Nos últimos 100 anos, o festejo do Entrudo em Torres Vedras tem, segundo a autarca, combinado características urbanas e rurais e atraído portugueses e estrangeiros de todas as idades para a folia com os icónicos Reis, cabeçudos e matrafonas. De forma a celebrar o importante marco, o município preparou uma série de atividades até fevereiro de 2024, das quais Laura Rodrigues destaca uma exposição sobre o centenário e apresentações que pretendem evocar artisticamente as décadas pelas quais a festa se fez presente.
Na Praça 25 de Abril, próximo à instalação do Monumento ao Carnaval da cidade, inaugurado a 28 de janeiro, o Gerador ficou a saber mais sobre a história do evento, o processo de organização de uma edição e as restantes prioridades culturais da Câmara Municipal.
Gerador (G.) – O que, na opinião da presidente, faz com que se preserve, por um século, a tradição do Carnaval de Torres Vedras?
Laura Rodrigues (L. R.) – É um Carnaval muito popular que conseguiu, ao longo dos 100 anos, manter e incrementar a participação de todas as pessoas. Não é um Carnaval para que as pessoas se sentem a ver um desfile ou um grupo de mascarados. Não há espectadores e foliões. Todos participam efetivamente naquilo que é a atividade carnavalesca.
As batalhas de flores e os carros alegóricos são coisas que se mantêm e são realmente um ícone, [assim como] a presença cada vez maior das matrafonas e, desde 1923, a existência do Rei. [As personagens] são pessoas da terra, que todos conhecem e que são muito acarinhadas. [Isso] faz com que se mantenha esta ligação entre a comunidade e os festejos.
G. – É certo que os costumes foram evoluindo desde a origem da festa. Como garantem a constante adaptação das comemorações?
L. R. – Teve de haver o pegar da organização pelo município. Até meados da década de 80, as coisas eram espontâneas, organizadas por grupos de voluntários e comissões que se iam formando. A partir de certa altura, é difícil que as coisas passem para outro patamar apenas com a dedicação dos foliões. O facto de o município ter municipalizado – como agora está na moda dizer – a organização ajudou a melhorar aquilo que o Carnaval é hoje em Torres Vedras.
Temos tentado que a sátira social e política seja cada vez de melhor qualidade e dar mais ênfase à chegada dos reis e ao término do Carnaval, o enterro do Entrudo, com melhores encenações nesses momentos. Isso, no fundo, é acrescentar àquilo que tínhamos anteriormente e valorizar [as tradições], de forma que as pessoas sintam que há continuidade e inovação.


G. – Diria que a sátira é a característica que difere o Entrudo torriense dos restantes festejos portugueses?
L. R. – Também. Apesar de vermos aí, em outros carnavais, alguma sátira de natureza política, aqui é uma característica significativa. A sátira política e social é muito visível, quer naquilo que são as máscaras das pessoas até aos bonecos e aos carros alegóricos, e a sátira local é a base para a realização do nosso Carnaval. O próprio monumento, que é, normalmente, o lançamento da primeira pedra para o evento, também tem que ver com essa sátira – aparecem personagens políticas, quer locais, quer nacionais ou internacionais, caracterizadas exatamente pelas coisas que aconteceram no ano.
G. – Sendo um grande símbolo da cultura local, como se começa a planear uma nova edição do Carnaval de Torres Vedras? Há um processo específico, por exemplo, para a escolha do tema?
L. R. – Quando acaba a edição do ano, começa-se logo a abrir um processo participativo com os atores mais ligados ao Carnaval, como as associações carnavalescas. Temos seis associações que participam de forma organizada e inúmeros grupos informais – creio que, nesta altura, são 42 –, que participam nos corsos e neste tipo de escolhas.
G. – A presidente tem noção de quantas pessoas estão envolvidas no planeamento?
L. R. – É difícil dizer. O grupo de organização terá por volta de 60 pessoas. São aquelas que estão diretamente ligadas: representantes da Proteção Civil, das forças de segurança e da nossa empresa municipal, com a participação de alguns dos elementos da Câmara Municipal. Mas isto é um grupo ínfimo relativamente àquilo que é a participação no Carnaval, porque são centenas de pessoas para conseguir fazer isso. Por exemplo, só para o corso escolar, o primeiro, que vamos ter na sexta-feira [17 de fevereiro] pela manhã, acabam por estar envolvidas mais de 9000 pessoas – todos os alunos e os professores que com eles trabalham para organizarem as máscaras, as associações de pais e os pais que colaboram durante meses para que aquele momento possa existir. Portanto, quando pensamos em trabalho, é um trabalho grande da comunidade.


G. – Falou sobre o monumento. Como é pensada e produzida essa construção?
L. R. – Tendo em atenção aquilo que é o tema para o ano em causa, são feitos convites a empresas locais para a apresentação de propostas de maquetes para o monumento. Há um júri que faz essa escolha e o mesmo acontece para os diversos carros alegóricos que existem em cada um dos anos.
G. – Para quem ainda não conhece, pode falar mais sobre o que traz o monumento deste ano?


L. R. – É grandioso e cheio, porque traz muitas personagens para evocar os 100 anos do Carnaval. Temos representações de elementos de cada uma das associações carnavalescas e de cada uma das associações locais que recebiam os bailes de Carnaval numa época em que os corsos noturnos praticamente não existiam. Elas foram impulsionadoras e mantiveram esta ligação dos festejos com as elites locais e o povo. Estão evocadas também muitas pessoas que, ao longo deste século, foram os criadores dos cabeçudos, dos carros alegóricos e das matrafonas, acrescentando, naturalmente, os políticos locais. Portanto, lá estou e nota-se bem, porque estou muito bem representada (risos), [assim como] os nossos antigos presidentes, alguns anteriores primeiros-ministros e o [atual] presidente da República. Há uma evocação de todos aqueles que têm contribuído para fazer esta grande festa que marca Torres Vedras anualmente.
G. – Mencionou um processo de organização participativo com os grupos e com as associações carnavalescas para os dias do Carnaval. Para o programa do centenário, fizeram ainda um apelo à participação do público, com projetos propostos e votados pelos torrienses. Em que momentos essas ideias serão integradas?
L. R. – Ao longo do ano. A celebração do centenário inicia-se no dia 17 de fevereiro de 2023 e terminará a 14 de fevereiro de 2024. Teremos um ano com um leque grande de eventos e, tendo em atenção que o nosso Carnaval é de características muito populares e que toda a gente tem alguma coisa a dizer sobre o que gostaria que houvesse nas comemorações, constituímos uma comissão municipal e criámos um processo participativo para que a nossa população pudesse fazer a apresentação de projetos, para os quais disponibilizámos uma verba de 100 000 €. Houve a submissão de diversas propostas, que foram analisadas e votadas por um júri. Dessas, dez ficaram integradas no programa.
G. – E o que podemos esperar dessa programação?
L. R. – Creio que temos um programa eclético, porque parte do Carnaval, mas não fica no Carnaval. Ou seja, não vamos ter um Carnaval o ano inteiro, vamos ter experiências que emanam do Carnaval, quer sejam projetos ligados à dança, quer sejam ao teatro, às próprias escolas, à rádio, etc. Há uma variabilidade grande, que cruza a inovação e a modernidade com a tradição, para ir fazendo esta progressão e atualização. Simultaneamente, [esperamos que] os mais tradicionalistas, por um lado, se sintam representados e gostem das atividades e, por outro, conheçam alternativas que podem ser postas em cima da mesa e que nós poderemos, em anos futuros, também incluir no evento Carnaval. Um desígnio que temos é não deixar o Carnaval naquilo que ele foi, mas ir abrindo um leque significativo de propostas que podem ser associadas à festa.
G. – Além do marco de um século de história, esta é a primeira edição depois da pandemia. Quais as expetativas? Como se sentem os torrienses com o regresso dos festejos?


L. R. – São elevadas (risos). Vemos que, da parte dos torrienses, há uma expetativa muito grande, uma vontade de participar em tudo e uma curiosidade para ver como as coisas se vão passando. Estão todos ansiosos por que comece. Assim que terminou a passagem de ano, começaram as atividades carnavalescas noturnas. Está tudo encaminhado para que seja uma edição de muita gente, o que tem levado também a que tenhamos investido substancialmente mais na segurança e em ter um hospital de campanha, para que possamos todos ficar mais tranquilos.
G. – Por fim, em adição às comemorações do Entrudo, quais são as prioridades culturais da Câmara Municipal?
L. R. – A democratização e a descentralização da cultura têm sido o nosso foco. Paulatinamente, temos feito um investimento grande no trabalho com as associações sediadas na cidade e nas outras 12 freguesias. [Com isso], temos conseguido que muitas das atividades ocorram nas diversas localidades e que as que são programadas para a cidade depois possam também ir para fora. Preocupamo-nos realmente que seja uma cultura para todos. Não é darmos às pessoas aquilo que elas querem, mas é darmos tentando elevar o seu nível cultural e fazendo com que se criem públicos, espetáculo após espetáculo, para outros eventos que não aqueles mais habituais fora da cidade, sobretudo.