Miguel Valente tem 22 anos e vive em Oeiras. É licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, e especializou-se na vertente de Cinema e Televisão.
O seu percurso até aqui tem sido no mínimo diverso: trabalhou como treinador de guarda-redes de futsal e como assistente de produção. De momento assume a função de copywriter, “a fim de ocupar parte do tempo que antes ocupava com o medo de subir a palco e de seguir o sonho de ser humorista”.
Venceu a categoria de Humor, da Mostra Nacional de Jovens Criadores (MNJC), com o projeto de vídeo "Se calhar alguém já falou disto". “Decidi falar sobre as coisas que quero falar, mas enquanto faço algum tipo de atividade; porque se calhar alguém já falou de tais assuntos, mas não enquanto realizava essas atividades”, explicou, no breve texto que serviu de apresentação.
A vitória trouxe-lhe projeção mas, acima de tudo confiança. “Acho que essa foi a principal consequência: eu sentir que devo mesmo continuar”, diz ao Gerador. Para o futuro diz querer “fazer disto vida”, mas assume que o caminho passa por colaborar e melhorar.
Gerador (G.) - Na descrição do teu projeto referes que o teu trabalho “não é mais do que uma resposta ao trauma causado pelos programas de deteção de plágio da faculdade”. Foi daqui que nasceu o nome do teu projeto [“Se calhar já alguém falou disto”]?
Miguel Valente (M.G.) – Na verdade isso foi só mais uma brincadeira para a sinopse, porque só me lembrei disso depois. O projeto tem que ver mais com [o facto de], sempre que eu tenho uma ideia ou algo parecido, ter receio que alguém já tenha pensado nisso. Então, [isto] foi uma defesa que eu arranjei para poder dizer as minhas coisas na mesma, sem esse problema. Neste sentido, mesmo que alguém já tenha falado, não o fez enquanto fazia o que eu estou a fazer. Portanto, é uma defesa, basicamente.
G. – Mas isso acontece porque achas que os temas que falas nos teus vídeos são já muito comuns?
M.V. – Sim. Em termos de temas gerais, sim, mas, mesmo arranjando esta defesa, tento sempre que as coisas sejam originais e que ninguém tenha falado daquela forma. Isto era mais um pretexto para ter um conceito. Eu tento sempre ser diferente... não que seja especial, mas tento fazer coisas diferentes para que possa ter a minha voz.
G. – Como é que achas que isso te distingue de outros humoristas ou projetos de humor que existem atualmente?
M.V. – A diferença que pode haver é, apesar de a comédia ter também muita mentira, eu tento ser o mais honesto dentro das ideias que eu tenho. Aquilo que eu acho piada é aquilo que eu faço. Tento sempre ser honesto nesse sentido e, portanto, acho que é essa a diferença. Não é que seja melhor ou pior...
G. – Quais são as tuas referências no panorama nacional e internacional?
M.V. – A nível nacional, sempre os grandes, claro: Ricardo [Araújo Pereira] e o Bruno [Nogueira], mas também o Salvador Martinha ou os Boomerang. Gosto muito do Pedro Durão e do Ricardo Maria. Internacionalmente, o Bo Burnham, sempre. Um outro artista que eu gosto muito é o James Acaster. Essas são as minhas duas principais referências mas vou vendo um bocadinho de tudo. Dave Chapelle é sempre incontornável... e mais uns quantos.
G. – Foi a inspiração que retiraste dessas pessoas que te levou a quereres desenvolver um projeto deste tipo ou tiveste outra motivação?
M.V. – Ver outros projetos de pessoas que eu admiro faz-me sempre querer fazer mais e melhor mas acho que, mesmo que não os tivesse encontrado no meu caminho – claro que ia encontrar, porque são bastante conhecidos –, ia sempre acabar aqui porque acho que é isto que me faz querer fazer coisas e levantar da cama todos os dias. É isto que gosto de fazer e acho que iria sempre acabar por fazê-lo.
G. – Qual achas que é o papel que o humor desempenha atualmente?
M.V. – Na minha opinião é sempre fazer rir.
G. – Mas, de algum modo, tem uma importância social?
M.V. – Acho que a importância social pode vir sempre por acréscimo. A importância do humor é sempre rir e fazer rir as outras pessoas. Para mim é essa a função que tem. Não é mais do que isso. O que vier por acréscimo tem que ver com os temas que as pessoas escolhem falar e com o impacto que isso pode ter, mesmo com as redes sociais e etc. Mas não acho que essa seja a sua função, acho que é só uma consequência.
G. – Ou seja: na tua opinião, a crítica social que eventualmente possa existir não está na origem.
M.V. – Sim. Para mim, a crítica social pode ser usada como premissa para fazer rir, mas acho que não deve usada como arma de arremesso. Acho que a vontade de fazer uma crítica social não se deve sobrepor à vontade de fazer rir. Às vezes, acho que se sobrepõe um bocadinho e penso que não está certo. Mas claro que cada um tem a sua opinião sobre isso.
G. – O humor deve ou não ter algum tipo de limite?
M.V. – Essa pergunta é difícil de responder. Não sei... Há sempre os limites que o próprio humorista tem e que o público vai ter, mas não acho que haja um limite que se possa definir consensualmente. Acho que vai havendo limites dependendo da pessoa. A linha mais importante é se fez rir ou não, mas claro que pode haver maldade no humor.
Pode haver maldade em tudo mas acho que o humor honesto é aquele que quer fazer rir e não provocar outra coisa. Portanto, o limite é de quem faz o humor e de quem o vê. Acho que é isto.
G. – Para ti, há assuntos com os quais não se deve “brincar” ou, pelo contrário, tudo é passível de ser satirizado?
M.V. – Acho que há sempre um ângulo que pode funcionar e que todos os assuntos podem ser tema de humor. Acho é que depois há a questão de ser bom humor ou não. Depende se é com essa vontade de comédia ou se é humor para ofender ou ser ‘edgy’ – que há sempre essa vontade. Mas ser ‘edgy’ às vezes acontece, mas não deve ser porque sim. Acho que deve acontecer porque o objetivo é que a piada seja boa. Penso que é esse o foco, sempre.
G. – Falando da recente situação que envolveu Ricardo Araújo Pereira, em que o facto de ele não ter convidado o líder do partido Chega para estar presente no programa deu origem a polémica e até a uma deliberação condenatória da ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social]. Este é um limite que ele definiu enquanto humorista. O que pensas disto? Achas que ele devia ter abrangido todos os líderes partidários ou concordas que ele tenha agido desta forma?
M.V. – Acho que é mesmo uma decisão dele. Não acho que deva haver um grande escrutínio sobre isso porque o programa é dele e a decisão é dele. Quem está a fazer o programa e a escrevê-lo deve escolher quem quer entrevistar porque o humor não é debate político. É um programa e escolhem-se os convidados que se quer convidar. Não acho que deva ser um assunto muito importante ou que deva ser fraturante até, porque o Chega tem várias plataformas onde pode ter voz. E tem voz no Parlamento. Não é por aí. Sinceramente acho que não é um programa da SIC que vai definir quem é que tem liberdade de se exprimir porque, claramente, sabemos que toda a gente tem, caso contrário o Chega não estava no Parlamento. Acho que isso é claro.
G. – Então acreditas que deve estar bem separada a lógica de entretenimento e a lógica social, ou, neste caso de suposta “liberdade de expressão” – que não está em causa, se analisarmos o problema.
M.V. – Sim. Acho que a liberdade de expressão não se define por aquilo que um humorista [faz] ou por quem convida ou não para o seu programa. Isso também é uma liberdade que importa: a de as pessoas decidirem quem querem convidar para o seu programa. Claro que, convidando toda a gente menos um, vai gerar polémica e vai ser assunto, mas não acho que seja “o” assunto.
O assunto é: o programa foi ou não foi engraçado? Se calhar, não. Não sei. Outra questão é a liberdade de expressão política. Claro que são duas coisas que se podem influenciar mutuamente. Há bom e mau humor político, mas, ao mesmo tempo, são duas coisas separadas e acho que não se deve comparar um programa, em que há uma entrevista onde muitas vezes as perguntas são pré-feitas, com pensamento e raciocínio político, que é uma coisa completamente diferente.
G. – Achas que se confunde essa lógica? Uma crítica a um político é confundida com uma manifestação de oposição?
M.V. – Sim, acho que se confunde um bocado isso. Às vezes criticar um político através do humor é só encontrar uma falha de lógica ou uma coisa que se possa usar para fazer uma piada. A pessoa pode até votar nesse partido... não está interligado. Por isso é que há tanto humor político, é porque há tantas falhas no raciocínio político para encontrar. Tem a ver com essas falhas e com o que pode ser engraçado e não propriamente com a pessoa ou o partido.
G. – Em relação à MNJC e ao projeto que trouxeste, porque motivo decidiste participar nesta iniciativa? Formulaste o projeto com esse intuito ou já era algo que desenvolvias?
M.V. – Não o fiz para a MNJC. Eu comecei e escrevê-lo em final de 2021 e depois fui gravando no início do ano 2022. Não foi com isto em vista. Eu publiquei no Instagram e, quando soube da MNJC – acho que foi também pelo Instagram – pensei: porque não aproveitar o projeto que eu tenho? Então compilei três vídeos, de modo a conseguir os 15 minutos exigidos e tentei a minha sorte. Não esperava ganhar, de todo. Ser selecionado já era uma coisa boa para mim, mas quis só tentar a minha sorte porque tinha um projeto e queria que chegasse mais longe. Quero fazer disto vida, portanto tentei a minha sorte.
G. – Até agora, sentiste alguma repercussão por teres ganhado? Tiveste mais projeção?
M.V. – Senti alguma, na altura. Quer dizer não foi muita mas, para o que era a minha vida normal foi bom ter ido à MNJC. Foi bom ter ganhado e ter esse reconhecimento mas acho que a principal repercussão foi [ter conseguido] alguma confiança e perceber que, se calhar, estou a fazer a coisa certa, porque é um reconhecimento que é importante. Acho que essa foi a principal consequência: eu sentir que devo mesmo continuar.
G. – O que achas que representa para os jovens das várias áreas artísticas haver este tipo de plataformas que permitem mostrar o seu trabalho e divulgar os seus projetos?
M.V. – Acho que é muito importante para um país que tem - e toda a gente sabe isto – pouco investimento na cultura. É muito importante haver estas iniciativas porque, não só há maior reconhecimento, como há um sentimento de pertença a alguma coisa, não só a um tipo de arte, mas à arte no geral. O [facto] de sentir que estamos a fazer isto por alguma razão e que há sítios – neste caso uma plataforma ou uma mostra – em que podemos mostrar o nosso trabalho, é super importante. Espero que haja mais e que continue porque, isto, pelo menos para mim, foi uma oportunidade bastante boa. E agradeço bastante.
G. – Planeias continuar a desenvolver este projeto ou pretendes começar outros?
M.V. – Se voltar a este projeto tem de ser numa altura em que tenha mais meios para fazer uma coisa melhor. Eu não quero continuá-lo da mesma forma. Fiz seis episódios e, se voltar [a fazer] tem que ser melhor, maior e com mais produção. Por agora vou tentar fazer outros projetos pequeninos, com o que consigo. Tenho mais uns reels no Instagram, que vou pondo para continuar a trabalhar e não estar parado. Vou fazendo outros projetos. Agora estou a pensar noutro e não neste, mas tenho em vista, mais tarde, continuá-lo de alguma forma.
G. – De forma individual ou com outras pessoas?
M.V. – Se surgir a oportunidade, eu tenho todo o gosto e vontade de trabalhar com outras pessoas. Acho que o trabalho coletivo é muito importante porque, por vezes, temos ideias e precisamos que alguém diga se isto é bom, se é mau. Por isso é que o stand-up é tão diferente do resto. O stand-up tem a resposta no momento. Sabemos se a piada foi boa, se foi má, se foi bem ou mal entregue.
Neste tipo de projetos [virtuais], é importante ter alguém ou várias pessoas durante a conceção que nos vão ajudando, não só na parte escrita mas também na parte visual e em tudo o resto. Eu, neste caso, tive ajuda – e agradeço por isso – mas, se eu fizesse sozinho, nunca ia saber bem [o que esperar]. Claro que se sabe quando se publica – e a internet tem essa barreira, em que só depois de publicarmos é que vamos ver se as coisas funcionam ou não, verdadeiramente – mas trabalhar de forma colaborativa é sempre bom para nos cortarem ideias, para nos darem outras ou para dizer se uma coisa é boa ou não.