quem têm de conhecer. Senão, garantidamente, tinham sido muito mais vezes Álbum do Ano, porque o Esperar Pra Ver é um álbum incrível e não tem nada que ver com o meu trabalho. Tenho muito orgulho neste projeto, porque, em termos financeiros, duvido que haja muitas bandas em Portugal que, num primeiro ano de existência, tenham faturado tanto como os Perpétua faturaram. Isso é muito importante, porque é um bom indicador de que, realmente, há qualidade ali.

Quem quiser ser mau, pode dizer que Perpétua é Capitão Fausto, mas é totalmente mentira. Eles são um somatório de muita coisa, que ficou muito bem encaixada. Há pessoas que me vão dando pequenas e diferentes referências para os Perpétua: "Olha, reconheço isto dos anos 80", "Ah, faz-me lembrar tanto uma banda da minha juventude", e é isto mesmo. É um projeto humilde, feito por pessoas humildes, que sabem onde estão, sabem onde querem chegar e tudo isso é bonito. É bonito ver um projeto crescer de forma genuína, sem ser um produto, porque também já ouvi pessoas a chamar produto a Perpétua, e isso irritou-me bastante. Não é um produto, é uma coisa feita com a cabeça no sítio, porque, obviamente, há aquilo em que eles acreditam e há, sem qualquer problema, o facto de saberem o que funciona. É uma simbiose perfeita, sem pretensões. Orgulho-me mais deste projeto por eles do que, propriamente, por mim. Só fico contente por eles me terem escolhido e que queiram continuar comigo. Sendo justo, talvez acredite que não tenho mãos para fazer dos Perpétua aquilo que eles merecem, porque são mesmo geniais. O que é certo é que vou dar tudo por tudo. Há algum trabalho meu neste projeto, mas o sucesso advém, sobretudo, da qualidade deles. Quando a qualidade está presente, quem está a trabalhar do outro lado, ou seja, na produção, management e agenciamento é, basicamente, um secretário.

G. – Em que outros projetos e/ou eventos já trabalhaste através da Haff Delta?

B. L. – Trabalho bastante com o Bruno Aleixo, talvez seja o exemplo mais conhecido. Estamos um pouco parados, porque estão com outro projeto em mãos, mas, à partida, vamos retomar em 2023 com um novo espetáculo. Trabalhei também com o Rodrigo Marques, um comediante brasileiro, que tem dois milhões de seguidores, e foi um sucesso em Portugal. Entre doze espetáculos, esgotámos dez, ou seja, tivemos 94 % de lotação, é uma coisa fenomenal. Fizemos salas relativamente grandes, este ano vamos fazer salas ainda maiores com o Rodrigo Marques, aliás, fechei recentemente a digressão. Curiosamente, vamos fazer as primeiras produções internacionais da Haff Delta, ou seja, irmos lá fora. Em princípio, uma das experiências será com o Rodrigo Marques, vamos pegar nele e fazer coisas pela Europa, mas também vamos com artistas nossos ao Brasil.

Orgulho-me muito em trabalhar com o Jovem Conservador de Direita que, em breve, vai passar a chamar-se O Doutor. O nome já não faz sentido, há agora coisas bem piores à direita do que em 2015, quando o projeto surgiu. Já trabalho com ele há alguns anos e estamos a crescer sustentadamente, e isso é muito bonito. Pode parecer que não, mas tanto a publicidade, como a presença nas redes sociais, é muito importante. Na altura, só trabalhavam com o Facebook e obriguei-os a criar Instagram e, em cerca de um ano, crescemos 20 mil seguidores, organicamente. Mais uma vez, é uma daquelas coisas que se estivesse em Lisboa ou no Porto seria muito mais reconhecida. Ser da região de Aveiro ainda tem este handicap [desvantagem], porque, para mim, o Jovem Conservador de Direita está no top três do melhor que o humor nacional tem para oferecer. Têm sensibilidade, ou seja, analisam se faz sentido fazer piada com aquilo ou não e quem é que vão magoar ou não. Há muito aquela mania de que não há limites para o humor. Claro que há limites!

O Cultura Perto de Si é também um dos projetos mais carinhosos que tenho. É promovido pela Câmara Municipal de Aveiro, eu só sou contratado para fazer produção chave na mão, mas tenho um carinho enorme por andar a percorrer as freguesias de Aveiro e por conhecer tantas pessoas diferentes. O contrato ainda não está fechado, mas, à partida, tudo indica que serei eu outra vez a fazer a produção, este ano. Em termos de streaming, tenho muito orgulho em fazer as reuniões de câmara públicas e assembleias municipais de Aveiro, porque sinto que estou a contribuir para a sociedade e que o meu trabalho está a informar as pessoas.

G. – Recentemente, produziram um espetáculo de stand-up comedy com o Paulo Almeida, em que todas as receitas de bilheteira foram entregues à UNICEF Ucrânia e à Cruz Vermelha Ucraniana.

B. L. – Sim, o Karma. Em primeiro, esta ideia surgiu porque o Paulo está catalogado como artista há muito tempo, portanto pôde candidatar-se ao Garantir Cultura. Essa candidatura foi feita em maio (do ano passado) e, mais tarde, entre outubro e novembro, responderam-nos que o Paulo iria receber algum dinheiro do Garantir Cultura para fazer o espetáculo ao vivo e gravá-lo. O Paulo queria fazer bilheteira, mas eu disse: "Já temos o dinheiro que precisamos para fazer o espetáculo acontecer e para gravar, quero muito trabalhar com uma entidade em específico." Refiro-me a uma entidade sem fins lucrativos de grande importância. Estava tudo programado para fazer o espetáculo em dezembro, e eis que, para meu espanto, contacto telefonicamente a entidade e dizem para mandar email. Mandei email, ninguém me respondeu. Voltei a telefonar, disseram-me que receberam o email, mas que estavam à espera da diretora. Desde então, nunca mais obtive resposta. Portanto, essa entidade recusou trabalhar comigo e com a Haff Delta, porque não aceder é a mesma coisa que recusar. Sendo assim, o espetáculo não aconteceu em dezembro, ficou estagnado e, entretanto, com a pandemia as coisas voltaram a complicar-se e as pessoas tinham receio. Houve uma sala que sabia que eu queria doar as receitas em bruto à entidade e, mesmo assim, queriam que pagasse 1200 euros pelo aluguer, porque pedi mais quatro horas de trabalho, que eram necessárias para montar câmaras. Uma sala que me cobrou 400 euros para levar o Rodrigo Marques. Estas coisas têm de ser ditas, porque não podemos falar só da parte bonita da cultura.

Já que em Coimbra ninguém me quis, decidi fazer em Aveiro. Tenho a sorte de me dar muito bem com a Associação Académica da Universidade de Aveiro (AAUAv), que sempre me contratou e me apoiou em termos de streaming e de espetáculos. A AAUAv aceitou a minha proposta, apenas disse que teríamos de esperar um pouco para escolher a data, porque apanhou o período de eleições. Entretanto, rebenta a guerra na Ucrânia e eu próprio andava um bocado às aranhas, porque não sabia a qual instituição dava o dinheiro e, de repente, a resposta tornou-se óbvia. Falei com a AAUAv e disse: "Quero dar o dinheiro em bruto a duas instituições. Quero os bilhetes a cinco euros, sei que vai ser pouco, mas é uma ajuda. Assumo o dinheiro do IVA e tudo o resto, alinham comigo?" Responderam: "Vamos a isso." A Ticketline, que é o monstro da venda de bilhetes em Portugal, também se juntou a esta festa. Não me cobrou nada, deu-me o dinheiro em bruto, o que é espetacular.

Nós fomos os loucos, que sempre quisemos levar a nossa avante de não precisar de ganhar dinheiro com bilheteira, porque já tínhamos o Garantir Cultura. Porém, temos de agradecer a quatro pessoas. Ao Paulo, que entrou na nossa loucura. À AAUAv que, para além de nos ceder a Sala Palco, colaborou connosco, ajudando-nos a doar o dinheiro à UNICEF Ucrânia e à Cruz Vermelha Ucraniana. À Ticketline, também. A festa acabou por ser muito bonita, mas foi muito dura. Custou-me saber que uma entidade, pela qual tenho muito carinho, me recusou, deixou-me magoado. Atenção, continuo a ter muito carinho e, sempre que me pedirem ajuda, hei de ajudar, porque sei o trabalho que fazem diariamente. No entanto, com muita perseverança e resiliência, conseguimos fazer aquilo que queríamos. Embora eu, o Paulo e, por inerência, a AAUAv tenhamos perdido dinheiro no meio de tudo isto, acabámos por pagar às equipas todas que estavam a trabalhar e por ajudar as entidades, que era o nosso grande objetivo. Foi muito desgastante, mas acabou por ser bonito, por isso o Karma é outro projeto do qual me orgulho – que ainda falta sair no digital.

G. – O ano de 2021 trouxe muitas coisas boas à tua empresa, nomeadamente reconhecimento internacional, fruto de parcerias estrangeiras e nomeações para os Iberian Festival Awards pelos projetos Aveiro Comedy Sessions e Festival Safra. Conta-nos sobre essa fase.

B. L. – Há a parte bonita e a parte menos bonita. Crescemos muito, produzimos praticamente cem espetáculos — é obra dizer que isto aconteceu em 2021. Crescemos também muito no streaming, porque conseguimos contrato com a Câmara Municipal de Aveiro. Tenho de agradecer à câmara, porque apoiou-nos, deu-nos trabalho e esperança. Sem ela, se calhar, poderia já não haver Haff Delta. Se houvesse era de uma forma muito diferente. O Festival Safra recebeu cinco nomeações: Best Festival, Best New Festival, Best Cultural Programme, Best Photo e Best Brand Activation. O Aveiro Comedy Sessions recebeu uma nomeação: Best Non-Music Festival. Isto vai a uma nomeação de júri e de público, há uma shortlist [lista restrita] neste festival, e nós só entrámos numa categoria, que foi a Best Brand Activation. Ironicamente, éramos os únicos pequeninos no meio das Cocas-Colas, Johnnies Walkers e Pepsis. Embora tivéssemos sido nós a fazer a ativação de marca, devo agradecer à Remax Universal por ter estado connosco, porque sem esse apoio, seria difícil fazer o Festival Safra como o fizemos. Esta é a parte bonita.

Contudo, foi um ano muito desgastante, para mim, e acho que ainda ando a pagar um bocado as favas. Atualmente, tenho o Diogo Rocha comigo, mas isso só foi possível porque trabalhei bastante. Ele está em estágio profissional e, neste momento, até estamos a pagar o estágio todo, porque o IFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) ainda não pagou a fatia intermédia, mas temos dinheiro para isso. Para além disso, fizemos muito investimento, porque para fazer streaming e espetáculos é necessário. Podemos dizer que só com dinheiro da Haff Delta investimos cerca de 30 mil euros em equipamentos. É um ponto de partida para dizer que nunca pedi dinheiro a ninguém para criar a Haff Delta. Embora a minha mãe fizesse questão de ajudar-me financeiramente, sempre disse que queria chegar aqui com o meu dinheiro. Durante ano e meio, estive numa porcaria de emprego, juntei dinheiro e foi assim que criei a Haff Delta. Neste momento, temos material topo de gama. No distrito de Aveiro, acredito que somos uma das melhores empresas em termos de material de vídeo.

Porém, também há todas as questões associadas à saúde mental, porque deixa de haver vida pessoal. Há também coisas que são consequências e eu estava preparado para elas e estou a lidar com parte delas agora. Consigo lidar com elas, porque me acalmo e porque sei que houve todo um percurso feito a pulso. Ouve-se muitas pessoas a dizerem "bater punho", uma expressão que ficou anos atrás no tempo, mas elas não sabem o que é "bater punho" verdadeiramente, porque tiveram um background [plano de fundo] financeiro ou tiveram cunhas. Um Bernardo com 30 anos gostaria de já ter uma equipa muito maior e de ter chegado mais longe. Gostava também que este Bernardo estivesse a viver esta fase com 25 anos, mas, infelizmente, não é possível. Embora a saúde mental da empresa esteja muito bem, a minha não está assim num lugar tão bom, mas está a recuperar e é um Bernardo que acaba por estar orgulhoso do percurso que tem feito até agora.

Texto de Ana Margarida Paiva
Fotografias cedidas por Bernardo Limas

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