Cada vez mais tenho reparado como a difusão de ideias ou premissas questionáveis se apoiam em confusões conceptuais. Aquilo que poderia ser um argumento em prol de determinada ideologia perde valor, desde logo, por uma formulação básica assente em conceitos com definições trocadas.
Há dias vimos várias pessoas partilharem uma crónica de opinião de Henrique Raposo, inclusive em protesto, publicada pelo jornal Expresso, e que tinha como frase de destaque na imagem partilhada pelo jornal nas redes sociais: “Aceitar-se que um homem transsexual passa de repente a ser uma mulher igual a todas as outras é um desrespeito pela mulher e pelas lutas feministas que ainda estão em curso”. O argumento perde força por se perceber que há um profundo desconhecimento, desde logo, sobre o que é ser uma pessoa transsexual. Se estamos a falar de uma mulher, no limite será uma mulher transsexual e não um homem transsexual, como aparece escrito nessa publicação. Ou seja, uma pessoa a quem foi atribuído o sexo masculino à nascença, mas que se identifica com o género feminino, é uma mulher transsexual. Já uma pessoa que nasce com o sexo feminino, mas se identifica com o género masculino, é um homem transsexual. Então, neste caso, o autor quereria, certamente, dizer uma mulher transsexual “passa a de repente a ser uma mulher igual a todas as outras”.
Diria ainda que existe, aqui, uma confusão com o conceito de género e um desconhecimento daquilo que é a vivência de uma pessoa trans*, seja homem ou mulher. Enquanto mulher cisgénero, não sinto que a minha luta feminista seja minimamente menorizada por outras mulheres, sejam elas cis* ou trans — somos mulheres. Ser feminista é ser inclusiva, não é perpetuar agressões e continuar a discriminar pessoas que podem ter vivências diferentes da nossa. Uma mulher cis é uma mulher. Uma mulher trans é uma mulher.
O autor advoga que é incompatível uma pessoa sensibilizar para a questão das dores menstruais e, simultaneamente, “aceitarmos que um homem passa a ser mulher só porque é transsexual” — mais uma confusão: a diferença entre sexo e género. Sexo diz respeito a um conjunto de características sexuais (morfológicas, hormonais, genitais e cromossómicas) e, ao contrário do que muitas vezes nos ensinam na escola, existem, pelo menos, três sexos (não dois): feminino, masculino e intersexo*. Já a identidade de género é um elemento de operação social, ou seja, diz respeito às características sociais que são apreendidas e estereotipadas pela sociedade em que crescemos e nos desenvolvemos, é a história individual de cada pessoa, existindo vários géneros, desde ser-se mulher, homem, pessoa não binária*, género fluído, entre outros. Por isso, um homem não passa a ser mulher. Uma mulher nasce mulher e um homem nasce homem, não se passa a ser de um género diferente. Uma mulher trans é uma mulher desde sempre, esse é o seu género. Nasce com a pessoa, não é uma opção, uma vontade... é uma identidade. O que se poderá dizer é que uma pessoa que nasceu com o sexo masculino pode fazer uma transição para o sexo feminino de forma a diminuir a disforia de género* que sente ao observar as suas estruturas sexuais, por as ver como dissonantes com o seu género e a forma como entende a sua expressão.
Depois, o autor questiona — “esse homem que se diz mulher” — querendo, acredito, dizer apenas essa mulher — “nunca sofreu estas dores crónicas na biologia e nunca foi menorizado por ser mulher pelo machismo dominante”. Escreve ainda: “Hilary Mantel, JK Rowlings e Atwood consideram que ouvirmos coisas como ‘pessoa com útero’ ou ‘mulher sem útero’ não é só uma imprecisão factual, é uma ameaça às mulheres e ao feminismo. E têm razão” — quantas mais vezes teremos de ler este argumento? O que faz de uma mulher, mulher, é a sua menstruação? Uma mulher cis que nasce sem útero não é uma mulher? Uma idosa cis, que passou pela menopausa e já não menstrua, deixou de ser mulher? Uma mulher cis que teve de recorrer a uma histerectomia* por questões graves de saúde, deixou de ser mulher? Então, uma mulher trans perde a sua feminilidade e direito a ser mulher porque não tem útero e não menstrua? A este propósito, escrevi uma reportagem para a Revista Gerador em que aprendi muito. Em que, enquanto mulher cis, me senti mais mulher por finalmente perceber o papel que a menstruação tem na minha vida e que a mesma não determina, de forma alguma, a minha existência enquanto mulher. Convido-vos à sua leitura, aqui.
Por outro lado, esta ideia de que a transsexualidade é “um desrespeito pela mulher e pelas lutas feministas” parece-me, sim, um desrespeito por parte de mais um homem que vem a público dizer às mulheres, cis ou trans, o que é, ou não, ser-se mulher. Desengane-se quem acha que a luta de uma mulher trans é inferior à de uma mulher cis. Se uma mulher cis passa por discriminações sociais constantes, imagine-se uma mulher trans que tem de carregar às costas não só o facto de ser mulher, como o de ser trans. São vivências iguais? Não, de facto, não me parece que sejam, porque uma mulher trans passa, tendencialmente, por muito mais discriminação e agressões do que uma mulher cis. Isso faz com que não devamos incluir mulheres trans na luta feminista? Não. Somos mulheres. Porque se continua a insistir nesta ideia primitiva de que não há espaço para todas? Que a identidade de umas anula a identidade de outras? Há espaço para todas as mulheres estarem lado a lado, há espaço para existirmos sem nos excluirmos, e quando percebemos isso, tornamo-nos mais fortes e poderosas numa sociedade ainda estruturalmente machista.
Mudando de conceitos e de exemplo, há outra dupla que tenho repetidamente visto ser confundida, ainda que, por vezes, de forma subtil. Falo da noção de práticas sexuais e de orientação sexual. Quantas vezes já lemos ou ouvimos dizer que um homem que gosta de estimulação anal na prática sexual, por exemplo, é homossexual? Um homem heterossexual pode gostar de estimulação anal durante o sexo sem que isso tenha qualquer influência na sua orientação sexual. Aliás, a próstata é identificada como o ponto G dos homens, ou seja, uma zona que, quando estimulada, lhes dá muito prazer, e a mesma é estimulada através do ânus, por exemplo através da penetração (com dedos, brinquedos, etc.). O que leva a sociedade a condenar, a um homem heterossexual, a descoberta do prazer decorrente de várias formas de estímulo anal? Mais uma vez, penso que bastaria saber que práticas sexuais não são um sinónimo de orientação sexual para se perceber que essa é uma ideia sem fundamento. O que determina a nossa orientação sexual é o género das pessoas por quem nos sentimos sexualmente atraídos/as e com quem nos envolvemos, não o que decidimos fazer na intimidade. Práticas sexuais não determinam a orientação sexual.
Que bom seria todas as pessoas, independentemente do seu género, se sentirem livres para explorar o seu corpo e o prazer que dele podem obter sem preconceitos. E que bom seria se esta reflexão começasse nas escolas, com uma disciplina de educação sexual ministrada de forma inclusiva e verdadeiramente informada — não existem práticas sexuais para pessoas heterossexuais e práticas para pessoas homossexuais; infeções sexualmente transmissíveis para pessoas heterossexuais e infeções para pessoas homossexuais; métodos contracetivos para pessoas heterossexuais e métodos para pessoas homossexuais, etc. E, aqui, falo em dois tipos de orientação sexual, quando poderia enumerar tantos outros.
Sou uma mulher cis e heterossexual e gosto que me perguntem se o sou, porque ter uma identidade que foge ao que é tido como norma social não deveria ficar relegado para o lugar do outro. Posso ter uma aparência (expressão de género) que socialmente remete para a de uma mulher, mas podia sentir-me diferente, daí ser-me cada vez mais importante apresentar-me enquanto mulher cis. Faço-o também para que se entenda o meu lugar de fala, que não é o de uma pessoa queer, por exemplo. Mas, precisamente por não ser uma pessoa queer — pelo menos até à data, porque reconheço também que, em termos de orientação sexual, o amor é um espectro — tento procurar informação junto de quem o é. Nos últimos anos tenho aprendido e crescido por não me achar dona da verdade, não me fechar na ignorância do meu contexto. Dar espaço para ouvir outras pessoas, a sua forma de sentir, as suas experiências e aprender. Ainda me falta conhecer muita coisa, mas todos os dias faço por neutralizar os meus privilégios, não discriminando apenas devido à minha ignorância.
*Notas sobre alguns termos usados ao longo do texto:
Disforia de género: desconforto em relação ao próprio corpo ou aparência que podem sentir as pessoas trans ou não, em níveis diferentes de pessoa para pessoa e podendo evoluir com o tempo e o ritmo da transição física e social.
Histerectomia: cirurgia ginecológica que consiste na remoção do útero e/ou das estruturas associadas como as trompas e os ovários.
Pessoa cisgénero (cis): pessoas que ficam na assignação de género que lhe foi dada à nascença.
Pessoa intersexo: pessoa que nasce com características sexuais (órgãos e glândulas sexuais e padrão cromossómico) que não se enquadram nas noções binárias de sexo – feminino/masculino.
Pessoa não binária: pessoa que não se encaixa nas categorias de género tradicionais eurocêntricas – homem/mulher.
Pessoa transgénero (trans): palavra guarda-chuva que abrange as pessoas autoidentificadas como transexuais, transgénero, não-binárias, travestis e as pessoas que não se revêm no género assignado à nascença. Ex. Uma pessoa que nasceu com sexo feminino, mas que se identifica como um homem, é um homem trans.
-Sobre Andreia Monteiro-
Cresceu na terra que um dia alguém caracterizou como o “sítio onde são feitos os sonhos” e lá permanece, quer em residência, quer na constante busca por essa utopia. É licenciada em Comunicação Social e Cultural, na vertente de Jornalismo, pela Universidade Católica Portuguesa, e mestre em Ciências da Comunicação, na vertente de Jornalismo, pela mesma entidade. É, desde maio de 2019, a diretora editorial do Gerador, Associação Cultural a que se juntou no final da sua licenciatura. Apaixonada pelo mundo artístico, é uma leitora insaciável, a companheira constante de um lápis e papel, uma curiosa de pincel na mão, uma amante de teatro e cinema e está completamente comprometida com a beleza da música que tem vindo a descobrir. É, desde 2019, aluna na escola de jazz do Hot Clube de Portugal. Acima de tudo, é uma criatura com pouco mais de metro e meio cujo desassossego não deixa muito espaço para tempos mortos.