Os narizes colados às janelas deixam adivinhar que algo de diferente se passa dentro da biblioteca. Naquela manhã cinzenta de segunda-feira, as crianças da Escola Básica 2º Ciclo Pêro da Covilhã não continham a curiosidade. O burburinho e os encontrões deixavam notar as expectativas. Um grupo de estranhos estava lá desde cedo, a arrastar estantes, a ligar fios e a montar suportes. Os instrumentos e o grande tapete verde no chão mostravam que estava a ser preparada algum tipo de atuação. Para essa tarde, estava marcada uma sessão do projeto itinerante Encontros com a Terra.
“Este tipo de iniciativas não existe com a frequência desejada”, explica a professora Ângela Castilho, cuja voz se eleva perante o burburinho. A docente de Educação Musical e coordenadora do Projeto Cultural de Escola (PCE) foi quem mediou este encontro no seio da escola covilhanense. Fê-lo por acreditar na importância de diversificar as aprendizagens culturais. “Nós temos 23 nacionalidades neste agrupamento e os miúdos estão sempre a ouvir um determinado tipo de música. Não têm oportunidade de ouvir falar sobre outras culturas, contactar com outras pessoas”, acrescenta. Daí que, segundo diz, momentos como este sejam de aproveitar. “Estes miúdos estão a deixar de ter a sua aula normal para assistir a um espetáculo e todos os pais disseram que sim, porque é uma oportunidade única”, assegura.


Foi por ganhar consciência de que cresceu sem este tipo de oportunidades – apesar de ser, ela própria, filha de pais guineenses – que Tânia Baldé impulsionou este projeto, desenvolvido com o apoio do Plano Nacional das Artes. “Como é que eu cresci em Lisboa, uma cidade tão multicultural e passou-me ao lado tudo isto, que é tão importante a nível cultural e da vivência, e identitário de um povo?”, questiona-se. Produtora cultural com um percurso também ligado à educação, Tânia Baldé decidiu que pretendia contribuir para alterar esse paradigma. Quis “poder trazer através da história da música e da tradição oral um bocadinho mais de conhecimento sobre os países africanos, que nos são tão próximos”, explica ao Gerador.
Com essa ideia em mente, desenhou o Encontros com a Terra, projeto itinerante que “promove junto da comunidade educativa a criação de um espaço íntimo e seguro para o diálogo intercultural entre artistas e alunos”, conforme descrito na apresentação.
Esta iniciativa integra-se no projeto Encontros, de maior abrangência, que é promovido pelo Clube da Natureza de Alvito. Dele fazem parte outras iniciativas e eventos, como o festival Encontros de Alvito, por exemplo.
Neste caso concreto, a ideia é levar atuações de música ao vivo a escolas de diferentes zonas do país, com o pretexto de fomentar o diálogo multicultural, a aprendizagem e a discussão de temas tão diversos como “sonhos, expectativas, histórias, culturas, arte, tradição, liberdade e racismo”. Na cenografia do espetáculo são também colocadas edições independentes de livros de autores africanos e/ou afrodescendentes, cuja curadoria ficou a cargo de Raja Litwinoff, da editora FalasAfrikanas.


“Nestes 50 anos [de democracia] não houve um pensar, um refletir sobre o que era a identidade comum de todos estes povos tão diferentes”, diz Tânia Baldé, que assim sublinha a importância da iniciativa.
Para a responsável, a educação não-formal pode desempenhar um papel-chave e providenciar às crianças “ferramentas” e “complementos” que considera ser muito importantes para a sua formação enquanto indivíduos. “Acho que essa postura de igualdade na aprendizagem é também uma mensagem um pouco subliminar, mas que é importante”, refere.
O dia 13 de março foi a data em que a escola da Covilhã recebeu Anastácia Carvalho, cantora angolana, com origens são-tomenses. Além dela, também os artistas Mamadu Baio, Braima Galissá, Chalo Correia, Selma Uamusse, Pretú (Chullage), Cachupa Psicadélica, Throes + The Shine, Acácia Maior, Alice Neto de Sousa e da Soul participaram nesta jornada de atuações, que se distribuiu por 14 escolas com níveis de ensino primário, básico e secundário, ao longo dos meses de fevereiro e março. De acordo com Tânia Baldé, assim que foi lançado o repto, 70 escolas mostraram interesse em acolher o projeto Encontros com a Terra, mas o financiamento atribuído pela Direção-Geral das Artes não permitiu dar resposta a todas elas.


Antes da Cidade Neve, Anastácia Carvalho já tinha estado numa outra escola, em Armamar. “Foi completamente lindo, porque a interação com as crianças foi ótima”, afirma a artista. “O acolhimento foi ótimo, a interação foi ótima. Eles alinharam em tudo. Cantaram, dançaram... enfim. Foi uma festa”.
Após as performances musicais, é habitual abrir o diálogo, de forma a que as crianças possam falar diretamente com os artistas e colocar quaisquer questões que pretendam. “Em Armamar fizeram perguntas que eu gostei e que não me faziam já há bastante tempo. Por exemplo: “já alguma vez pensaste em desistir da música? Ou desistir de ser cantora? Ficas nervosa antes de alguma atuação?”, conta afirmando que prefere não criar expetativas quanto aos alunos covilhanenses que a espreitam do lado de fora da biblioteca. “O ideal é não esperar [nada]. Quando for na altura, eles vão fazer as perguntas que tiverem a fazer e lá irei responder”, declara a artista.


Quando a porta se abriu, as crianças acalmaram a euforia e entraram na biblioteca de forma mais ordeira. Sentadas no chão, foram respondendo aos apelos de Anastácia Carvalho, que aos poucos as convocava a sentir os ritmos e repetir as letras das canções. “Mamá bá auwa izê/Papá bá auwá xtlôcô/ C umé bô sá fôgôê” [A mamã foi apanhar camarões/ O pai foi buscar charoco/ A tua comida já está no lume]. Pausadamente e em bis constante, as crianças foram ecoando a letra da canção que Anastácia trazia na voz e no papel. Dançavam e tocavam instrumentos. No fim, levantaram os braços para perguntar à cantora o que mais gostava na sua profissão, qual o seu percurso artístico e preferências pessoais.
“Acho que [este tipo de iniciativas] é muito interessante”, assegura a artista. “Tudo o que se está aqui a passar poderia ser obtido por pequenas informações na internet, acerca de cantores de São Tomé e Príncipe, mas é completamente diferente ter alguém no local a apresentar um pouco da cultura”.


Ávida por opinar sobre o que acabou de ver, uma criança da assistência sublinha tudo o que esta tarde lhe proporcionou: “trouxe muitas coisas que eu não conhecia sobre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Quando chegar a casa vou ver se pesquiso mais alguma coisa, como por exemplo culturas do país, comidas, danças... esse tipo de coisa”.
Reações como esta são, para Tânia Baldé, um dos elementos que demonstram a relevância destas atividades como complemento ao ensino tradicional. “São ferramentas muito úteis e transversais aos adultos, às crianças e aos funcionários. São realmente momentos de diálogo, de aprendizagem, em que todos aprendem. Nós também”, acrescenta a produtora.