Os videojogos existem há décadas, sendo que a sua origem remonta aproximadamente ao período de 1950 com a invenção de um dos primeiros videojogos criados, denominado Ténis para dois. Tendo evoluído desde então, atualmente esta indústria conta com mais de 3,24 bilhões de usuários globalmente. Segundo dados do instituto de pesquisa de desportos eletrónicos Newzoo, referentes ao ano de 2021, estima-se que os videojogos produziram uma receita anual de 180,3 bilhões de USD.
O enredo por detrás dos jogos tem agido ainda como a inspiração de filmes como Uncharted; Tomb Raider; Sonic Hedgehog e séries como The Witcher. Contudo, declarar-se como um gamer não possui a mesma notoriedade que é atribuída a esta indústria.
“Não conseguimos descrever alguém que vê filmes, mas temos logo uma imagem de como se parece um gamer”, Francisco Nabais
Ao contrário dos restantes consumidores de media, os gamers são comummente retratados pelo conceito generalizado de um jovem masculino, recluso e socialmente inepto, propensos a atos radicalmente violentos. A título de exemplo, este artigo usa como análise coberturas mediáticas de meios de informação generalistas em Portugal.
A mais recente representação, referente à ameaça de atentado na Universidade Nova de Lisboa, foi alvo de críticas por órgãos centrados em jornalismo de videojogos, que apontaram para a tendência dos media de culpabilização dos jogos. Otakupt, um portal de notícias sobre anime, manga e videojogos, apontou a menção desnecessária do interesse por videojogos, denotando a representação sensacionalista, que leva a uma perceção social defeituosa de gamers.
Em conversa com um grupo de 15 gamers com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos, similarmente, os jovens sinalizaram a representação irrealista da cultura de gaming nos media em Portugal. Pois, segundo os jovens, esta perceção social é uma reflexão da ausência de representações diversificadas de gamers nos meios de informação generalista, sendo estes noticiados com maior frequência em contextos de violência. Já os órgãos centrados em jornalismo de videojogos, apesar de apresentarem informações variadas, não contêm a mesma influência sob a agenda pública.
Pesquisas académicas sobre o assunto apresentam resultados contraditórios, pois enquanto algumas suportam a relação entre videojogos e comportamentos violentos, outras contestam-na. Após a realização de uma meta-análise, ou seja, revisão da literatura existente sobre o assunto, a American Psychology Association (APA) comprovou esta correlação no ano de 2015. A pesquisa consistiu numa análise de 10 artigos nomeados como empiricamente sustentáveis, que abordam o uso violento de videojogos publicados entre 2000 e 2013.
Contudo, os resultados foram alvo de críticas entre académicos, declarando como a literatura que serviu de base para esta pesquisa foi determinada por uma metodologia malsucedida.
Investigações mais recentes, como o estudo realizado pela Molecular Chemistry em 2018, contrariamente, dispensam esta relação. Já esta pesquisa baseou-se numa experiência, em que os participantes foram subdivididos em grupos, tendo sido convidados a jogar um jogo violento (Grand Theft Auto V) ou não violento (The Sims 3), dependendo do grupo em que foram inseridos. O estudo também recrutou uma série de participantes que se mantiveram neutros, isto é, sem jogar videojogos durante todo o período da investigação, que serviram de base para as comparações comportamentais.
No final da investigação, os participantes do grupo violento de videojogos jogaram em média 35 horas e o grupo de videogame não violento 32 horas, num período de oito semanas. Usando uma série de questionários e medidas comportamentais para testar agressividade, atitudes sexistas e problemas de saúde mental, em comparação com os restantes grupos, os autores do estudo concluíram que jogar um videogame violento não teve efeitos negativos significativos em nenhuma dessas medidas.
“O conteúdo cria sempre sugestões na pessoa, pode tanto ter uma influência positiva, negativa ou neutra dependendo das condições internas e externas em que ela se encontra”, Soraya Bento, Psicóloga e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Mestre em Psicologia Clínica pelo ISPA-IU
Em conversa com a psicóloga clínica Soraya Bento, a mesma apontou para uma série de fatores internos e externos que condicionam os efeitos do consumo de media, inclusive dos videojogos.
A psicóloga afirma que a relação entre comportamentos agressivos e videojogos violentos não é absoluta, visto que os efeitos visivelmente observáveis podem ser um produto de uma série de antecedentes e propensões probabilísticas do contexto de vida deste jogador.
Fatores internos, como a personalidade e traços de psicopatia, podem suscitar algum tipo de comportamento e atitude num indivíduo desde as primeiras fases da sua vida. O seu consumo de media pode ter uma influência no seu comportamento como um efeito secundário dos traços preexistentes da sua personalidade.
Porém, não é uma relação definitiva devido a certos fatores como a capacidade humana de sublimação. Isto é, um conceito abordado por Sigmund Freud que consiste em transformar impulsos negativos em comportamentos socialmente aceites, colocando estes impulsos originalmente negativos ao serviço da sociedade.
“Os videojogos têm a possibilidade de sublimar a agressividade que é inata a qualquer ser humano”, afirma a psicóloga. Através de um processo de deflexão, os videojogos permitem que as pessoas lidem com a sua agressividade ou irritação quotidiana de uma forma que não seja prejudicial à sociedade. Os jovens entrevistados foram capazes de identificar a sublimação que provém de jogar, apontando para o efeito aliviador dos jogos à sua disposição.
Apesar de protagonizarem ações de violência em jogos da categoria de First person shooter (tiro em primeira pessoa), os gamers reportaram percecionar os videojogos estritamente como ficção, enquanto a sua realidade se rege por valores éticos e morais diferentes daqueles que são apresentados no jogo.
Em contraste com os estereótipos, os jovens entrevistados pelo Gerador declararam reter benefícios dos jogos, entre eles uma melhor resolução de problemas, tomada de decisões mais rápidas e precisas devido ao ritmo acelerado dos jogos, assim como uma maior atenção ao detalhe.
José Ferreira, estudante universitário e ex-gamer de competição, declarou como as constantes tentativas de avançar no jogo, em vez de gerarem em si pensamentos agressivos, impulsionam-no a pensar de maneira mais crítica, de forma a criar melhores estratégias para alcançar os objetivos do jogo.
Os benefícios cognitivos do gaming têm-se destacado cada vez mais como um tema emergente entre académicos. O valor educacional dos videojogos foi o tema de uma conferência internacional realizada pela Universidade Nova de Lisboa, onde foi abordado o uso dos jogos como uma ferramenta de apoio para o currículo escolar.
Francisco Nabais, estudante da licenciatura de História nesta universidade e um dos oradores deste seminário, após a análise e ligação dos vários jogos da saga de Assassin’s Creed às 51 unidades curriculares do seu curso de estudo, concluiu que 39 % destas unidades têm um currículo teórico que pode ser complementado com os visuais dos jogos desta franquia.
O estudante alertou também para o facto de que um único videojogo se pode adaptar a várias unidades curriculares, como é o caso de Assassin’s Creed III, que se enquadra em várias disciplinas dentro da licenciatura de História, sendo uma delas obrigatória para a conclusão desta licenciatura.
Propondo a implementação do uso de videojogos no currículo da universidade, Francisco destacou como a utilização de jogos na educação é um conceito que já tem sido explorado em projetos académicos como Playing in the past. O projeto, que consiste numa série de seis partes, transmitida no YouTube e na Twitch, foi levado a cabo por um conjunto de egiptólogos e professores universitários, que consideraram que a análise e exploração de Assassin’s Creed Origins era a melhor forma de suprimir a necessidade de obter uma visualização clara e realista do Egito Antigo, ao mesmo tempo que ensinavam a sua audiência sobre este período.
Quando questionados sobre as vantagens dos videojogos, os jovens mencionaram também a capacidade de aproximarem-se a indivíduos de todo o mundo, formando assim comunidades baseadas em interesses comuns.
Plataformas como Discord e Twitch têm servido como um ponto de encontro para gamers. Estas plataformas permitem-lhes realizar transmissões em direto enquanto jogam. E, através de um chat de mensagens, os visualizadores destas streams têm a habilidade de interagir entre si e com o jogador em tempo real, trocando ideias desde os videojogos e cultura pop até à vida em geral.
A streamer e estudante universitária, Marta Nunes, além da interação, realçou a capacidade das lives de proporcionarem momentos de distração das adversidades quotidianas, e como fazê-las possui o mesmo efeito sobre si.
“As lives acabam por ser uma forma das pessoas se desapegarem dos seus problemas. Assistem para se distrair e se entreter, mas muitas delas também acabam por ir ao meu chat desabafar. Sentem que têm um porto seguro”, Marta Nunes
No estudo “Video Games Are Social Spaces” publicado pela organização americana Psychology today, Andrew Fishman analisa como os videojogos podem servir como um espaço seguro para indivíduos com sintomas depressivos, ansiedade social ou pessoas naturalmente tímidas e/ou inibidas tornarem-se mais confortáveis com interações sociais.
Após experiências com clientes para entender o impacto que os videojogos tiveram na sua saúde mental, o assistente social concluiu que as interações nos jogos “permitem que as pessoas comuniquem quando quiserem, com pouca ou nenhuma pressão para responder imediatamente e sem exigir que elas estejam no mesmo espaço físico”, por isso podem agir como um impulso para socializar.
A qualidade de aproximar as pessoas não está ligada apenas ao meio digital. Gonçalo, José, Wilson e Duarte são alguns dos jogadores que partilharam já ter frequentado torneios e convenções que reúnem uma comunidade de jogadores com interesses similares.
Apesar da inclusão inerente aos videojogos, por reunirem jogadores de diferentes idades e origens culturais, as gamers femininas ainda são consideradas uma minoria entre os consumidores desta indústria.
Marta, Helena e Raquel foram as gamers que participaram nesta pesquisa e são algumas das mulheres que têm contribuído para a distorção da perceção de gamers como jovens masculinos. Os efeitos deste estereótipo, muitas vezes, resultam da ideia de que os homens são melhores jogadores em comparação com as mulheres, simplesmente pela crença de que os videojogos são direcionados para o público masculino.
“Olham para nós como se fôssemos aliens quando estamos no jogo… Não valorizam a nossa capacidade de jogar”, Marta Nunes
Quando questionadas sobre a ausência de figuras femininas na indústria, fizeram sobressair a imagem hipersexualizada de personagens femininas nos jogos como um dos motivos.
As entrevistadas apontaram para a necessidade da representação de figuras femininas nos videojogos, respetivamente de imagens e enredos baseados em realidades modernas compartilhadas entre mulheres.
Segundo Raquel Rafael, a inclusão nos videojogos consiste também na equidade nas representações, de forma que as figuras femininas não sejam apenas representadas, mas que este conteúdo seja abordado com a mesma relevância que é atribuída às personagens masculinas.
A gamer exemplifica o jogo Mass Effect, que possibilita a opção de género para o protagonista do jogo, mas ainda assim tem uma preferência por personagens masculinas na elaboração da capa do videojogo. “Depois de um tempo surgiu uma personagem feminina no verso da capa, mas porque é que não poderia ser ao contrário?”
Apesar de os testemunhos destes jovens não representar toda a comunidade de gamers em Portugal, as suas experiências levantam a questão de como os media generalistas podem ser mais representativos desta comunidade, e ainda, como podem agir para colmatar estas perceções sociais.