Drag Queen como Arte de Quebrar Barreiras
Começou, entre amigos e família, em jeito de brincadeira, a trazer ao mundo algumas destas personagens, seguiu, mais tarde, para os vídeos e rapidamente, através do online, tornou-se, o próprio Valdemar, numa personagem conhecida e acarinhada na ilha de São Miguel, pela sua genuinidade, criatividade e forma peculiar de abraçar com palavras quem o rodeia. As personagens cresceram e atualmente interpreta a Drag Queen mais conhecida e reconhecida dos Açores: a Valley Dation. Entre maquilhagem colorida, uma porção q. b. de comédia e uma dose reforçada de consciencialização, tenta quebrar barreiras e preconceitos e consegue levar esta mensagem além-Atlântico.
Estivemos à conversa com o Valdemar para conhecermos a Valley Dation, entre coroas de flores e gargalhadas genuínas.
Gerador (G.) — O que é, para ti, uma Drag Queen?
Valdemar Creador (V. C.) — Uma Drag Queen é uma personagem que engloba todo um exagero e tributo à figura feminina. É uma celebração e exaltação do feminino.
(G.) — Quem é a Valley Dation?
(V. C.) — A Valley Dation é um alter ego criado por mim, Valdemar Creador, como forma de glorificação ao meu lado feminino e em homenagem às mulheres que me inspiram. Tratando-se, a Valley Dation, de uma validação do meu lado feminino e artístico, que surge em 2017, através de um sentimento de frustração meu, decorrente do facto de, na altura, estar a trabalhar na indústria da moda, em Lisboa, e sentir-me totalmente limitado. Tinha funções que dependiam sempre de opiniões e gostos alheios. Nunca eram a minha visão.
(G.) — Como surgiu a necessidade de criar a Valley Dation? Trata-se, efetivamente, de uma necessidade?
(V. C.) — Surgiu como uma espécie de outlet criativo. O Drag é um conjunto de todas as minhas paixões, ao mesmo tempo e num só: representação, moda, comédia, maquilhagem. Na verdade, o começo do meu Drag surgiu, como referi anteriormente, em momentos de frustração e em que não me deixavam explorar as minhas próprias visões. Foi nesta altura que senti necessidade de chegar a casa e aprender sobre maquilhagem. Ocupava as minhas folgas a transformar-me: maquilhava-me, fazia o cabelo, os visuais, muitas vezes com peças compradas, porque eu não sei coser, [risos] é um grande desgosto meu, mas ainda não aprendi a coser, foi das poucas coisas que ainda não consegui aperfeiçoar nesta área! Também sempre adorei representação, teatro e comédia, fazer as pessoas rir enche-me o coração. Quando me apercebi de que podia acumular todos estes gostos na Valley Dation e que conseguia aprimorar estes talentos percebi que tinha de continuar.
(G.) — Recordas a tua primeira exposição como Drag? O que sentiste e como te motivaste para começares?
(V. C.) — Quando me mudei para Lisboa, comecei a frequentar clubes e bares com Drag Queens, e sentia-me muito inspirado. Prometi a mim mesmo que, um dia, experimentaria o Drag, mas era suposto ter sido só essa vez. Entretanto, instalou-se o bichinho, incentivaram-me a continuar, e comecei a querer evoluir a personagem, assim como as técnicas de maquilhagem. Participei num concurso, o Miss Drag Lisboa 2018, e, com apenas três meses de experiência Drag, consegui arrecadar o 4.º lugar, o que foi um momento crucial no meu percurso, no percurso da Valley Dation. Esta classificação sentia-a como uma forma de me dizerem para não desistir, percebi que se em tão pouco tempo consegui ficar tão bem posicionado, então, com trabalho e empenho podia chegar bastante longe.


(G.) — Quem foi a tua maior inspiração para te iniciares no mundo do Drag Queen?
(V. C.) — O programa Rupaul’s Drag Race tornou o Drag, de certa forma, mais acessível e mainstream. Creio que essa exposição a uma arte tão fechada e escondida tenha sido o que mais me motivou a querer experimentá-la, assim como a ver que não era o “bicho noturno” que a sociedade vê.
(G.) — Como reagiu a tua família e amigos mais próximos? Era um desejo teu que era já conhecido por eles?
(V. C.) — A minha família próxima sempre me viu brincar e explorar personagens. Sempre me fascinei pela identidade como um fenómeno sociológico altamente construído e adaptável. Quando surgiu a Valley, para eles foi apenas “mais uma personagem do Valdemar”. O mesmo aconteceu com o meu grupo de amigos.
(G.) — A Drag Queen atua, maioritariamente, como forma de resistência e expressão do movimento LGBTI, mas também atua tendo por base o entretenimento. Como se enquadra a Valley Dation entre estas duas fronteiras?
(V. C.) — Uma Drag Queen pode ter vários pontos fortes: dança, moda, comédia, música… No meu caso, exploro bastante a comédia. Para além de ser algo para o qual sempre tive jeito, a gargalhada é uma maneira bastante inteligente de trazer ao público assuntos mais sérios e políticos. A Valley Dation é aquele doce que recebíamos na infância depois de uma ida ao médico.
(G.) — Como é fazer Drag num arquipélago tão singular, mas tão pequeno como os Açores?
(V. C.) — Comecei por explorar o Drag em Lisboa, até porque, infelizmente, não existem oportunidades para isso nos Açores. No entanto, é com muita alegria que tenho conseguido trazer a Valley a eventos da minha ilha, São Miguel. Recentemente, consegui levar o meu show Valley of the Dolls ao Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, concelho de onde sou natural. Entretanto, já colaborei e atuei também com o Festival Tremor, Walk & Talk, e, nos próximos meses, atuarei nos Teatros Micaelense e Ribeiragrandense. Fico extremamente feliz e consigo, também, suspirar de alívio, antigamente não me sentia minimamente confortável em preparar-me para um espetáculo e sair assim de casa, andar pela rua e enfrentar os olhares, os comentários. Encaro isto como um crescimento dos açorianos, demos largos passos para a frente, de há uns anos para cá tenho a certeza de que se me vissem a andar assim na rua ficavam a associar que ando a trabalhar na noite, que não considero que tenha algo de errado, ou até, muitas vezes, associavam o Drag a prostituição. O grande problema era que as pessoas não sabiam a diferença e associavam sempre esta arte à “má vida”, como gostam de dizer por cá, aos maus vícios e à vida noturna e não…eu não tenho nenhum vicio, sem ser guloseimas e doces! [risos]


(G.) — Sendo que vives, atualmente, em Lisboa, encontras desigualdades claramente visíveis entre ser Drag em Portugal continental e nos Açores?
(V. C.) — Sim, sem dúvida. Mas creio que estou a “desbravar terreno” no sentido de uma melhoria em relação a esse fechamento dos Açores para o Drag enquanto arte. É muito gratificante conseguir fazer isto em São Miguel, a verdade é que eu fiz Drag em Lisboa durante quatro anos até conseguir ter uma oportunidade aqui! E tentei diversas vezes procurar apoios e projetos que me apoiassem, mas foi tão difícil que agora que começa a ser real começa por ser um desafio novo e bom que quero agarrar!
(G.) — No mês de setembro, organizaste o primeiro evento de performance Drag, o Valley of the Dolls, com grande visibilidade, em São Miguel. Como foi levar a cabo esta iniciativa nos Açores?
(V. C.) — Foi uma experiência mágica e surreal. Foi um momento inesquecível, e que sempre terei como uma das memórias mais calorosas no meu coração. O Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas foi excelente a nível de apoio e colaboração. Quero aproveitar, desde já, para agradecer e congratular por todo o profissionalismo, amor e atenção com que me receberam. Recebemos, tanto eu como o Arquipélago e as artistas convidadas, imensas mensagens de apoio e carinho. O feedback foi muito bom e bonito de se ver. Havia muitas pessoas emocionadas.
(G.) — Consideras que os portugueses, e neste caso os açorianos, estão consciencializados sobre o que é uma Drag Queen? O que gostavas de transmitir?
(V. C.) — Creio que ainda não, mas que cada vez mais caminhamos em direção a esse “abre-olhos”. O que quero transmitir é a ARTE que o Drag é, e espero que o vejam dessa forma. Pretendo, também, passar uma mensagem geral sobretudo de empatia, antes de qualquer julgamento, vamos pensar: “Quem é aquela pessoa?” Sim, porque antes de qualquer Drag, de qualquer vestimenta ou qualquer pintura eu, e todos os meus colegas, somos PESSOAS, antes de vermos esta personagem toda, isto – referindo-se à maquilhagem e acessórios – sai tudo em quinze minutos e por de trás disso eu, Valdemar, sou muita coisa e nem todas as coisas são negativas. Esta arte não vive de coisas negativas. Pretendo passar esta mensagem: antes de qualquer julgamento pensa que quem está ali é uma pessoa. Sejam mais empáticos, sejam mais amor e menos guerra.
(G.) — Este ano atuaste, pela primeira vez, para crianças, como Valley Dation. Consideras a arte Drag uma forte potencialidade de caráter educativo e pedagógico?
(V. C.) — Claro que sim, que considero essa exposição pedagógica e educativa! Só aprendemos através de exposição e exploração. Confesso que nunca tinha produzido um espetáculo só a pensar num público infantil. Foi um grande desafio, senti que era a cereja no topo do bolo na minha carreira e que tinha mesmo de aproveitar a oportunidade que me estavam a dar. As crianças adoraram, e o feedback foi sempre positivo e bonito. Senti, por parte das crianças, imensa curiosidade, vinham ter comigo, abraçavam-me, perguntavam-me se era verdade que eu era um menino e quando eu respondia afirmativamente instalava-se a desconstrução, sem qualquer tipo de preconceito, abraçavam-me da mesma maneira e diziam que me adoravam da mesma forma após saberem que eu era um menino, como eles diziam. [risos]. Foi bom apanhar um público nesse início de vida, onde ainda podem ser moldados através da exposição e com tanta vontade de aprenderem e desconstruírem preconceitos, afinal, ninguém nasce homofóbico, ninguém nasce racista, ninguém nasce preconceituoso. Tanto as crianças e como os pais estavam encantados com o espetáculo, e mostraram-se recetivos a serem educados.
(G.) — Tens sido alvo de reportagens a nível regional e nacional. De que forma os órgãos de comunicação social têm colaborado para a quebra de preconceitos? Consideras que o contributo tem sido positivo ou as críticas e julgamento sobressaem?
(V. C.) — Estou muito grato pelas reportagens e entrevistas que me têm feito. Como referido acima, a exposição é sempre o melhor caminho para a educação e desconstrução de preconceitos ou suposições. No entanto, para ser sincero, no início foi muito difícil para mim ser levado a sério por alguém, além de que concorria a tudo o que possam imaginar quanto a apoios artísticos ou culturais e até eu conseguir ser aceite em alguma coisa, em algum projeto, eu admito que foi muito difícil. Mas acredito que é graças às oportunidades que tenho tido, inicialmente no Estúdio 13- Espaço de Indústrias Criativas e no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas e futuramente no Teatro Micaelense e no Teatro Ribeigrandense, a nível regional, e a toda a cobertura e exposição, como esta que me está a ser possível no Gerador, que nós vamos conseguindo avançar cada vez mais e espero que todas as pessoas que lerem isto e todas as pessoas que assistem aos meus espetáculos, desde organização, aos meus colegas, às organizações culturas e artísticas todas e às pessoas que compram bilhetes para assistir, percebam que realmente vale a pena apoiar e, no meu caso e na minha Região, vale a pena apoiar o talento de “casa”, ou seja, o talento açoriano primeiramente.
(G.) — Como lidas com o preconceito?
(V. C.) — Tento desconstruí-lo e educar o preconceito. Se a pessoa não se mostrar recetiva a isso, sinceramente não há muito mais que eu possa fazer senão continuar a minha jornada e esperar que um dia consiga ver as coisas de outra forma.


(G.) — Há já lugares em que és reconhecido como Valley Dation?
(V. C.) — Sinceramente não é muito frequente, mas já aconteceu! Apanham-me sempre um pouco desprevenido, porque nunca estou à espera, e porque no meu dia a dia sou mais introvertido, mas agradeço sempre qualquer elogio/reconhecimento que me deem e fico muito feliz por saber que posso inspirar alguém.
(G.) — Para outras pessoas és já uma inspiração. Que mensagem gostavas de passar para quem se inspira na Valley Dation ou para quem ambiciona começar no mundo Drag?
(V. C.) — Obrigado, espero que sim, que inspire! Gostava de passar uma mensagem de autovalidação de nós enquanto pessoas, de amor-próprio. A Valley é todo um jogo de brincadeira com essa insegurança, porque sou uma pessoa bastante insegura, e tenho-a como uma espécie de lembrete que me diz: “Tu és válido, tu és suficiente.” A Valley é, igualmente, aquela amiga que não me deixa desistir a meio do percurso ou desanimar. Gosto de relembrar que antes de fazer a minha primeira aparição como Drag nos Açores, no Estúdio 13, já tinha colaborado como Valdemar com esta associação, já tinha dado algumas aulas no Estúdio 13 de maquilhagem e feito, também, algumas intervenções lá, no verão, com crianças e foram estas iniciativas que os levaram, mais tarde, a abordar-me para trazer a Valley Dation ao Estúdio e conseguir conjugar algo que eles sabiam que eu adorava, a arte Drag, com o meu trabalho de maquilhagem que já conheciam e a comédia. Tudo começou por aqui e depois as portas foram-se abrindo de forma fluida e dinâmica.
(G.) — Quem é o Valdemar fora da Valley Dation?
(V. C.) — O Valdemar é um pouco mais introvertido, mais tímido. Sou uma pessoa que absorve imenso a energia à sua volta, e que muita vez precisa de se isolar para recarregar baterias. Acho que as pessoas esperam que eu esteja sempre on, extrovertido e a entreter, e enquanto Valdemar isso não acontece tanto. Há toda uma dualidade de personalidades dentro de mim. Para quem acredita em astrologia, deve ser por ser do signo Gémeos [risos].